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cronicas-->O MUNDO PITORESCO DOS TRANSPORTES COLETIVOS -- 10/07/2007 - 18:07 (José Virgolino de Alencar) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
(Essa crónica, longa, falando dos transportes coletivos, lembra de uma época que está bem pra trás. Foi uma reportagem com a qual concorri a um concurso para repórter do jornal O Norte, tendo recebido menção honrosa. Republico para reavivar a nostalgia dos bons tempos da João Pessoa bucólica, tranquila e sem violência)
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Durante alguns dias, saí tomando os coletivos de nossa cidade. Pretendia fazer uma reportagem sobre o sistema de transporte de massa e as consequências que seu mau funcionamento traz para os cidadãos de uma metrópole emergente como João Pessoa. Andei, assim, atento aos vários aspectos de um sistema que diariamente força a convivência, nos limitados recintos das carrocerias, de pessoas de diferentes classes sociais, bastante diversificadas nos seus problemas e comportamentos.

Alguém já disse que a multidão é um monstro de múltiplas cabeças. Em festivais, comícios, cinemas, onde quer que estejam reunidas pessoas de meios e classes heterogêneos, vemos comprovada aquela afirmação. Na hora das vaias, todo mundo grita. Nos bingos que tempos atrás eram realizados nas praças da cidade, os números que insinuavam duplo sentido eram recebidos com gritos e assobios da massa ignara. Em proporções menores, a massa de passageiros dá os seus berrinhos. Principalmente quando a maioria é de estudantes. Sai palavra de baixo e alto calão, espinafram a mãe do motorista e do cobrador, quando não a do colega.

Os coletivos, todos sabem, tem a virtude de não esgotarem a lotação. Sempre cabe gente. Surge, então, a briga pelo pedacinho de ferro onde se quer segurar. Há ocasiões em que a gente bota a mão e não consegue mais tirar. Falta espaço até para se mexer. Onde cabe um tem três, naquela simbiose de casal de namorados. O sujeito que está lá atrás e pede parada sabe que vai sofrer para sair. O cara mais vivo aproveita aquela freada que o motorista dá para ser espirrado do veículo. Ocorre, muitas vezes, que os ónibus velhos não têm freios, parando a quilómetros do ponto desejado. Naturalmente o cara salta duvidando da competência do motorista, mas não é louco de falar nada. Reclamou, o pau cantou-é o slogan dos motoristas.

Ruim mesmo é quando entra um bêbado, raciocinando contra a lógica do coletivo e querendo ocupar o lugar de duas pessoas. Pisa o pé do vizinho, passa a mão onde não deve e dá alguns porres de cachaça, achando, ainda, que está sendo perturbado. Pelo menos ele faz o que os outros passageiros têm vontade - desabafam alguns bons desaforos em cima do motorista.
Às vezes, senta ao lado da gente um cara com vontade de extravasar algum problema e desfila uma conversa fiada, desagradável - um saco. Nos dias de feira, há os que levam o balaio, porque não sobrou nada para o táxi. Os feireiros tomaram tudo.

Os coletivos da Cidade Universitária são característicos, tendo em vista a exclusiva clientela de estudantes. Estes levam tudo na gozação, reagindo com bom humor até na hora do perigo. E o perigo existe quando os ónibus descem a encurvada ladeira do Castelo Branco. Os motoristas aumentam a velocidade, botam o veículo na banguela e a menor coisa que pode acontecer é o passageiro ficar banguelo. Pois, no dia em que um daqueles ónibus sobrar na curva e tomar o rumo do rio Jaguaribe, o vóo que dará é suficiente para chegar ao céu. Bem, pelo menos chegarão lá os que não tiverem muitos pecados. E nesta viagem para o Além, o diabo é que vai.

A linha da Ilha do Bispo, que não é ilha e nunca foi de Bispo nenhum, dispõe dos mais velhos e acabados coletivos da cidade. Talvez já não causem mais perigos, já que não podem correr - o motor não aguenta. As ruas da Ilha, esburacadas, são uma ameaça aos rins do passageiro, tanto são os sacolejos. É provável que os donos dos coletivos estejam loucos para fazer uma troca d´ilha.

Para Bayeux, a gente toma o coletivo sempre lembrando que a ponte sobre o Sanhauá ameaça cair. Feita para passar carro de boi, ainda hoje resiste às gigantescas carretas, com milhares de toneladas. E não cai. Depois da ponte, entra-se no Corredor da Morte, uma rua estreita e sinuosa, dando a impressão de que foi feita para o trànsito de bicicleta. Passam dois veículos, mas ninguém explica como.

Pegar uma praia na manhã de um dia quente, pode ser o quente, mas passa por algumas frias. Primeiro, a fila que sempre mede alguns quilómetros. Quando o coletivo chega no ponto, todo mundo entra. Aí começa a fria. Num aperto de fazer sardinha pular fora, vão uns caras de tangas, sungas, quase pelados, deixando cada um cismado com o que vai atrás. Um olha para o outro e com aquele olhar malandro, apela: consciência, oh cara! E no empurra-empurra consegue-se chegar à praia. Ainda bem que o arejamento que surge na areia compensa o sacrifício e a tortura da viagem.
Sem compensação e perigosas são as linhas de Mandacaru, Varjão e Oitizeiro. Fazendo frente à brutalidade dos motoristas e cobradores, sempre aparecem alguns passageiros mais valentes e até bem armados. Vez por outra entra um crioulão monumental, parecido com uma estátua de Apolo que os antigos gregos esqueceram de esculpir e parente do gigante dos filmes de Maciste. Pois o Golias quando abre os dois postes (aquilo não são pernas), faz da gente um David imprensado num cantinho de cadeira do coletivo.

Os ónibus da Torre, que vão muito além do bairro e dão a volta nos confins de Tambauzinho, circulam em dois itinerários inversos-uns vão pela Adolfo Cirne (parte da Beira Rio), retornando pela Juarez Távora, enquanto outros fazem o contrário. O critério que os motoristas usam para alternar os itinerários não se sabe quem determina. A pessoa que mora na Juarez Távora e vê no ónibus a plaquinha indicativa daquela artéria, pode cair num logro. O motorista entra pela Adolfo Cirne e não dá a mínima para a reclamação do incauto. Este é obrigado a dar a volta ao mundo para chegar em casa. Tem mais. Quando dois motoristas da Torre se encontram, param os carros, ficam batendo um papo longo e irritante, enquanto a gente fica com cara de Adão sem Eva no Paraíso, ouvindo a serpente dizer que a maçã acabou.

Certa noite, tomei um coletivo da Torre e era uma dessas marinetes que anão em pé ainda precisava se curvar. Não tinha uma única luz, vinha usando a da Saelpa que em certas ruas também não ilumina. O cobrador, nessa hora, não tinha troco pra ninguém. Nas proximidades do Liceu, caiu a transmissão, o carro arrastou-se fazendo faísca no calçamento e finalmente parou. Essa a Prefeitura expulsou de circulação. Ficaram as grandes, embora nem tão boas assim.

Alguns coletivos, isto de todas as linhas, não têm freios nem luz, mas têm um rádio que está sempre ligado nos programas líderes no IBOPE. Tocando Waldick Soriano, Teixeirinha, Nelson Ned e similares ou transmitindo os berros de uns caretas que compraram a verdade e se autonomearam defensores e guardiães da sociedade e na sua lógica mediana apresentam soluções para os problemas que todos os estudiosos do mundo ainda engatinham no seu entendimento. A gritaria idiota agride o ouvido de qualquer cristão que no seu bom senso se vê mais enganado do que defendido.

Dessa maneira, os transportes coletivos vão servindo à população, a quem resta esperar que o progresso da cidade não se veja arranhado pela má utilização do sistema viário, cujos efeitos equivalem à circulação do sangue no corpo humano. Congestionando demais em certas artérias pode causar o enfarte.

Mas, uma curiosidade me assalta a mente - saber como são os coletivos das grandes metrópoles do mundo. Do Brasil não preciso, a imprensa comprova que o problema é um só, tanto faz João Pessoa, Rio ou São Paulo. Contudo, será assim em Nova York, por exemplo? Em Londres, parece que os ingleses gostam - os ónibus são de primeiro andar. Com aquela fleuma, inglês por aqui andava a pé. Os italianos são muito parecidos com os brasileiros - pelo menos a algazarra é a mesma, quando se juntam.

Na Rússia é o contrário, deve ser tudo silêncio nos coletivos. Nos de Portugal, agora já se pode falar.

No Oriente Médio, a coisa não se deve estar boa para o passageiro. Há o perigo de sentar-se em cima de uma bomba ou ser sequestrado pelos palestinos. Na Argentina, além de bomba e sequestro, estão mandando bala, torrando mesmo. Enquanto na Suécia o papo em coletivo deve ser bom. Dizem que o sueco só fala de amor e a sueca nem se fala. Os dinamarqueses devem exibir aqueles filmezinhos pornó até nos coletivos. Pois em toda Copenhague, é só o que dá.

Muito bagunçados são uns restos de ónibus que circulam por Katmandu, no Nepal, conduzindo hordas de hippies e desocupados, atraídos pelo "paraíso" dos tóxicos, este terrível fascínio para a juventude desencontrada de nossos dias. Os tais calhambeques, psicodelicamente pintados, parecem aqueles apresentados pelos circos e que na primeira acelerada voa pedaço de carroceria pra todo lado.

Nos Estados Unidos, onde enquanto da maternidade sai um menino, das fábricas saem dois automóveis, coletivo não tem vez. Se colocarem ónibus nas ruas de Nova York, por onde eles passarão? De tanto carro, já não sobra mais nada para o pedestre, se é que há pedestre. Quem não anda de carro em cima da cidade, anda por baixo no tatuway que o americano chama de subway, o brasileiro de metró, mas em bom vernáculo é mesmo caminho de tatu. Talvez seja perigoso tomar um "bus" nas cidades do oeste americano - pode aparecer um gaiato com a mania de faroeste, empurrar o cavalo atrás do ónibus e de colt em punho ameaçar: "come here, boy" que o medo traduz por "mãos ao alto" e Waldick Soriano por "camendiboi".

Melhor mesmo é voltar ao Brasil e visitar Curitiba, onde o Prefeito Jaime Lerner abriu uma avenida expressa, exclusiva para o trànsito de coletivos. Os motoristas devem correr tanto que não sobra tempo para xingar o passageiro. Ainda por cima, o Detran curitibano colocou càmeras de TV nas ruas para fiscalizar os motoristas. Se isso não resolver, aconselho os dirigentes: entreguem o problema a Deus, arrumem as malas e vão baixar no terreiro do Padre Merrin, o exorcista do livro de Peter Blatty.

Em Recife, que os pernambucanos considerem a metrópole do Mundo, existem os ónibus elétricos que bem a propósito economizam gasolina, circulando por itinerário bitolado e não atrapalham ninguém. Os motoristas de automóveis é que costumam atrapalhá-los. O chato é quando a companhia de eletricidade sonega a energia e os veículos têm de parar, obrigando o pedestre a usar o footbus, ou seja, as canelas.

De tudo isso, só podemos tirar uma conclusão nostálgica. Desejar viver o bucolismo da cidade antiga, andando no Landau puxado a burro, com o cocheiro gentil e cortês curvando-se à nossa subida no veículo e sendo um túmulo de discrição, principalmente quando ao nosso lado estava alguém que assim o exigia.

Madame Bovary que o diga.

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