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Contos-->SER POBRE NÃO É SINA -- 26/05/2014 - 07:55 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

SER POBRE NÃO É SINA

 

                                                                                                                    

E

ram quase 7 horas da manhã. Numa sequência muito rápida, ouviu-se o barulho de um estore a correr e um grito longo e aflitivo, seguido de um baque surdo. Um homem que passava pelo local deu uma corrida e viu o corpo inerte de uma mulher que abraçava o corpito de uma criança que esbracejava, esperneava e chorava. Tirou o telemóvel do bolso e digitou o “112”. À primeira vista, tratava-se de uma tentativa de suicídio, em que o instinto maternal falara mais alto, fazendo com que a mulher protegesse o corpo da criança. Salvara-a, mas tinha agravado o resultado da própria queda. Ouvia-se já ao longe o som da sirene do INEM. Uma vizinha que se aproximou disse o que sabia:

- Chama-se Madalena, é casada e tem só esta criança de oito anitos. Mora neste 4º andar (e apontou). Foi despedida ontem do emprego que tinha numa fábrica de tecidos. O marido está há meses sem receber ordenado, devido a dificuldades da oficina de reparação de automóveis onde trabalhava. Não aguentou a pressão, a coitada.

Os técnicos do INEM nada conseguiram, apesar de várias tentativas de reanimação. Tinha seguramente fracturas múltiplas e muitos órgãos afectados. A criança, aparentemente, estava ilesa. Tentaram contactar o marido, mas ninguém respondeu ao toque da campainha. A viatura partiu rumo ao hospital mais próximo.

A

mílcar só voltou a casa à tarde. Há semanas que saía muito cedo, em busca de um emprego que tardava em encontrar. Tinha na caixa do correio um aviso da polícia, indicando onde devia dirigir-se ou telefonar. Confirmaram-lhe o falecimento da mulher e disseram-lhe onde deveria ir buscar a filha. Assim fez, informando desde logo (e de modo envergonhado) que não tinha dinheiro para comer, quanto mais para pagar o funeral. Além do mais, o senhorio tinha-lhes já marcado um prazo para deixarem a casa onde habitavam, pois a renda não era paga há vários meses.

S

e tivesse ficado sozinho, certamente se transformaria em mais um “sem abrigo”, vivendo de esmolas, de pequenos biscates, quiçá de pequenos roubos em supermercados. Com a filha, era mais complicado. Madalena tinha certamente meditado nisso, antes de cometer o seu acto desesperado.

Começou a pensar seriamente em emigrar. A crise assolava o país e, nos meses mais próximos (talvez anos), não havia saída possível. Nos países mais chegados, o desemprego também era imenso e havia o problema da língua, pois falava unicamente português. Para mais longe, talvez o Brasil, mas as viagens eram muito caras e ele não tinha dinheiro. Havia, no entanto, que tomar uma decisão rápida, a menos que quisesse morrer de fome. Com Joana, a saída de casa tornava-se mais difícil, pois não queria deixá-la só. Uma ou outra vez, ainda tinha uma vizinha que ficava com a menina, dando-lhe mesmo de comer. Mas não podia abusar, pois todas as pessoas do bairro viviam com sérias dificuldades.

T

inha uns primos no Rio de Janeiro. Informou-se do custo das passagens, para ele e para a filha. Era uma quantia exorbitante para as suas posses, mas estava disposto a tudo. Dar-se por vencido é que não. Para além do mais, havia a Joana, que merecia um futuro mais risonho. Chamou um ferro-velho para que lhe avaliasse todo o recheio da casa. Procurou o patrão e pediu-lhe encarecidamente que lhe pagasse “a título muito excepcional” uma parte dos salários em atraso. Tudo junto, dava para pagar as viagens e ainda chegaria ao Brasil com algum dinheiro. Comprou os bilhetes numa companhia “low cost”.

Numa noite chuvosa de Novembro, rumou para terras de Vera Cruz. Atrás, deixava um passado que fora feliz até a crise começar. Vivera belos momentos com Madalena e com o nascimento da Joana. A partir de 2012, porém, tudo de mau lhes acontecia. Era uma bola de neve, que não parava de aumentar. Os ordenados a baixarem, o custo de vida a aumentar e o desemprego a atingir números até ali impensáveis. Tinha tirado a filha da escola, por não ter dinheiro para lhe comprar os livros e o material escolar. A comida era prioritária. «Os economistas e os políticos não devem saber fazer as contas que eu faço. Para eles só existem números. Devem esquecer-se que somos pessoas» – pensava ele muitas vezes, falando com os seus botões.

Chegados ao Rio, conseguiu contactar os primos, que ficaram espantados de os ver. Pediu que lhe dessem um cantinho na casa, mesmo no chão, para poderem dormir nos primeiros dias, enquanto ele procurava trabalho. Imaginava que não seria difícil, visto que era um experimentado mecânico de automóveis.

Arranjar emprego foi efectivamente fácil, a dificuldade estava mesmo na escolha. Ficou q trabalhar na oficina de um português – o Sr. Ricardo – que emigrara para o Brasil há cerca de 40 anos. Tinha bastantes clientes. Inscreveu Joana na escola e só a ia buscar à noite. Alugou uma casa pequena em Niterói.

P

assaram-se vários anos. O senhor Ricardo, sentindo-se velho e gostando muito de Amílcar, deu-lhe sociedade. O negócio prosperava. Arranjaram mais dois mecânicos e Amílcar disse-lhe um dia:

            - O patrão devia descansar um pouco. Apareça só para nos visitar. Se quiser, venha de vez em quando almoçar connosco, para trocarmos ideias. A sua senhora já merece tê-lo mais tempo junto de si. E assim foi…   

            Joana estava agora a acabar o curso de Dentista. Logo que se licenciasse, abriria um consultório. Era para isso que o pai aforrava dinheiro em seu nome. Os dois conversavam muito:

            - A vida dá tantas voltas. Nunca desistas dos teus sonhos, filha. Luta sempre. Ser pobre não é uma sina, a menos que a miséria apareça no final da vida. Foi pena a tua mãe não pensar assim ou terem-lhe faltado as forças. Era uma grande Mulher. Afinal, pode dizer-se que te deu a vida por duas vezes…

            - Ainda me lembro dela, paizinho, e tenho saudades. Se soubesses as vezes que eu olho e beijo a sua fotografia!

T

ambém ele tinha saudades. Namoraram desde a adolescência, casaram-se muito novos e logo nascera a Joana. Ainda hoje, passados tantos anos, dava por ele, de noite, a apalpar a cama ao seu lado à procura do corpo de Madalena.

Amílcar conseguira dar a volta por cima, uma felicidade só ensombrada por aquela ausência. Uma lição ele deixava para a filha. Quando o azar bate à porta, nunca nos devemos vergar. Ser pobre pode constituir apenas uma ponte para o futuro.

- Hoje apetece-me ir jantar fora contigo. O teu namorado não vai ter ciúmes, pois não? Se quiseres, ele também pode vir. A tua mãe fazia anos hoje.

- Noutra ocasião, ele virá, pai. Hoje quero estar sozinha contigo.

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