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Artigos-->BIG BROTHER, A OVERDOSE -- 27/02/2003 - 07:59 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
BIG BROTHER, A OVERDOSE

No primeiro dia — sem televisão — foi um deus-nos-acuda. Queria morrer. Sentia o cérebro oco pela falta daquele plim-plim incessante. Era como se tivesse perdido a razão de viver. Ora ocorria-lhe uma sensação de vazio que nascia nas fontes e escorria por todo o corpo até chegar aos pés. Provocava-lhe uma espécie de dormência, um formigamento. Não sabia se ficava sentada, se ficava deitada, ou se caminhava. Não tinha canto. Ora sentia-se como um corpo sem cabeça e, meio histérica, para certificar-se do contrário, a apalpava, girava-a de um lado para outro — igual coruja — ou como se fosse para organizar as idéias.

Passado a fase crítica, a razão deu sinal. Mas desesperava-se, ainda. Brigava com as crianças, tomava água sem parar, mexia nas panelas, premeditava a vida sem a TV ( segunda, a quarta o domingo... Ah! O domingo não teria mais sentido). Chegar em casa e ver a sala muda, parada, comungando com a morbidez de um domingo à tarde, dava-lhe calafrios. Cheirava-lhe depressão.

Passaria a comer mais, ficaria gorda, seria rejeitada. O marido brigaria por causa dos vestidos e os filho por causa das blusas, mas jamais a chamaria de gorda. Depois iria ao analista. Poderia apaixonar-se por ele. E ele, ao traze-la para realidade, a aprofundaria mais nas suas decepções e a faria sentir triplamente rejeitada. Voltaria a fumar, beber, se embriagar. O que fazer em casa, na sala, na cozinha, no quarto? De tanto pensar, adormeceu-se.

No segundo dia ela sente que o corpo está melhor. Mas aquele vazio na cabeça ainda lhe incomoda. Vai trabalhar e as dúvidas existenciais voltam a lhe corroer. Irrita-se com as colegas, fica meio deslocada. Quer ficar só, questionar-se, reencontrar-se no vazio.

Que sentido tem a vida sem as ilusões ocultas, sem a infidelidade solitária na frente da tela? Sem o corpo e o jeito de amar que ele tem para com ela e que nunca tive? Ele é feliz, está sempre sorrindo. Ele é lindo, não usa peruca, não envelhece..., ele mora numa mansão, anda de mercedes, viaja de avião, mora, uma temporada, no Brasil, outra na França, outra no Marrocos, tem negócios nos Estados Unidos, e eu aqui, sem televisão, tocada neste meio de cerrado chapado, sem que me permitam ver o horizonte.

Ao cabo de três dias vence a primeira barreira do vício. Fica mais calma. Põe um vestido mais leve, fica sem sutiã e começa a andar pela casa descalça. Quer experimentar a natureza. Senta no sofá de quinze anos e surpreende-se. Oh! Ele é azul. Pega uma almofada, aperta-a e percebe que os flocos já estão fatigados, olha para a estante e nota o badulaque que está ali, exatamente no mesmo lugar, faz quatro anos, fica mais bem disposto do lado direito da estante. Nota que o tapete está com um cheiro de mofo, sente dor na coluna e deduz que a mola do sofá já está quebrada. Acaba de jantar, reclama da acidez da salada, e, imediatamente, é compelida a ir ao banheiro escovar os dentes. Volta à sala e sente uma paz profunda, interrompida pela voz de uma criança que diz: “Mãe!” Olha para o filho e exclama: “Você está lindo, como você cresceu”.

Do quinto dia em diante dava sinais de que havia recuperado a audição, o paladar, o olfato, o tato e a visão espacial. Já mastigava a janta e saboreava a salada. Depois, abria a geladeira e comia gelatina. Descalça, sentindo o frio da cerâmica, ia até a rua para ver o escurecer. Coisa estranha o escurecer, intrigava-se. O sol se põe de verdade, os pássaros se aconchegam nas árvores, as pessoas passam apressadas, fecham os portões e se recolhem. Ela acha bonito o poste, a luz de mercúrio, a rua, a calçada, a grama, o pé de beijo no jardim, a coruja que sai atrás da caça... e acaba por descobrir que o mundo é real.

Os dias que se seguem, conversa, anda, gesticula, lê livros, e, mais crítica, sem exageros, assiste televisão. Assiste, mas formou uma opinião pessoal de que o mundo, lá dentro daquele tubo de vinte e poucas polegadas, é pura ilusão, igual por demais, e que o único mundo em movimento, cheio de novidades, é esse mundo aqui fora, que o homem pensa que é capaz de colocar, através de feixes elétricos, dentro de uma cápsula de gás, para ser consumido, só, e somente só, segundo a sua receita de massa. Por isso ela já antecipou que não vai assistir “Big Brother”. Tem medo de dar uma recaída. Dizem-lhe que este programa é uma overdose.

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