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Contos-->A FORMOSUREA QUE SÓ O CORAÇÃO VÊ -- 10/06/2015 - 12:29 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A FORMOSURA QUE SÓ O CORAÇÃO VÊ

                           

C

onheceram-se quando Andrea tinha catorze anos e Daniel quinze. Namoraram, casaram, tiveram dois filhos que lhes deram três netos. Foram felizes.

Passado mais de meio século, Daniel olha o seu rosto sulcado por rugas, o corpo extremamente magro e a carne flácida. Pensa nas inúmeras doenças de que ela padece. Os olhos já sem o antigo brilho, a memória insegura, a apatia por tudo e o interesse por nada.

            Gostaria de poder entrar no seu cérebro e conhecer-lhe os pensamentos, que agora já não consegue adivinhar. A vida é cruel. Vai-nos construindo, passo a passo, para nos destruir depois num ritmo mais acelerado, quase alucinante.

Curiosamente, olha para Andrea e continua a ver e a admirar a sua formosura. O que Daniel vê não é só o que os olhos absorvem, mas também tudo o que a memória relembra e o coração sente.

Namoraran mais de dez anos, primeiro à antiga e depois de maneira mais moderna. Primeiro, da rua para a janela ou então, em casa, mas na presença da mãe, a simpática D. Patrocínia. Mais tarde, já após o falecimento da mãe, aumentaram as liberdades, mas havia sempre o pai ou o irmão que poderiam aparecer de um momento para o outro.

O casamento foi a libertação total e o início de uma vida a dois «até que a morte os separe». Aluguer de casa, empregos estáveis, alegrias, também algumas tristezas repartidas pelos dois. Viagens, passeios e momentos inesquecíveis.

Mais tarde, os filhos chegaram, para assim contribuírem para a continuação da espécie. E ela continuava linda, mais formosa ainda que no dia em que se conheceram.

Os anos que, a princípio, parecem não mais passar, agora desfilavam quase sem darem por isso. Dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano… Em breve, década a década.

Após os filhos, vieram os netos. A lembrança da sua passagem pela Terra estava assegurada, pelo menos durante mais uma geração. Sangue renovado. Vozes e risos de crianças, que molestam alguns mas que encantavam Daniel.

Cada vez que olhava para a companheira, mais dela se orgulhava. Souberam construir uma família unida. Os filhos eram lindos. Dos netos nem valia a pena falar… Andrea estava, para ele, cada vez mais bela. As marcas, que os anos trazem inexoravelmente, mantinham intocável a sua formosura.

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O

 inesperado aconteceu numa madrugada de Março. Quando se ia a levantar da cama, caiu. Não conseguia andar. Daniel ainda se lembra, como se fosse hoje, das palavras que ela proferiu: «- O que me está a acontecer? – Não sei o que me está a acontecer!».

Andrea já estivera várias vezes doente e fizera mesmo algumas cirurgias – uma, a mais grave, ao peito. Mas agora era diferente. Há coisas que se sentem sem se saber explicar. Começava o calvário, que dura – agora – há quase um ano. Talvez maior para Daniel, que a vê definhar. Ela parece afectada cerebralmente e pouco a pouco perdeu a autonomia, mesmo para as coisas mais elementares. Como Daniel gostaria de saber o que ela pensa, se é que ainda sabe pensar. Está apática e desinteressada de tudo. Não fixa sequer o ecrã da televisão nem pega nas revistas que ele lhe traz. Certos ruídos e vozes irritam-na. Não telefona a ninguém, o seu grande entretém de antigamente. Quase não sai de casa. Passa os dias e as noites entre a cama e um cadeirão no hall de entrada.

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N

aquela manhã, em que tudo começou (ou acabou?), foi transportada para as “Urgências” de um hospital, seguindo-se um primeiro internamento de duas semanas, com diabetes descompensados a provocarem várias complicações.

O regresso a casa e, passada uma semana, nova ida ao hospital por causa de um desmaio, devido a desidratação e a uma baixa de tensão arterial. Dessa vez, “apenas” esteve algumas horas em observação. Não ficou internada.

O Dr. Bessa Leal, o seu médico assistente, sugeriu o internamento numa Residência Medicalizada conhecida, para assistência total (medicação, comida, higiene e, sobretudo, fisioterapia). Não chegou a dormir lá a primeira noite. Uma ambulância levou-a para as “Urgências” de outro hospital, com problemas cardíacos e respiratórios. Mais três semanas hospitalizada. Regresso à Residência. Por pouco tempo. Novo internamento, com excesso de ureia no sangue e vómitos. Voltou ao local de partida uma semana depois, aparentemente melhor. 

Daniel ficou a conhecer quase todos os hospitais de Lisboa, entre internamentos e consultas. Cada vez entendia menos o que os médicos observavam e diagnosticavam. Debruçados sobre os computadores, faziam algumas perguntas, escreviam e, em breve, ouvia-se o trepidar da impressora. Eram mais medicamentos a aviar e exames ou análises a fazer… É o progresso.

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V

isita-a várias vezes por semana, na residência onde ainda se encontra. Dirige-se para lá com a mesma sensação que tinha há mais de cinquenta anos quando a ia namorar. Em vez da mãe por perto, cruza o olhar com outras pessoas que ali se encontram também a convalescer.

Fica algum tempo no quarto, para pôr a conversa em dia, dar um pouco mais de ordem aos pertences de Andrea e deixar o celular a carregar. Diz-lhe quem telefonou ou quem perguntou por ela. Lembra-se de tudo e de todos. Pergunta quase sempre se a gata tem saudades da dona. Só a memória recente está mais omissa, sobretudo no respeitante ao que se passou a partir daquela madrugada de Março. Se às vezes se arrelia, Daniel fica contente. É sinal de que ela está melhor… Paradoxos da vida.

De vez em quando, há consultas, análises ou exames mais complicados a fazer no exterior. Daniel acompanha-a nesses “passeios”, tão diferentes dos de antigamente.

Quando está na hora do lanche, vão de braço dado até ao salão onde são servidas as refeições. Pede para parar várias vezes, porque as pernas ainda não aguentam, não têm a força necessária.

Despedem-se com carícias e beijos. Antes de desaparecer ao fundo, ele olha para trás uma última vez e acena-lhe. Ela corresponde e sorri. Com a simpatia e a formosura de outrora. Os olhos de Daniel utilizam, para a ver, um filtro que se chama coração e imagens retidas de várias décadas de harmonia e felicidade. Regressa a casa com um raiozinho de esperança. Até quando?

 

NB – Menção Honrosa nos XIII Jogos Florais de Avis – 2015

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