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Contos-->VOCÊ É MEU PAI? -- 23/02/2018 - 17:01 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



















Nas primeiras águas, berra o boi solto na manga,
 corre o cavalo batendo os cascos, 
 atrás de uma égua no cio...
 
 
As fantasias eram coisas de virgem que jamais consegue explorar, completamente, os meandros da concepção. Ela criava imagens incompletas dos cinco minutos de intimidade dos Castros, que  Morgana ouvia atrás da porta e lhe contava: ‘Tá na hora de oferecer um sacrifício no altar...’
— É sacrilégio comparar o momento de intimidade do casal com o sacrifício de  oblação.
— E não é um sacrifício? É trabalho pesado,  dá uma suadeira!... 
— Se é sacrifício, por que te mostras tão entusiasmado?
— O próprio Deus colocou um atrativo para que as espécies se multiplicassem. Se não houvesse néctar na flor, abelha ia trabalhar de graça na polinização? 
— Espere pelo menos eu terminar a reza.
Ravenala riu, recordando-se do que lhe confidenciara a amiga sobre o código do senhor  Martiniano Castro: “Tá na hora de oferecer um sacrifício no alta.” Então, ela pensou em  receber de Robert   um convite para oferecerem um sacrifício de agradável odor.
O tempo de espera parece interminável: horas, minutos e segundos chegam devagar. Mas logo, se vão apressados. A passagem deste para o outro lado da vida, pode durar apenas alguns segundos.  E no virar de cada página, vai-se um mês e vem outro, vai-se um ano e dezenas de anos vão correndo, escorrendo como águas no regato. A idade avança: um quarto de século contempla a beleza da moça solteira. Não há guarda-chuva contra o tempo  que tritura as quatro estações da vida. Esses dias a Morga ainda era uma menina, a agora já vai se casar...Ravenala teve uma ponta de ciúme. Talvez uma santa inveja. Talvez!... Deitou-se, acomodou a cabeça, olhou para o teto e buscou por lembranças dos tempos do Marista. Morgana se casara, e ela, Ravenala, continuava no caritó, olhando as paredes da enfermaria. No silêncio de sua dor, ela ouviu a voz de sua alma: ‘Vem Ravenala!’ E viu surgir o cavalo esverdeado do apocalipse seis sete. Seu cavaleiro tinha  por nome Morte; e a região dos mortos a seguia com outro nome, chamado pelos humanos de dengue hemorrágica. Só um mal daquela monta a impediria de ir ao casamento da Morgana.  O pai gracejava: ‘O mal de Ravenala  é dengue. Está dengosa minha menina. Um dia a ciência vai mudar o nome da dengue para Mal de Talita Cumi’. Desta vez ela não riu. Sentia febre, dores musculares e vontade de ficar deitada... 
— Amanhã, receberás alta, disse o médico. 
Ela lamentou: “Faz dois dias que Morgana se casou! E eu ainda solteira, curtindo  dengue em leito hospitalar.” Fechou as asas como uma gaivota em voo vertical para  erguer-se das águas com um troféu  no bico. Precisava agir logo.  Abriu um livro, leu Iracema e viu Alencar colocar a índia nos braços de Martim: ‘trêmula e palpitante como tímida perdiz... ’ É hora da estrela. ‘Por que não agora? Por que não soltar seu grito de gaivota, e derrubar as muralhas de Jericó?’ Estava cansada de comprar os beijos de Amarildo com o salário da loja. Amarildo  não pensava no futuro! Gastava tudo com anabolizantes e mensalidades numa  academia de subúrbio. Nada guardava do salário recebido. Por certo, não assimilava a sabedoria que vem deste os tempos da Grécia Antiga:  Nenhum ganho oferece maior segurança do que economizar o que se tem. Então, ela tomou os originais de seu   livro, ainda em construção, e dirigiu-se à casa de Robert. Logo que sentaram, surgiu o primeiro impasse: Pelo gosto de Ravenala, declinaria o nome de todos os colegas do Marista, até o gol de José Américo que deu ao colégio o título de campeão em 1980, merecia registro. Haveria de conseguir algum papel para muitos colegas, mesmo que fosse uma ponta, uma passagem rápida, como figurante de telenovelas. Robert   examinou os rascunhos, e deu seu parecer:
— A primeira coisa a ser definida é o público-alvo, depois, constroem-se as cenas, escolhem-se personagens e traçam-se perfis, cenas  e cenários.  É preciso introduzir cada capítulo, sem, contudo fazer um prefácio dele. Cuidar da arte como se cuida de um filho em tenra idade. Colocar uma pitada de sal e outra de açúcar, levedar a massa e produzir um alimento de agradável sabor. 
— Ora, Bob! Isso me parece uma receita de bolo. 
O escritor deve retirar as amarras, deixar  o cavalo solto no pátio, de modo a permitir que os leitores também cavalguem.  Personagens precisam sair das páginas como Raquel e Alvarenga, para socorrer Biba  acidentada na calçada. É a fantasia denunciando a realidade, fazendo o lado social da literatura.  Não se deve esvaziar o tinteiro, para que, com o resto da tinta, o leitor possa pintar novo quadro e recontar a história. ‘Não leste Carrero?  Ele tomou por empréstimo a deusa mitológica dos gregos. E apresentou Osíris na carne de Leonardo em relacionamento incestuoso com Isis. Confira o Livro dos livros, e descubra onde Alencar encontrou o mel para colocar nos lábios de Iracema!  Onde pensas que Homero pegou  Helena de Tróia e a entregou a  Páris?... Ora, Dina, a filha de Jacó, nas mãos de Homero, tornou-se Helena de Menelau. Páris  pode ser o príncipe de Siquém que raptou Dina.   Simeão e Levi estão representados por Aquiles e Agamenon em   guerra para libertar Dina, a filha de Jacó, que se tornara Helena de Homero. A  intertextualidade é essencial para provocar a verve do  leitor. 
— Sem dúvida, os cruzamentos literários enriquecem a obra. No entanto, cuidado com o Anjo Negro! Mude a denominação do anjo. Podes ser processada por segregação. Racismo. Anjo das trevas parece mais adequado.
— Anjo das Trevas não tem  o mesmo efeito literário que Anjo Negro.  Efeito teológico, talvez tenha. Literário, não! Ademais, negro é cor. Não raça.
— Vais escolher então, o efeito teológico ou literário?
— A Bíblia pode ser considerada como literatura?
Robert   ficou embaraçado.
— Isso é polêmico. Os livros bíblicos apresentam a estrutura literária praticada na época em que foram escritos. Sob essa ótica, é literatura. Mas... se fosse literatura, não estaria comprometida com a verdade. Enfim, religião não é uma ciência, nem a Bíblia, um livro. Embora etimologicamente o seja, a Bíblia é uma pessoa. É Deus que fala.
— Vais deixar estas coisas numa prancheta?  Inscreve-as num livro, a fim de que tua palavra seja eficaz e duradoura. É preciso  transformar o negrume em brancura e colocar um ponto de luz na escuridão.
— As trevas também me assustam. Anjo das trevas me assusta mais que anjo negro.  Treva é a ausência de Luz, como no princípio. Negro é ausência de cor. O anjo mau é anjo de luz, decaído. Anda na escuridão com sua luz fosfórea, competindo com o Acendedor de Lampião. Manterei o Anjo Negro, e deixo, aqui, por antecipação, minha defesa. Negro não remete a raça nem etnia. Negro é cor, ou ausência de cor. É dúbia interpretação, pensar de outro modo.
— Não te lembras daquele teu poema? Não pôde participar do Concurso de Poesias do Marista, com o título  ‘Mulatinha’.  E mesmo sendo uma alusão à beleza negra, o título foi assinalado como "não politicamente correto".
— O Brasil tem essas coisas. Se por um lado, peca por excesso de zelo, por outro, relega a plano inferior a própria vida. ‘Vem cá meu dengo...vem cá meu nego...’ não é tratamento carinhoso com que alguém se dirige à pessoa amada?  Ora, mulata já não significa mais  a filha de escravo e escrava sexual do patrão. Não é isto. Mulata é delicada, tem pele morena, cheiro de cravo e canela. Mulata é Ravenala, mulata é Gabriela.
— Nunca vi mulata branquela. 
— Também não é preconceito chamar loira de branquela? Se não for, há uma balança com dois pesos e duas medidas na Lei. Afinal somos a mistura de muitas raças. Mas cor não é raça.  Todo sangue é vermelho, portanto o sangue de Caim era igual ao de Abel. Um era mau, o outro bom, e em nada dependeram da cor de suas peles para serem bons ou ruins. Esaú era cabeludo. O irmão não o era. Um era mau, o outro bom, e em nada dependeram da ausência de pelos, ou presença de cabelos no corpo para serem bons ou maus. 
— Vais transformar o romance em novela? Já emendaste a alça do intestino de vários contos entre si, para obteres o romance. Agora queres eliminar episódios? Preocupa com classificação não! Nem todos os países usam o mesmo critério. O que é romance aqui pode ser  novela lá. Quantas páginas terá teu livro? Quantas palavras? 
Ravenala permanecia calada, apenas  movia os olhos como que falando através  deles, sem falar. Então, Robert   continuou:
— Por que não um romance de ideias, de modo a  permitir a  Nietzsche reconhecer que Deus está vivo!  O sexto selo já foi aberto: o aquecimento global é perceptível, o martírio dos cristãos já está acontecendo , e a matança de crianças inocentes também.
— Tens muito fôlego. Vejo isso nas braçadas de seus parágrafos. Neste caso, transforme teu  ensaio em Romance de formação. 
— O retrato de James Joyce é grande demais! Não cabe na moldura de minha parede.
— Não queres tratar de parusia, então por que retoma temas escatológicos?
— És agora meu catalizador?  
— Vais escrever um conto, um romance ou novela?
— Não quero compromisso com esta ou aquela estrutura. Quero contar histórias minhas e dos outros. O que vi o  que li ou ouvi. A todas essas coisas, acrescentarei uma pitada de humor.
 Não era seu feitio descartar uma oportunidade de negócio no primeiro obstáculo. E, mão por baixo, mão por cima, como morcego que lambe a presa antes de sugar-lhe o sangue, apontou, mirou bem e lançou um dardo flamejante: 
—Essas coisas que me dizes, ouviste de Ana Maria ou do Carrero?  Soube que queimaste pestanas à cata de técnicas para escrever um livro. Dividiste o travesseiro com Clarice Lispector, andaste em longas caminhadas com Machado de Assis e ainda  debruçaste com Gilson Chagas em ‘Música para Pensar’.
— Livro é uma pedra sobre a qual o cancioneiro entoa seu canto. Se não cantarem a tua canção, ela ficará nos ares, até que uma criança a recolha numa peneira. Mas, se trabalhares apenas com produção independente, qual é tua motivação para escrever?
— Tento compreender tuas ideias, nem sempre acordes aos meus projetos.. Escrevo porque as palavras precisam sair do dicionário, tornarem-se vivas. Suponhamos que certo povo resolva falar utilizando somente gestos, em pouco tempo, todos ficarão mudos. A escrita, mantém a oralidade viva, portanto, escrevo para que a língua não morra. Então, quando não houver mais fazendeiros nem ciganos, saberão que eles existiram, porque eu escrevi sobre eles.
— Por isso escreveste também sobre corruptos,  ladrões, e devassos?
—  Ninguém  consegue criticar uma obra, com isenção de ânimos, se não analisar primeiro os  fenômenos de linguagem e as técnicas utilizadas para construir as imagens. Propus um romance escrito a duas mãos. Se queres analisar obras literárias, escreve tu mesmo o teu Ensaio e não conte comigo para isso.
Sem graça, Robert   manuseia um kit de leitura apanhado no canto da mesa.
— Palavra de Honra! Eu só quis excluir episódios que não se harmonizam com o tema. Se não deres ênfase a determinado fogo, não conseguirás romancear ideias.
— Quem  te disse que pretendo romancear ideias? Falo das pessoas e daquilo que se move dentro delas.
 — Não sugeri que oferecesses água com açúcar. A vida é doce, mas também tem momentos de amargor. Calma! Não precisa acordar Gibran, já o tenho diante de meus olhos.
— Não se calculam o valor de uma obra pelas horas trabalhadas nela. E sim pelo tempo que ela permanecer na memória coletiva. Só quem conhece a linguagem do moinho, reconhece a voz do vento.
— Ouço a voz do vento soprando as narinas de Sancho Pança.
Riram.
 E, por mais que Robert   insistisse em deixar fora o gol de José Américo, Ravenala  distraiu o goleiro adversário para que a bola entrasse livremente.
—Podemos fazer um ensaio e depois transformá-lo em romance — Retomou Bob.
— Vamos então transformar os setenta capítulos em trinta  ou trinta e um? 
— Não quis dizer que devêssemos enxugar tanto. O enxugamento rigoroso traz o risco de descartar precioso tesouro. Enxugue leve.
— Enxugar gelo?
— Quero dizer — Deixe lacuna para o leitor introduzir ali sua participação, e vestir-se com o texto — a frase não é minha, mas cabe em seu estilo. 
— Não sei se devo acreditar em tudo que dizes. Ora és governo, ora oposição. 
— Ligue se precisar de alguma coisa. Não posso perder o prazo de entregar meu trabalho de conclusão de curso.
— Isso é um pedido de demissão?
—Não. Afastamento temporário.
Durante a semana seguinte, ela trabalhou sozinha na construção do livro. Publicou fragmentos em sites de literatura e tomou birra de Lygia e de outros poucos escritores  cujas obras permaneceram no Portal Literal. O Portal não estava mais aberto a novas publicações gratuitas, nem pagas. Ali conhecera gente talentosa, ainda não renomada, mas, no futuro, poderia vir a torna-se bom profissional das letras. Irada, viu lagartas verde, amarela e de todas as cores, roendo o tronco do jenipapeiro. Sonhos e pesadelos, Ravenala tinha com seu avô Generoso. Mas o fazendeiro recebera honras de estadista e fora enterrado no cemitério de Sete Passagem, com direito a marcha fúnebre executada pela Banda Municipal de Montes Claros. Certa noite, ela  ajustava o final da última página. Clicou em recortar, com a intenção de dois  parágrafos. Desligou o computador e foi dormir.  Só no dia seguinte, percebeu que havia perdido o livro. Restava menos de meia página. Sentiu mal e vomitou. Sabia que mão invisível apagara o livro. Aquela mesma que sempre procura  apagar a vela que o cristão acende para Deus. Ela porém, refez a escrita, até aonde sua memória lhe foi fiel e passou a chamá-la de ‘Estrada sem fim...’ Alguma coisa, no entanto,  se perdeu como também se perderam cartas dos apóstolos, e parte do livro de São Luís Maria Grignion de Montfort, mas o que restou, é suficiente e capaz de salvar almas. 
Robert também trabalha só. Ora relendo rascunhos de “Estrada sem fim”, ora refazendo páginas do TCC.Precisava enxugar seu  Trabalho de Conclusão de Curso. Poluído, dado o excessivo  de citações: 
 
A personagem Plana é mais simples... Já a personagem   Redonda é complexas. Tem boas e más qualidades. Evolui durante a narrativa...
 
Estudava conceitos e já os tinha praticamente de cor, quando lhe bateu uma fome de cachorro sem dono. Seguiu a Mariz e Barros até o supermercado, e com seu sotaque meio nordestino, meio carioca e quase mineiro, dirigiu-se a um velho que atendia no balcão de carnes.
—Quero comprar músculo de boi para fazer um cozido de panela. Conheces aqui esse músculo como paulista ou lagarto?
— Tanto faz!...Paulista e lagarto são a mesma coisa. Queres Plano ou Redondo? 
Afastou-se pensativo: “Plano ou Redondo! Que sabe um açougueiro sobre perfil dos personagens?”  Retirou-se, sem comprar a carne. Perdera a vontade de comer. Noutra oportunidade, faria o assado de panela, e serviria regado a vinho tinto, na esperança de que Ravenala, sorvesse uma taça, para  ir se acostumado com os modos dele. Não era alcoólatra, mas não podia esconder gosto por uma cerveja gelada. Fumava mais do que bebia. Controlava o vício da bebida, mas do tabagismo, não conseguia controlar. 
Tomou rumo de casa, sem nada comprar de suprimento para a geladeira.
Atravessou a rua. Parou numa esquina da Mariz e Barros, bebeu uma cachaça e pagou outra para Anacleto que exibia o retrato velho de um menino, quase chegado a rapaz.
— Este é meu filho, quando tinha quinze anos. Hoje, é  o melhor jogador alvinegro.
Bebeu outra dose, e pagou mais uma ao Anacleto. Mastigou chiclete para dissimular o bafo da pinga, e andou devagar, enquanto questionava: ‘será que existiu muitas Eva? Talvez sete como disse certo cientista maluco,  do contrário, os descendentes da primeira mulher teriam sido resultado de incesto. Talvez um só Adão e muitas Eva,  pelo menos assim, irmão se casariam  com meio-irmão. Deixou de lado os cruzamentos e examinou, etimologicamente, o nome Holofernes, tentando formar algum conceito que designasse luz e inferno, claridade e trevas. Então o inferno é aqui e tapou o nariz para não sentir o cheiro da creolina que os cariocas derramam debaixo das marquises, para afastar os moradores de rua. Sem pressa, fumou um cigarro. Deu outro a um mendigo.
— Concluíste o teu TCC?
— Quase quê. Agora meio perturbado com a participação de um açougueiro.
— Pesquisa de campo?
Robert preferiu contar o vexame que passou, ao procurar um lagarto no açougue para fazer um assado de panela.
— Ainda preciso excluir alguma coisa, e incluir outras.
— Como em Estrela que o vento soprou?
— Ih, o livro tem novo título? Gostei muito de “A dama do metrô.”
— Gostou da dama do metrô, ou do título do livro?
Robert enrubesceu.
 Ora, se a presa é grande, maior e mais resistente deverá ser a teia para envolvê-la, do contrário, facilmente escapará. O mesmo ocorre com as palavras de um texto: quanto maior for o rebanho de letras, maior será o trabalho do pastor para conduzi-las ao aprisco. Com as personagens de um romance a situação é semelhante: se forem em número excessivamente grande, uma ou outra, acaba escapando, desgarrando-se como aconteceu com o amado Jorge. Ele tinha 19 anos quando resolveu tocar um rebanho muito grande e acabou perdendo algumas ovelhas no caminho. É preciso juntar as pontas, alinhavar o texto, costurar o  pano, depois, arrematar, aparar arestas. Respirou fundo e continuou.
 A própria personagem pede trabalho e  ajuda na confecção de sua fala. Torne-se amiga íntima dela, e ela te ajudará a construir a trama. Virá dialogar contigo e até sentar-se em teu colo.
— Alguém cunhou esta frase antes de ti.
— Não há nada novo debaixo do Sol. Não raras vezes, quando o criador se encontra com a mulher por ele idealizada, casa-se literalmente com ela, porque constrói para si a mulher perfeita.
— Isso é impossível!
— Como não? Conheci um escritor que se apaixonou por uma personagem. E ela passou a ocupar, não só seus sonhos literários, como também suas vigílias. À noite, acordava chamando o nome dela.
— Fantasias! Muita gente tem fantasia. Ela pode ser boa ou má. Se for má, transforma-se em pesadelos.
— Quem é louco de criar fantasias ruins? Fantasias são, muitas vezes, resultantes de um desejo. E só se deve desejar o que é bom.
Robert   fez  silêncio, para assegurar-se de que não ia revelar os segredos de seu coração. Não sabia se a polução noturna que tinha era de origem boa ou má. Como examinar os frutos, se ela não dava fruto algum? Era uma figueira estéril... Não ele. Talvez ela, porque só chegava em sonho. E se Ravenala fosse realmente, estéril? Teria ele motivo legal para separar-se dela? ‘Para de devaneios, Bob! Tu és solteiro, porque se preocupar com cruentas realidades que atormentam os casados?’ As fantasias boas ou más, não são convidadas, chegam atraídas por nossas inclinações. Pensamentos alimentados durante a vigília apresentam-se como temores noturnos ou sonhos coloridos. Cada um cria seu próprio mundo, a partir de seus desejos. São eles que alimentam os sonhos ou  os pesadelos. E têm o poder de tornar real aquilo que fora antes apenas um sonho.
— Concordo — disse Ravenala  — Agora retornemos o trabalho. Expões muito bem  visões filosóficas, fantasias, insônias e pesadelos. Mas não me apetece discorrer sobre polução noturna. Esqueçamos as estradas vicinais e abracemos os problemas mais relevantes afetos à sociedade pós-moderna.
— Guardemos o tabuleiro. Já me deste xeque-mate.
— Travamos um jogo de palavras. Não de xadrez.  O narrador  deve ser fiel a quem lhe emprestou a pena. Eu penso e tu escreves. 
—Falou a voz da autoridade — disse ele em tom zombeteiro.
— Rendo-me às evidências. — disse ela — Se tu não fosses bom no jogo, eu não o teria convidado para uma partida. 
Abaixou orelha e com todo sacrifício do raciocínio, entregou novos rascunhos a Robert, submissa, como Helena se entregava a seus maridos. Nada obstante, no canto do olho, escondia uma réstia de autoridade e, ironicamente arrematou: ‘Se vires algum erro na tradução do latim ou do grego, não te acanhes em consultar São Jerônimo; o dicionário de Renzo, e confessar com Santo Agostinho.” Deu um leve sorriso e continuou — ‘Se o erro  for na tradução do Inglês, consulte dona Alaíde, ela sabe muito! Nunca  confie, cegamente, na Internet, a tradução pode não ser fiel’. 
Sem pagar os direitos sobre os beijos atrasados, Ravenala demitira Amarildo. E faria o mesmo com Robert, se ele se desequilibrasse na falsa baiana, durante a travessia de obstáculos. 
 — Joguei um capítulo na lixeira, disse ela.
— Não deveria — livro não chega pronto e acabado  como o ovo que a galinha solta na esteira de produção. Recebe-se uma luz com  registros codificados que emergem do   inconsciente, às vezes chegam como sonhos em vigília. ‘Quem é capaz de romper o selo’ e decifrar os sonhos? Alguns resultam de uma verdade  escondida que  se revela e faz coro com a razão. São memórias  passadas de nossos ancestrais, unidas por um fio à realidade do agora.  Parágrafos e capítulos inteiros surgem desordenados, e  com isso, contraímos nova missão: por a casa em ordem ou ordem na casa. Tudo se faz com inspiração. Nada sem transpiração. Seria bom se  pudéssemos escrever sem pontuação alguma e depois disséssemos: “Ordinário, marche!” e todos os pontos, e todas as vírgulas e interrogações tomassem seus postos. É preciso que depois do lampejo, venhamos  com mãos de aleijadinho e transformemos a pedra-sabão  em arte, e no final, sobra pouco do que se tinha antes. 
Apanhou o rascunho atirado no lixo e  leu devagar: ‘Isto aqui... Isto aqui é um capítulo do livro! Posso começar um conto a partir de uma frase, um poema, uma música... Se eu tiver o tema, as palavras surgirão borbulhantes, alimentarão as torrentes  de um rio que desaguará  em um  mar de ideias.  O leitor espera, por algo que seja um caldeirão fervente de cenas, cenários e ação, porque as digressões são cansativas. Muitos, reconhecendo essa técnica  saltam as páginas que discorrem sobre um regato louro.
— Sabes que é no ‘regato louro’ que a literatura acontece. O  foco narrativo se  esgota nos primeiros parágrafos. Clarice era mestra em  beber água do regato louro. Pensar em regato louro. Exatamente porque não existe regatos louros.... É assim que se escreve.  
— Pode ser!
— É...Aquilo que parece digressão, na  verdade, é momento propício para refletir. O escritor aproxima-se do leitor e propõe o debate e lança uma pedra no regato louro: ‘Quantos tempo vive uma pedra?’ E qualquer resposta que obtiver será tomada como reflexão. 
Ouviu o eco da voz de Umberto, refletindo sobre o que pensa uma pedra, e se sentiu no dever de explicar a pedra que foi para ela, falar de percalina-verde-drummond, arrancada da boca de Boitempo. E, embora tenha dito que muita coisa de seu livro era de autoria do pai, esquecera-se de mencionar o avô. Ora, se Corina vendeu a coleção encadernada em percalina, verde sem ler, Chanana  que à época tinha sete anos, também não deve ter lido. E muito menos Dulcineia que  saiu de Montes Claros, enrolada em cueiros de três   meses. Só havia duas possibilidades:  a primeira é que nada impedia que o avô tenha produzido aquela escrita; a segunda e a mais provável é que Jeremias,  mesmo não tento alcançado a Coleção de Obras Célebres, estabeleceu  um diálogo com ‘Boitempo’ para homenagear o poeta mineiro. De qualquer modo, Percalina-verde-drummond presta homenagem não apenas a Carlos, mas se estende a todos os poetas que esperam tanto a ressurreição dos mortos, quanto a consagração da poesia. Ravenala sabia que o pai participava de antologias e mantinha os livros escondidos em um quarto dos fundos. Sabia  também que sua mãe era uma pedra-pomes, um pomo de discórdia saído das lavas de um vulcão em atividade. Pensava  a mãe como uma pedra? Será que as pedras guardam o registro de tudo que aconteceu em sua vida pétrea? Se uma pedra nunca foi esmagada  e sendo uma pedra dura de roer, por quanto tempo durará a existência de uma pedra? Pode uma dinamite que explode uma pedreira, por fim a vida de uma pedra? Não a transformaria em dezenas e centenas de pedras menores que continuarão, individualmente, sendo uma pedra? Pode uma bola de fogo destruir um templo e não deixar pedra sobre  pedra? Cada pedra caída continuará sendo uma pedra, mas já não haverá mais o templo de pedra.
Parou... Pensou... 
Há coisas mais importantes do que refletir sobre uma pedra. O que pensam as pessoas sobre os personagens dos livros que leem?  Uns torcem para que Ramayana  morra, outros que ela se case com Leonardo e viva feliz para sempre. Machado sugere que se comesse uma peça pelo fim. Entre logo no ápice, atingindo a culminância nos primeiros momentos. Seduzir o leitor, contar tudo no primeiro ato, e dali em diante, desfiar os pormenores da trama, até chegar aos fatos que desencadearam o que já fora dito antes. Talvez por isso, Jeremias ou quem quer que seja que escreveu “Percalina verde-drummond”, reduziu  de 24 para 12 os volumes a coleção encadernada em percalina verde, para depois apresentar mais seis volumes e depois mais seis, abrindo a torneira aos poucos e fechando na hora certa, para que Osíris pudesse arrepender-se de tomar para si como mulher, a própria irmã. E Isis deixasse Leonardo viver seu idilio com Ramayana.
Robert   lia a cópia que recebera, fazendo anotações para serem avaliadas no intervalo da leitura.
— Já apresentaste tua percalina verde. Não convém retomar Boitempo nem  enrolar demais o leitor.  Por que dizer tão pouco com tantas letras, se podes dizer muito, com pouca tinta? 
— Preciso correr para alcançar teu raciocínio. 
A linguagem cria seu próprio jeito de adequar-se e, já não se pode mais ser tão prolixo como outrora, mesmo porque, o tempo não para, anda  à velocidade da luz. O leitor virtual tem pressa, não lê longos textos; prefere os nanocontos. O tempo urge. Ninguém para diante de uma formiga que arrasta uma carga sete vezes mais pesada do que ela. Nem cuida de um pardal que caiu do ninho.
— Sejamos,  concisos em tudo que dissermos, porque já o somos naquilo que fazemos.
— Não escrevo livro para ser ouvido. Ler, ainda é a melhor forma de exercitar a inteligência.
 Antes que a Dama do Metrô reabrisse uma polêmica sobre  assunto já encerrado, e voltasse   a afagá-lo com piparotes; Robert bocejou, acomodou-se melhor na cadeira e com as mãos metidas em luvas de seda sentenciou:
— Há muita patacoada cômica e  célula-dramática  em teu ensaio, digo conto, ou melhor, romance. Produziste quinhentas páginas, a partir de um acidente na plataforma do metrô. Aproxima-se, pois,  a hora de enxugarmos totalmente a obra e reduzi-la para 180 páginas. Devemos retirar  as garças negras penduradas como morcegos no travessão de João Cabral. E outros pensamentos alheios que utilizamos para explicar, confundir ou ganhar tempo. Façamos citações indiretas e recuos. Não gosto de aprisionar ninguém entre parênteses.
Robert   se referia às aspas, imagem buscada em morcegos grudados nas palavras como brincos em orelha de madama. Neste ponto, estavam de acordo. Ravenala queria também usar outros recursos, como realçar em itálico,  ou dizer o nome do autor, sem dizer. Não queria  entrar em guerra naqueles matos com Gregório. Mas, não  polemizou o discurso. Engoliu a seco muitas aspas e caspas que a vida lhe ofereceu. Não precisava voltar ao primeiro século antes de Cristo para encontrar Lucrécio ajoelhado aos pés de Mecenas. Encontraria em qualquer esquina um escritor vendendo o cérebro para comprar leite e pão. Muitos pagam pela edição de seus primeiros títulos. Raquel pagou, Queirós também, e Coralina gastou todos os seus Vinténs de Cobre. Robert   não queria pagar para ser lido. Também Ravenala  nada pagaria a ele pela pareceria e revisão dos textos, a não ser que uma editora de renome abraçasse a causa, publicando a obra e lhe recompensasse  em dinheiro os justos e merecidos direitos autorais. Não cobraria nada dele, se ela  resolvesse publicar como produção independente. Mas não haveria produção independente. Pagar para ser divulgada estava fora de seus propósitos, neste ponto, seus anseios respiravam o mesmo ar que o parceiro. Ela  também tinha ojeriza às aspas, verdadeiras caspas poluindo os textos dos livros que escrevia. 
Abriu um sorriso sardônico e deu seu grito de gaivota: 
—Mãos à obra!
— Por hoje chega. Amanhã, em minha casa — disse ele.
Apresentou-se nervoso. Mais nervoso do que cansado de lutar para transformar o negro em branco e a brancura em negrume, retirar muitas aspas e caspas do livro da vida. Não acreditava na versão que o pai houvesse morrido, mas não podia dizer que a  mãe mentia. Era preciso descobrir. Estava cansado de procurar por fisionomia parecida com a dele. Nalgum momento, teve vontade de perguntar a qualquer transeunte: ‘Você é meu pai?’ E sentia-se feliz, quando Ravenala o chamava de maninho. É bom ter um irmão. Melhor ainda ter mãe e pai, pensava Robert  .  Sua mãe quis revelar alguma coisa, mas o aparelho fonador de dona Leide, não obedeceu à ordem do cérebro e lhe calou a voz. Fechou, não só a boca, também os olhos, ouvidos e mente... Tentou balbuciar alguma coisa e deixou escapar o monossílabo: ‘Jêêê...’ Muitos santos  morreram assim: pronunciando o nome de Jesus...jééé... Aquelas quatro letras ditas com dificuldade, não apontavam com segurança para uma paternidade, a não ser a  de Jesus, para os cristãos, que o chamam de Pai, irmão mais velho e Salvador. Robert   se sentiu um cão sem dono a procurar na praia seus segredos, anseios e medos arrastados por uma corrente de incertezas. Sentia-se só, sozinho, abandonado no mundo. Por qual crime teria sido exilado do convício com os seus?   Que castigo é este que lhe dá como sorte a solidão do exílio numa ilha em si mesmo?  Não poderia  sair  à cata de uma boa alma que o adotasse como filho.    
***
Extraído do lviro "Estrela que o vento soprou."












Adalberto Lima










Enviado por Adalberto Lima em 23/02/2018

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