Nas águas do rio Negro, Solimões e Madeira.
Vi árvore inteira, boiando na correnteza.
Vi o homem exterminar sucupira, imbuia e candeia.
Fazer móvel e carvão, com teu pulmão, coração e veia.
Teve vontade de soltar a índia capturada para que ela se acostumasse logo com o pasto. Apinajé alimentava-se de carne e fruta; legumes, aceitava não. Água bebeu desde o primeiro oferecimento. Estava presa por uma corda ao coração do vaqueiro. Ninguém podia se aproximar da índia. Mas Onofre chegou perto. Perto demais do coração dela e ofereceu água numa cuité. Apinajé aceitou. Bebeu, e seu espírito ouviu a voz do Deus de homem branco, saindo do coração do vaqueiro.
— Faz-me ouvir a tua voz, ó mais linda das mulheres — disse a alma do vaqueiro.
Éfeta!
E a torre de Babel desmoronou-se. Índia e vaqueiro falaram a mesma língua.
— Posso não! O homem branco é inimigo. Mata mãe natureza, e nossa gente.
Nenhuma palavra humana é capaz de descrever o que Onofre viu e sentiu. Se a água servida numa cuia, abriu a mente da índia e lhe trouxe recordações de sua tribo, Onofre não sabia. Nem sabia se também ele, teria sido levado a conhecer o céu como em novo Pentecostes. Sentiu o amor escorrer em seu coração, como água na ribeira. Seus ouvidos se abriram à voz da alma:
— Vaqueiro ter cheiro bom. Índia ter cheiro de bicho do mato.
— Índia ser bonita. Apinajé Maxacli ter cheiro de mata orvalhada. Cheiro de ovelha lavada de chuva, leite fresquinho no curral e tupixaba molhada.
— Apinajé Caferana curar febre. Sangue quente na veia, correndo no corpo.
—Teu cheiro exala perfume de vassourinha varrendo forno de biscoito caseiro.
— Índia gostar de vaqueiro. Vaqueiro gostar de índia. Soltar índia. Apinajé livre, espírito alegre.
— O patrão faz festa hoje de vaqueiro. Vaqueiro por corda no braço de índia. Índia ligada a vaqueiro. Vaqueiro casar índia. Índia casar vaqueiro.
Era a voz de Onofre soprada por sua alma sertaneja. Não há quem possa traduzir, fielmente, a linguagem do coração. Nem precisa. Basta compreender com a alma.
— Índia alegrar festa de branco. Tocar cangoeira. Levar alegria, mandar recado pra Cuiarana. Apinajé ficar alegre curumim nascer alegre. Espírito de Cuiarana ficar alegre...
***
Adalberto Lima - trecho de Estrada sem fim...
Imagem: Internet
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