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Artigos-->A Confissão do Artista Quando Jovem -- 26/02/2003 - 23:10 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos






E isso tudo corre e se conecta e produz e consome

E como Henry Miller eu posso dizer

‘Amo tudo o que corre, inclusive o fluxo menstrual dos óvulos não-fecundados’.

Pedro Moraleida



Neste texto abordo a obra propriamente dita de Pedro Moraleida, que parece-me assentar sua base no duplo sentido possibilitado pela palavra escatologia. Essa palavra, ao mesmo tempo em que se refere ao estudo dos excrementos (eskátós, em grego, quer dizer fim, e lógos se refere ao processo de racionalização) refere-se também a toda doutrina do fim dos tempos. Uma de suas séries, a germânica, tem como título as seguintes palavras: “capela sistina e escatologia”, o que confirmava que o artista tinha consciência dessa relação da qual estou falando.

Explorando também a mesma ambigüidade presente na palavra obra, o manifesto intitulado Os 4 Conceitos fundamentais do meu trabalho ou O Conceito Fala Por Si Mesmo Ou Mesmo O que Não Se Pode Falar Deve se Calar começa o debate escarnecendo de todo e qualquer debate. E, mesmo assim, diz Moraleida que:



À noite nas clareiras, iluminados pelo fogo, à alta madrugada, ainda despertos, debatemos fervorosamente as grandes questões, os mistérios profundos, a dor da existência e os conceitos de merda. Ao nascer da alvorada acordamos e nos banhamos no mais frio dos lagos afim de estarmos rígidos e ágeis para um dia de perigos e fatalidades. Ao longo do dia nos debatemos com monstros terríveis e nos esforçamos em um portentoso trabalho conjunto afim de dilacerar a carne das piores bestas. (MORALEIDA, 1998, p. 2)



E dilacerando segue esse manifesto, que exprime “conceitos de merda” sobre a “obra”. O primeiro conceito, difícil de ser discernido, sobrenada em um diálogo feito de carne: olhos furados, bola do saco esquerdo, quarto dente do maxilar inferior. Um sujeito fragmentado, romanticamente desesperado, tentava “decapitar tais lesmas ignóbeis” de seu mundo interior, mas o que obtinha era um prazer criativo torturado, “prazer que eriça os cabelos de ambas as bolas do meu saco assim como dilata as pupilas de ambos os meus olhos furados”.

O segundo conceito, mais próximo do duplo sentido acima referido entre obrar (defecar) e gerar uma obra, nasce da “conversa da minha bola do saco direita com o meu orifício anal quatro horas após o horário do almoço”. A bola fala da “beleza do nada, de tudo que está escondido, escamoteado por baixo das paredes dos sólidos perfeitos”. Moraleida equaciona a tinta sobre o papel secando com a vivência transcendente de expelir o sagrado excremento: “Sim, veja como é belo esse imenso bolo que seca ante os raios do sol. Os fedores da bosta contra os raios do sol!”

Isto posto, as pinceladas do manifesto se dirigem, com mão rápida e sôfrega, para o pênis (que tem em sua origem etimológica o termo pennicillus, bastante próximo da palavra pincel), e trava um diálogo exacerbado com o olho esquerdo furado (pela castração?) O pênis, como dizia Freud, se distende para penetrar nalgum orifício, e os “lábios da vagina aberta” são um dos locus preferenciais. A obra, como o Zaratustra de Nietzsche, é “para todos e para ninguém”, daí a voracidade masturbatória. Num dado momento do manifesto, Moraleida enumera “maravilhas da humanidade” que perseguiam os artistas, provavelmente colocando na lista os seus terrores íntimos:



A baixa auto-estima, os delírios persecutórios, as manias obsessivas, o desprezo pela vida, o pânico dos semelhantes, a incapacidade de discernimento, as mudanças bruscas de temperamento, as disfunções sexuais, a incapacidade de comunicação, a tendência ao vício, o abismo do desespero, o desânimo para qualquer coisa, o isolamento social e tantos outros presentes divinos? (MORALEIDA, 1998. P. 9 )



Outra questão fundamental que o artista colocou entre a cruz e o excremento: será possível superar o niilismo contemporâneo? Como superá-lo? Moraleida tentou desesperadamente essa superação, descrita acima com todos os seus piores e mais destrutivos sintomas. Mas registrar esse niilismo não é dar cabo dele.

Na busca da superação dessa “vontade de nada” é que Moraleida expelia seus “fluxos plenos de desejos”, pintando quadros superpovoados de vaginas que gozam em meio a crucificações, pois “é tudo verticalidade profunda”. Mobilizados sempre contra o homo erectus, os exércitos erotizados de formigas, ratos e demais monstrinhos alucinatórios combatem uma batalha que o artista orquestra em suas canções desafinadas, nietzschianas e bêbadas. Examinando golfadas de Artaud, Camões, Iessiênin, distinguo o Moraleida que cursou Letras antes de entrar para as Belas Artes. Examinando os tais monstros que superpovoam os quadros, lembro de Hieronimus Bosch e a Renascença, período com o qual Moraleida dialoga. No onanismo terminal, o artista esbarrava com Cristos (hetero, homo e bissexuais) de paus em riste, poemas e frases que dançam ao se despedaçar: “não existe relação sexual” e o poema de despedida de Iessiênin, simbolista russo que se suicidou pouco antes de Maiakóvski: “Se morrer nesta vida não é novo, tampouco há novidade em estar vivo”.

A preocupação com a renovação implica na idéia de gasto; se os burgueses economizam, o artista e onanista gastam, atendem aos chamados vitais; gastam e se desgastam. A esse respeito diz Michel Onfray:



Só sinto desdém pela parábola dos talentos e o filho pródigo me agrada principalmente quando ele dilapida. O agiota, o banqueiro, o gerente, o economista são figuras compassadas da burguesia que se definiu pelo que ela tem – visto que ela é essencialmente dominada por essa gente. Desejo para essa corja uma geografia aparentada às regiões utópicas de Thomas More, onde o ouro serviria para a fabricação de penicos e correntes com as quais se prendem os escravos. Como triunfou Lênin ao anunciar que a vitória da revolução bolchevique seria total no dia em que, cobrindo o conjunto do planeta, ela permitiria, conforme seus desejos, construir urinóis públicos em ouro nas ruas das maiores cidades do mundo! (ONFRAY, 1995, p.106).



O processo criativo é um gasto, um consumo de algo: dessa forma ele foi descrito por Moraleida em seu manifesto. Impressiona-me em Pedro Moraleida o texto de desgaste. Ele finaliza o manifesto: “sou forte e abençôo”. O jornal Estado de Minas o descreve como promissor artista mineiro, falecido muito prematuramente. O papel encalacra Moraleida numa Minas marcada pelo catolicismo. O artista respondeu de maneira exaltada a esse tipo de chamado:



E agora tudo o que posso fazer aos que não compreendem e pretendem para gozo próprio arrancar-me explanações é erguer o terceiro dedo de qualquer uma de minhas mãos e num amoroso gesto dizer-lhes adeus. (MORALEIDA, 1998, p. 10 )



Esse fragmento deixava entrever a ternura até mesmo em meio ao gesto mais feio e obsceno. Moraleida pintava o amor, e buscava redimir até a feiúra da pornografia. Interessante comparar com o quadro de Andy Warhol (Mao, 1972, acrílico, óleo, serigrafia) com o quadro de Moraleida (capela sistina /escatologia/série histórica; acrílica, óleo, guache e lápis de cor sobre papel) em que Mao Tsé Tung vende um anúncio pornográfico dizendo em inglês algo como: “Veja o líquido dourado escorrendo dos lábios de minha vagina e então direcione o seu jato para mim e deixe que o líquido quente cubra todo meu corpo”. Compõem esta série intitulada também “capela sistina, escatologia, série histórica” imagens com as mesmas características retratando Fidel Castro, George Washington, Abraham Lincoln e John Kennedy vendendo anúncios pornográficos. Somente Abraham Lincoln permaneceu com o mesmo sexo biológico (e ele pede: “masturbe comigo, por favor”). Os demais colocam a questão da androginia, pois apareciam pedindo para serem devorados, corpos desenhados com pinceladas exaltadas, pernas abertas.

Por sua vez, Andy Warhol pintou a face serena de Mao, com as cores azul e amarela; Warhol estava interessado na ampla reprodução dessa imagem e em sua aceitação pelos jovens contestadores da Europa e dos EUA depois de maio de 68. Já a visão trágica de Moraleida estava mais para tango argentino: misturavam-se prostitutas, astros pop e líderes capitalistas e comunistas, e tudo no final vai dar em nada, dá no mesmo, no mesmo lodo estamos todos manuseados. Warhol, por outro lado, tinha uma aceitação positiva do mundo, e seus quadros, filmes, diários e livros se limitam a registrar o mundo do consumo, captando seus fenômenos sem fazer deles um julgamento ético. Um quadro chamado Série Retrospectiva, Preto sobre Preto, em Negativo, mostrava bastante essa mistura heterogênea que Warhol registrava, sem deixar indícios ou fazer julgamentos de valor: misturavam-se sucrilhos Kellogg’s com Mao, carros arrebentados com Marilyn Monroe, uma cabeça de vaca e a famosa latinha de sopa Campbell’s. No entanto, Warhol jamais focalizou a pornografia. O tratamento dado a Marilyn Monroe foi respeitoso, consagrador e até puritano, se comparado com as figuras de mulher que aparecem nos quadros de Moraleida.

Moraleida fez uma arte que dá o que pensar. Recorre ao figurativismo, mas sem obviedade ou comercialismo. Trata-se uma operação de choque profanador, mais do que de pretensão de transmitir ensinamentos. Como diz a respeito dele Marcos Hill:



Sua vontade de reinventar o mundo a partir de convicções firmes, localiza-o na primeira pessoa do singular, de onde o Moraleida consegue a árdua tarefa de anunciar o risco de se perder a esperança. Contaminando o convencional do divino, Pedro propõe, com todo tipo de subversão, uma poderosa relativação dos hábitos cotidianos. Na pornografia e na mutilação, o artista evoca possibilidades de purificação que reverberam práticas ancestrais de ritualização da origem. Trata-se de uma atmosfera mágica que é emprestada para o desmascaramento das imagens que fazem de conta no contexto urbano.

Cruzes invertidas, a valorização dos orifícios do corpo e de seus fluidos, toda ação fisiológica que independe do controle racional aparecem direcionando uma purificação revestida de ironia e sarcasmo. O homem contemporâneo é substituído pelo ancestral primata como artifício poético que resgata o que Moraleida ainda julga intacto. (HILL, 2001, p. 2)



Para representar as obsessões acima comentadas, Moraleida criou seus personagens. Mas as figuras que surgem não são óbvias, decorrem de um fluxo do inconsciente, e de uma razão que não dá conta dos desgostos do mundo. Moraleida manipulava com audácia a tradição erudita européia e a arte Pop americana.





Bibliografia:





FROTA, Gastão. Pensar, Sentir e Expressar. Nova York, mar. 2002.

HILL, Marcos. Um Demiurgo Atormentado ou Comentários Sobre a Obra de Pedro Moraleida. Belo Horizonte: ago. 2001.

ONFRAY, Michel. A Escultura de Si. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1995.

MACIEL, Emílio. Ruído e Silêncio em Dois Textos de Moraleida. Belo Horizonte, 2001.































































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