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Contos-->No silêncio do coração -- 29/04/2018 - 15:58 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos







No silêncio do coração
 
O Auto da Alma se lhe passou na mente. Lentamente, a respiração diminuía, e as batidas do coração se tornavam menos frequentes. Ouviu  o  rufar de asas: ‘Venha!’    Padre Davi  viu cenas de seu  juízo particular:  São Miguel tentando resgatar sua alma e o Diabo querendo arrastá-la para as trevas.





Persignou-se.
Selou com o sinal dos cristãos a testa, a boca e o peito.
Levantou-se.
Seguido pela voz de sua consciência, tomou a porta de saída. Fechou a igreja, e  andou a passos largos até o beco dos aflitos. A voz ecoava em seu coração:
 
A muitos, ensinaste,  deste força a mãos  frágeis. Tuas palavras levantavam aqueles que caiam. Agora tu mesmo enfraqueceste. E em lugar do pão tens o soluço.
 
 Era dia de finados do ano que já passava de dois mil.
— O padre não tem quem lhe faça o almoço hoje — disse ele ao deparar-se  com Chanana a recolher, apressadamente, as calcinhas estendidas no varal — desculpe-me por não anunciar minha chegada —— Os cães não pedem permissão para comer as migalhas que caem da mesa do rico. 
— Entre.
— Bem vindo homem de Deus.
— Não tenho mais certeza se estou a serviço de Deus. Eu bem sei que tu és Clara, e eu, um cisco na casa de Assis.
— Clara, eu? Sou uma nesga de Sol, tentando rasgar o negrume das minhas noites de insônia.
— Se falas dos espinhos da carne, eles me ferem, mortalmente, nas poluções noturnas que tenho. Dormindo ou em vigília, meus pesadelos me acompanham.
— Evite pensar na pessoa que tem sido a causa de suas elucubrações.
— Não consigo vê-la sem que me venha o desejo de tocá-la, sentir a maciez de sua pele, acariciar suas mãos e cabelos. E porque não posso fazer corporalmente,  meu pensamento vai aonde a mão não alcança.
— Espinhos da carne.
— Sim. O homem que mortifiquei em mim, quer ressurgir das cinzas. E essa chama que arde sem queimar tem nome.
— Amor platônico?
— Não. Chanana Tupixá.
— Cruz credo. Não quero ser motivo de escândalos. Se alguém se perder por causa do meu pecado, serei culpada de morte, e ambos iremos para o inferno.
— Somos   pedra que anda. E mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos de Abraão.
— Queres dizer: pedras que se consomem?
— Sim.  Que se consomem de amor, como gelo que derrete na presença do fogo.
— Ai daquele que for motivo de escândalo para o semelhante.
—Tu podes ser o atrativo que Deus quer usar para revelar minha vocação.
— Podemos ser amigos na fé. Contanto que sejamos prudentes.
— Sinto restauradas minhas forças, quando estou em tua presença. Vais me negar isso?
— Não sou deusa do amor. Se me conheceres melhor, quebrará teu encanto por mim. 
— I love my life, because…
— Vi o filme. Não precisa concluir a frase. Nem traduzir.
 — Gostaria de ter sido eu  o autor desta obra.
— Agostinho viveu a concupiscência da carne, depois se  converteu.  Queres viver agora o processo inverso?
— A vida parece eterna aurora que anoitece num piscar de olhos.





Caiu sobre ele o peso de longa batalha: aquilo que parecia até então, já acabado e pronto, como a vida, ressurgia das cinzas... Davi tinha mais de quarenta anos vividos, dos quais,  mais da metade fora  de luta  com a própria carne. Ele travava uma luta de vida ou morte com um inimigo invisível. Mas isso é comum a todo vivente. Todos precisam lutar contra a morte,  logo no primeiro segundo de vida. Conhecer  o melhor momento de falar,  de fechar a boca e abrir o coração. Saber ouvir o ruído do silêncio. 
Chanana sempre alimentou o desejo de  ser mãe. Nunca tendo um padre por marido. Muito lhe assustava a lenda da mula sem cabeça.
— Tenho fome — disse o padre Davi.
— Não há nada especial no cardápio, se não se incomodar com o trivial. Vamos comer arroz, feijão, bife  e ovo frito. 
— Ótimo! 
 Chanana nunca vira tanta simplicidade, num homem tão importante.
— A mesa é posta — disse ela.
O padre procurava uma maneira mais discreta de falar sobre tão delicado assunto e não encontrando. Tocou direto na ferida.
— Menina, para que esconder tua gravidez? Conte tudo para Androceu antes que ele saiba pela boca do povo. Os filhos de candinha  bebem água na orelha dos outros... 





Logo Chanana compreendeu que sua vida pregressa estava em leilão e era prenda pouco valiosa no conceito da comuna cristã. Nem ela mesma tinha certeza da gravidez, apenas suspeitava. E durante o almoço, o padre tentava, sutilmente, identificar alterações no corpo de Chanana, provocadas pela gravidez que ela confessara como pecado de adultério,  e ficou contente em pensar na possibilidade de ela estar vivendo a  síndrome da gravidez psicológica. 





— Como está a saúde de minha paroquiana?
— Tenho sentido tonturas e enjoos.
— Não seria psicológico? Quem sabe um trauma levado a efeito pelo ardente desejo de ser mãe, e a impossibilidade de ter um filho de suas entranhas gerado pelo casal unido no  sacramento do  matrimônio oferecido pela madre Igreja.
Tentou compreender o por quê de uma pessoa passar quatro anos na faculdade de medicina e deixar tudo para se tornar doutor em Teologia, ainda assim, resolver abandonar a fé.
— Se me permite uma indagação, por que trocar a Medicina pela Teologia?
— Curar a alma, minha filha. 
Curar almas antes que se quebre a bilha na fonte, e que se fenda a roldada sobre a cisterna. Disse citando trecho do Eclesiastes, pois o padre tinha a Bíblia quase de cor em sua prodigiosa memória. Também porque, tem muita gente cuidando do corpo e poucas da alma.  A carne passa (do ponto), mas o espírito do homem é soprou de Deus, portanto, vida imortal. E, embora tenha cursado longos  períodos de medicina, Davi não  quis entrar em campo fora de suas atribuições sacerdotais.  Apenas acrescentou: “A falsa gravidez pode apresentar sintomas na  mulher que acredita estar grávida, e ocorrer outros sinais como  o aumento do volume abdominal, enjoos e até a ausência de menstruação.” 





Padre Davi  orou antes da refeição e desejou que Chanana estivesse passando, realmente,  por um processo de gravidez psicológica. Do contrário, não era bom aparecer grávida uma paroquiana, amiga do padre, cuja  esterilidade do marido era pública e notória. A cidade sabia que o casamento dela com Androceu fora forjado pelo bicheiro Martiniano de Castro, para esconder um crime. O povo falava da intimidade de Chanana  com o bicheiro, mas isso não garantia ao padre isenção das más línguas falarem também dela com ele.  
Agradeceram a Deus pela refeição, antes de se servirem dela.





— Ao ataque, disse o padre sorrindo.
— Primeiro o sacerdote.
E ficou reparando o modo como o padre pegava a comida e colocava no prato.
— Canhoto, o senhor é canhoto?
— Quem criou as etiquetas de boas maneiras, esqueceu-se dos canhos. Como um canhoto vai cortar com a faca na mão direita? As pessoas determinam um padrão único para destros e sinistros, e ainda pedem explicações aos que não seguem os ditames da regra com as quais governam os comensais.  
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Pedem explicações aos que não seguem os ditames da regra
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Percebeu que tinha dito uma asneira. Devia explicações ao bispo sobre os motivos da decisão de deixar a batina. E quando o fez, o diocesano já sabia pela boca do povo. O bispo sugeriu férias, ao padre, com a intenção de que o sacerdote tomasse uma decisão que não viesse a colocar em xeque-mate o nome da Igreja, já tão desgastado por causa de uma minoria transgressora.
***
Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."






Adalberto Lima




Enviado por Adalberto Lima em 29/04/2018


 


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