A linha ondulada das águas brilhava esbranquiçada no fluxo e refluxo da maré. Ravenala teve medo. Pareceu-lhe ouvir gritos de náufragos pedindo socorro. Mas não havia náufragos. Ela ouvia os gritos da sua alma: ‘Cuidado com o que escreve. A vida é mais que correr atrás de boi, puxar enxadada e combater ciganos invasores alojados em propriedade privada. É mais que escrever livro. É preciso pensar com a mão no coração e a alma na razão. Apostar na vida e investir no desafio de realizar o impossível, porque o possível é meta dos acomodados. ’
Tinha por hábito, ao retornar do trabalho, passar na Av. Nossa Senhora de Copacabana, estacionar o carro nalguma vicinal e fazer caminhada. Com isso, nunca chegava a casa antes da dezenove horas. Naquele dia, ela estranhou a presença de Katzel. Não era bom que a doméstica permanecesse no local de trabalho depois do horário. Não sabia as intenções da empregada. Muitas ficam até mais tarde, sem ter o que fazer, para depois apresentam queixa contra a patroa no Ministério do Trabalho.
— Katzel, porque não saiu em seu horário? — Queria falar com a senhora. — Pode falar. Depois tomo meu banho. — Ligaram três vezes hoje à tarde. Sempre a mesma voz e não deixa recado. — Você ficou me esperando só para dizer isto. Não sabes que tenho identificador de chamadas? — Não foi só por isso que fiquei. — Fala logo, já estou preocupada. — Preciso de adiantamento salarial. — Quanto? — Um salário completo. — Bom, seu problema eu posso resolver. Quero saber quem vai resolver o meu. Há dois anos que o Colégio Integral fecha no vermelho. — E a loja? — Não posso carrear recursos de uma empresa para outra. É crime. E mesmo que pudesse, levaria as duas empresas à falência. Uma puxava a outra para o buraco. — Não entendo dessas coisas — disse a empregada — fico agradecida pelo adiantamento. Se puder descontar em três ou quatro vezes... — Vai, Katzel. Está ficando tarde.
Tomou o banho e conferiu as chamadas. Realmente o celular registrou cinco chamadas não atendidas, originadas de Campina Grande. O telefone fixo também registrou chamadas com o mesmo DDD da Paraíba.
Retornou a ligação. — Oi. Imagino que este número seja de um amigo. Estou cansada de receber ligações de presídios. — As duas coisas juntas: amigo e prisioneiro. — Para Dan, já reconheci tua voz. Bom conversar contigo. Tive um dia turbulento. — Nem me fale em turbulência. Tenho medo de avião. E estou com passagem comprada para amanhã. — Voltando definitivamente para o Rio? — Por enquanto ainda não é em definitivo. Preciso apresentar meu Trabalho de Conclusão de Curso, e como iniciei a faculdade no Rio, devo dar entrada em meu TCC aí. — É a primeira vez que voltas ao Rio, depois que foste para Campinha Grande? — Estive uma vez, muito apressadamente. Fui instalar o sistema de comunicação do metrô do Rio, com tecnologia nossa, aqui da Paraíba. — Menino, que chique! Porque não tirou um tempinho para nos encontrarmos? — Não pude. Tinha aula no dia seguinte em Campina Grande. — É muito longe... — Aproximadamente 2.300 km. Via terrestre, gasta-se em torno de 34 horas. Mas de avião tem um desconto bom, cai para duas horas e quarenta e cinco minutos. — Fazes-me rir...Que desconto, hein! — É bom falar contigo. Obrigado por retornar a ligação. Boa noite... Não teve mais dúvidas, a voz que anunciava a aproximação das estações do metrô, era de Daniel. Apaixonara-se por uma voz modificada eletronicamente. “Eta vida besta!”
No dia seguinte ele telefonou. — Surpresa!... Tenho uma surpresa pra você, disse Daniel. — Surpresa boa ou ruim? — São duas. — Sendo apenas duas não dá para ir muito longe. As duas são boas, ou as duas ruins ou uma é boa e a outra ruim. — Isso é verdade, contudo, não há mel tão refinado que não deixe um travor na boca.
________________ Travor na boca?
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Percebeu que tinha dito asneira.
Pensava no casamento declarado nulo pela Igreja. Foi por causa da separação com Morgana que Daniel decidiu mudar-se para o Nordeste. — Podemos jantar juntos hoje?
O SIM saiu entrecortado. Daniel sentiu a sensação dos lábios vermelhos de Ravenala ajustando-se aos dele, como nas fantasias que tinha desde que a viu pela primeira vez na loja de informática. E Ravenala matutava: Daniel está voltando. Fernão desaparecido.... Robert é meio marido, meio irmão ou meio nada. E riu. E chorou. Tinha dois maridos e estava só. Apostaria a ficha grande em Daniel. Sentiu O sorriso de Deus abrir-se no rosto do frade de Pietrelcina: “O amor não suporta adiamentos. Apressa-te! O caminho é longo para um só...”
O sol pendia. Pombos catavam migalhas de alimentos deixados pelos banhistas na praia. A luz do dia fraquejava. O vento soprava suavemente, e a noite derramava estrelas pontilhando o céu.
Era hora de voltar pra casa.
Abriu o maleiro, mas a caixa de sapatos em que Emília dormia, não estava lá. Ela estava só a conversar consigo mesma: “Esconde tuas lágrimas para derramá-las somente diante do espelho."
Em casa, Ravenala tinha um guarda-roupa com dois grandes espelhos: um espelho na porta da direita, outro na porta da esquerda, e no meio, um vão para televisor, DVD, e outras parafernálias da tecnologia moderna. No espelho da direita, via-se linda, maravilhosa! No espelho da esquerda, feia e com as pernas tortas. A esta imagem que via no espelho esquerdo, chamava de Ramayana: “Menina, estás péssima hoje.” E naquele dia, tudo lhe parecia feio. Por mais que alisasse os cabelos, eles permaneciam rebeldes a qualquer trato. Tudo parecia torto, desalinhado. Nem mesmo o batom vermelho, tinha brilho e cor. O rosto tomava forma desfalecida, e a alma se contorcia aflita. “Cuidado com autossugestão.” De fato, a palavra tem poder de benção ou de maldição. Se disseres: “Como és feio, rosto desprezível.” Teu rosto ficará feio aos teus olhos. E grande será a vergonha que ele terá de ti e do mundo. Tudo que determinares, ainda que em pensamento, o cérebro dará ordens ao corpo e o corpo obedecerá. Do mesmo modo, se disseres: “Pernas, vocês são tortas e finas... horríveis!” Elas sentirão profundo constrangimento. Ficarão finas e tortas aos teus olhos e se contorcerão de dor. Mas se disseres: “Que rosto lindo eu tenho! Sempre que olhares no espelho, teu rosto estará feliz. Pensou alto: "Guarda bem essas coisas, Ravenala." — Com quem estás conversando patroa. Preocupou-se a faxineira. —Com o espelho. Não há mais ninguém nesta casa com quem eu possa conversar. — Nem vai fazer falta. O patrão não morava aqui.
Katzel percebeu que tinha dito besteira, mas não havia mais como consertar. Pôs as mãos na cintura, feito um açucareiro, balançou os quadris e soltou o rodo no chão: “Com licença. Preciso terminar a faxina. Estou atrasada...”
— Você está passando pano de chão em meus pés. Por que não começa pelo outro banheiro? — Cruz credo. Não se tem liberdade nesta casa nem para trabalhar.
Katzel saiu dando azeite às canadas.
Diante do espelho Ravenala penteou o cabelo, e cantou a primeira música que lhe veio à mente: Tornero. (Cantou baixinho, senão, Katzel parava de trabalhar). Naturalmente, a música não era da sua geração. Mas, de tanto seu pai fazer rodar o disco na vitrola, Ravenala sabia a música de cor. Ela fez uma tradução, distorcendo as palavras, de modo a adequar a letra à realidade que vivia:
Dez anos é um século... A rosa que você não me deu, secou. E eu seguro em um livro que nunca terminei de escrever.
Se Fernão conhecesse a música do grupo italiano I Santo Califórnia,talvez dissesse: “ Voltarei... Um ano não é um século, voltarei...” O interfone tocou. Do outro lado da linha o porteiro informa: — O integrador de água chegou. Posso mandar subir? — Claro, claro. Ela assustou-se. — Amarildo!... — Ó sim. Abri uma distribuidora, mas hoje faltou funcionário... Deixou a água e não esperou o pagamento.
Ravenala chorou. Travou as lágrimas com um soluço. Aconselhou-se com o espelho, e seu espelho lhe disse: “Ora, menina! Por que choras a perda daquilo que não era teu? Amarildo pensa pelos cotovelos. Fernão... Bem o nome dele agora é náufrago. E Robert, acaso sabes por onde anda Robert?”
Abriu o escritório e ligou o computador. Ela precisava fechar o capítulo que deixara inconcluso. Releu o último parágrafo: "É com teu canto que teces a aurora dos teus dias. Conte um conto, cante um canto..."
Não gostou do fechamento de capítulo. Pareceu aliteração despropositada. Melhor afinar suas dores com o violão de Cruz e Sousa, e assim, descrever alguns flashes do acidente aéreo:
Gemidos, prantos, que no espaço morrem... E sons soturnos, suspiradas mágoas, Mágoas amargas e melancolias, No sussurro monótono das águas.
Aprovado — disse ela — Já posso fechar o capítulo. P.T. Saudações. E desligou a tela.