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Cronicas-->Água Doce, adeus! -- 09/05/2007 - 18:28 (Jader Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Água Doce, adeus!

A Vila de Água Doce ainda não tinha luz elétrica. Os postes de madeira já estavam deitados nas ruas esperando pela energia que estava vindo. Lembro dos antigos moradores, inclusive o Juca, meu pai, uns sonhadores otimistas que ficavam sentados nos imensos bancos improvisados, conversando durante as tardes mornas e fazendo previsões quanto ao brilhante futuro da Vila.
Nesse tempo, eu achava que não havia diversão melhor do que os banhos de rio. Meu pai não resistia à lábia do Joaquim da Venda e nos liberava, quase todos os dias, para nadar nus e destemidos nas águas longínquas e escuras do rio Preto -verdadeira geladeira líquida que se movia preguiçosa sob a sombra dos ingazeiros.
Eu, pessoalmente, gostava mesmo das outras diversões, as esperadas com quase angústia. Elas vinham de outras cidades -eram parques com seus carrosséis e circos de lona colorida. Chegavam em espaços de tempo regulares e faziam a alegria dos meninos e de muita gente grande. Os circos já sabiam que em Água Doce não tinha energia elétrica e traziam o seu próprio gerador. A luz elétrica era indispensável, sem ela como iluminar os circos ou movimentar os carrosséis multicores? Talvez fosse por causa disso que eu aguardava tão ansioso a misteriosa e insondável energia elétrica. Assim que chegavam, os circos logo eram armados num terreno de ninguém, próximo ao meu grupo escolar, ao lado de toras de madeira gigantes, pertinho da minha casa. Tudo já estava combinado: "Os parques e os circos que chegassem na Vila eram todos meus..."
Lembro sempre de um circo pobre que apareceu um dia na Vila de Água Doce. Chovia muito, e foi por conta disso que coisas tristes acabaram por acontecer. O circo marrom nunca mais sairia da minha memória. Era um circo sem luz e em poucas horas foi armado. Tinha que ser tudo muito rápido, porque no dia seguinte haveria um espetáculo inicial. O circo tinha pressa. Seria vontade de alegrar o povo ou precisava de dinheiro? Um palhaço improvisado de alto-falante anunciou novidades pelas ruas barrentas da Vila. A voz do megafone vermelho entrava pelas casas humildes e os meninos logo brotavam felizes e excitados nas portas e nas janelas. As maravilhas anunciadas em bom som encantariam o povo, aconteceria uma coisa incrível: um bode fantástico, elegante e inteligente, subiria uma escada de muitos degraus. Era ver para crer. Foi isso o que mais chamou a atenção do povo. O povo da vila, ansioso, compareceu em massa.
Mas as longas chuvas tinham molhado tudo. As lonas laterais e o picadeiro estavam encharcados, pois o pobre circo nem tinha a lona de cima! Era um "círculo" mesmo. O povo que compareceu queria apenas ver o bode alpinista. Seria suficiente ver o bode, não precisava mais nada.
Iniciado o espetáculo, porém, o bode se recusou a escalar. Recusou por três vezes a velha e escorregadia escada. O animador, que era também o dono do circo, dava risadas nervosas. Ainda tentou por mais três vezes, mas o experiente bode não passava do primeiro degrau: escorregava e caía. Subir escadas molhadas era perigoso, os bodes têm experiências ancestrais nesse caso. O dono do bode, preocupado com a reação do povo, dizia, fazendo graça, que a escada estava "escorreganhando". Era para que o povo tivesse paciência, compreendesse, entendesse, mas o povo não compreendia, não queria compreender. O que as pessoas queriam era ver o bode subindo a escada, exatamente como fora anunciado -com chuva ou não. Seria uma glória ver o bode exibindo-se, orgulhoso no alto da escada, bem no alto, com barba, chifres e tudo o mais!
Para frustração do povo, o bode que sempre fizera aquela mesma "escalada" brincando, decidiu não se arriscar. "Escorreganhou" por mais três vezes e desistiu. Foi o bastante. O povo não tolerou e explodiu de raiva!
Eu estava lá e vi. A lona foi rasgada, os grandes biombos coloridos de vermelho tombaram. Mastros, trapézios e bilheteria, tudo foi abaixo. O circo foi literalmente pisoteado por uma gente humilde e ordeira subitamente tomada de fúria, apenas porque um bode, previdente e de princípios, decidira não subir a escada. No dia seguinte, depois da cena triste em que destruíram o pobre circo por tão pouco, as pessoas simples de Água Doce se olhavam envergonhadas. Durante semanas seguidas comentaram nas casas e nas ruas o destino do circo pobre. Cogitavam das reais causas do acontecimento triste e avaliavam o destino pouco promissor do bode rebelde.
Para mim, nada disso importava. Triste, mesmo, foi ver no dia seguinte, sob a chuva que ainda caía, o velho caminhão deixando a cidade, levando os restos do circo que o povo destruíra. Na carroceria, enrolados em trapos, tentando se proteger da chuva, os poucos artistas seguiam cabisbaixos, envergonhados e, quem sabe, famintos. Eu estava de pé na frente do bar quando passou a mudança pobre. Vi os mastros quebrados, os restos de corda e um bode sem futuro. No meio da tristeza, havia um biombo colorido que escapara inteiro. Desenhado nele havia o rosto de um palhaço triste olhando para mim. Seus olhos eram enormes, cheios de lágrimas imaginárias. Durante o longo trajeto barrento -do local do massacre até à Lagoa do Marriel-, tudo me pareceu durar uma eternidade. Os olhos "cobradores" do palhaço me olhavam censurando, botando uma culpa infinita em mim. Os olhos de lata eram como punhais. Muitos anos depois ainda os vejo chorando.
Embora eu tivesse pena dos artistas, o que mais me preocupou foi o "palhaço chorão" de tinta vermelha. O palhaço tinha vida e botava toda a culpa em mim. Tive vontade de chorar e chorei. Como uma estátua na rua deserta, eu era o único menino que se importava com o drama do circo. No fundo do meu coração de menino, alguma coisa me dizia que os circos nunca mais voltariam na minha Vila de Água Doce. Então tomei uma decisão, solidário na desgraça alheia e, decidido como um Don Quixote, entrei no velho caminhão e parti para nunca mais voltar: fui embora, de mentirinha, com o meu circo e o meu bode...



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