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Contos-->O SÉTIMO SELO -- 04/03/2018 - 23:03 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Fernão olhou de soslaio. Lia muito, mas nunca pensara em escrever livros. É verdade que, quando jovem, fez rimas. Quase todo jovem se sente poeta do amor. Que amor, poderia sentir ele, Fernão? Seu mundo era um mundo diferente! Não se apegava a outra coisa, senão às suas miniaturas de carro da fórmula 1. Irritado, aborrecia-se com os colegas que zombavam de seu nome: ‘Fernão Capelo tem pena de gaivota no cabelo.’ As afrontas, embora ingênuas, feriam sua autoestima, mas, apesar dessas lembranças, sentia saudade dos tempos de colégio.  A galhofa que lhe faziam do nome, deixou marcas que permaneceram na vida adulta. Por causa delas, só se apresenta como Fernão ou como Noronha. Nunca Fernão de Noronha, tampouco Fernão Capelo, para evitar associação ao pássaro de Bach. 
Como ele gostaria de ter asas pra  voar!
Inquieto,  acionou o serviço de bordo. A comissária aproximou-se:
— Deseja alguma coisa, senhor?
— Estamos voando baixo, disse ele.
— Estamos em nível de cruzeiro, aproximadamente, trinta e seis mil pés.
— Vejo o azul do mar.
— O céu é lindo porque é azul da cor do mar. Fique tranquilo, o comandante Hemor é muito experiente. Qualquer dúvida pode chamar-me novamente.
Flash, flash...
 Acenderam-se a luzes de alerta e uma voz feminina anunciou:Senhoras e senhores! Este é o voo ABS 815, com destino a Paris. Nimbos se aproximam. Por favor,  mantenham a poltrona na vertical e apertem os cintos.  Obrigada! A visão de um rosto feminino entre as prateleiras da aeronave, confirmava a presença de  Vannini naquele voo! Fernão conhecia muito bem quando sua mulher estava nervosa. Fitou-a cuidadosamente e percebeu nela o rosto cheio, e o corpo mais encarnado, mais gordinho. Sentiu a voz de  Cezar Ubaldo sussurrar em seus ouvidos: Carregamos no ventre a hóstia consagrada em partos menores... Fernão sequer conhecia, Ubaldo, senão, em textos lidos no Portal Literal: No ventre carregamos vida, então!...Carregamos no ventre o sol da manhã, a manhã irmã, o contraste do ser!... Fernão, nunca desejara tanto  ver o sol da manhã, da tarde..., uma nesga de lua, um sinal qualquer de vida fora das paredes da aeronave... Queria contemplar o semblante de rostos amenos, diferentes daqueles  espavoridos de seus companheiros de voo. 
Vannini, embora tentasse  acalmar os passageiros, voltava a afundar-se nos próprios pensamentos, logo que o sorriso fabricado se desfazia. Afastou qualquer pensamento de ira contra Fernão. Eles estavam juntos em um barco furado. Ela sabia disso. Fernão também. E esvaziou ressentimentos que ainda habitavam  sua alma. Sentiu tontura...Segurou firme no espaldar da poltrona em que dormia uma velha (alheia a tudo que se passava) e impostou a voz, dando  outro aviso: Senhoras e senhores, estamos sob forte turbulência, por favor, mantenham a calma. Preparem-se para um possível pouso de emergência. Utilizem os assentos flutuantes. Obrigada! 
Fernão aquietou-se.
Ouviu  Camões bramindo como se desse em vão nalgum rochedo. E se lembrou da profecia de um  vidente sobre acidente aéreo. Abriu o terno, conferiu o colete, retirou o paletó e afrouxou os sapatos. Os passageiros estavam com a cabeça sobre os joelhos e os tripulantes, mostravam-se compenetrados, vasculhando na mente procedimentos de segurança para uma situação de emergência. Levantou-se. Suas pernas tremiam e o coração queria saltar do peito. Assentou. Deixou que se passassem alguns segundos, minutos talvez... Queria ser uma gaivota voando a 1200 quilômetros por hora. Repreendeu seu pensamento: Gaivotas não voam a essa velocidade, Fernão! A tensão do vento lá fora é que era de 1200 quilômetros. A essa velocidade, seu corpo seria arrastado como uma folha seca tocada  pelo vento... Se tiveres a sorte de não tocar a água, poderás salvar tua vida. Como fazer aterrissagem? Não possuía freios, nem trem-de-pouso. O vento rasgaria  seus olhos e arrancaria sua pele. Talvez pudesse laçar-se de paraquedas, mas  as cordas não  suportariam a tensão. Poderia abrir o paraquedas só com ventos laterais. Precisava voar.  Desejou ser uma gaivota, como diziam os colegas de escola. Se não era uma gaivota, seria, com certeza, um corpo descendo em velocidade meteórica para em pouco tempo, se esborrachar contra o chão ou o espelho das  águas. Não havia jeito! Titanic se partiria no choque contra um Iceberg. Sentia-se como que acorrentado no porão de um navio negreiro. Superaria seus limites como uma gaivota, voando a uma velocidade nunca atingida por  sua espécie e se chocaria no paredão das águas, duras como pedra de sal.
Cenas do Armagedom desfilaram em sua mente.
Viu sete anjos e sete candelabros em volta de suntuoso trono. No meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, dizia: ‘É chegada a hora! Escreve, pois, o que viste, tanto as coisas atuais como as futuras’.  O anjo abriu o sétimo selo e em vez de silêncio, ouviam-se gritos, alaridos e pedido de socorro. Muitos fizeram o que não podia ser feito: levantaram-se, tentaram arrumar a bagagem que caia sobre suas cabeças e foram atirados contra a fuselagem. O primeiro anjo apocalíptico  tocou a trombeta. Saraivada de fogo percorreu o interior da nave. Em êxtase, Fernão viu-se sentado a uma mesa no panteão da memória com o livro da vida aberto no colo. Diante de seus olhos páginas amarrotadas e o rascunho de sua vida que esperava ser reescrita.  Pesava-lhe a dor de ver tantas páginas em branco... Quantas vezes virara o rosto para esposa e maculara a pureza dela com infâmias e desdéns!... Quantas vezes  teve a oportunidade de refazer a própria história, e não o fez... Desejou abraçar Vannini e sentiu-se na pele de Melenau viajando no mesmo barco com Páris. 
Casados que há tempos não conversavam, mantinham agora as cabeças coladas uma à outra e balbuciavam alguma coisa ininteligível. Irmã Paola tentou debulhar um terço, em voz alta, e não conseguiu. No meio do corredor, um homem ergueu a voz: Sou padre Davi! E traçou no ar o sinal da cruz, enquanto dizia: Pelo poder que me concede a Santa Madre Igreja, eu perdoou todos os vossos pecados inconfessos, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.Alguns responderam: Amém! Muitos  balbuciaram palavras quase inaudíveis, outros, apenas moviam os lábios.  Fernão entrou na cena de seu batismo, viu os pais e padrinhos na Igreja da Consolação. Viu também a pia batismal com água e pessoas da comunidade que acendiam velas no Círio Pascal. Com um crucifixo na mão,   o sacerdote ungia-lhe a testa e o peito com o óleo dos catecúmenos. Viu ainda um animal asqueroso levantar-se do mar. A Fera tinha dez chifres, sete cabeças e muito poder sobre a Terra. Soprava na mente dos cristão bombas de pensamentos infladas de ganância, vaidade e orgulho. Houve um clarão, seguido do ribombar de trovões. ‘Abriram-se livros, e ainda outro livro, que é o livro da vida. Miríades de anjos entoaram um coro diante do trono do Cordeiro. Mostrou-lhe então o anjo um rio de água viva que brotava da pia batismal. A mãe traçou uma cruz na testa do filho. Houve uma explosão que só o menino ouviu. E chorou. O animal desapareceu numa nuvem de fumaça negra. Em seguida, Fernão viu  Moisés no monte Nebo jogar seu manto para Josué: O que está oculto pertence ao Senhor, nosso Deus; o que foi revelado é para nós e para nossos filhos. Nada temas. Passou em seguida o manto para Josué e Josué passou o manto sobre a cabeça do menino. Veio uma nuvem luminosa e o envolveu. Extático, Fernão desprendeu-se do sobrenatural e lentamente, retornava ao mundo dos mortais. Não muito bem desenhadas, traçou uma cruz na testa, uma na boca e outra no peito.  Objetos, poltronas e bagagens voavam em todas as direções e se chocavam, ora contra a fuselagem, ora contra os passageiros e tripulantes. Gravemente ferido, o corpo do padre estava estendido, a fio comprido, no corredor da aeronave.
***

Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."
Adalberto Lima
Enviado por Adalberto Lima em 04/03/2018
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