Foi um mau pedaço aquele ano de 59. mudáramos do Brumado para Pitangui em junho
de 58 e com a compra da casa – um absurdo de dinheiro pra uma construção singela
como aquela – papai ficou descapitalizado e, pior ainda, endividado. O ordenado –
era como a gente falava salário de operário – dele e de mamãe, ia quase todo pra
pagar as prestações, não ao proprietário que só aceitava a venda à vista, mas às tias,
nossas vizinhas, que solteiras e todas empregadas na mesma fábrica, lhe fizeram um
empréstimo de emergência de, se não me engano, sessenta e quatro contos de reis. E
o que sobrava, tinha que dar pra compra dos mantimentos, sem que houvesse outros
quinhentos.
Em retrospecto, era uma situação meio fernandenriquiana em que a mor parte dos
recursos, crescente a cada mês u vez, vai pro sumidouro dos juros e outras obrigações
da dívida. Papai chegou a pensar em nos tirar da escola pra que buscássemos trabalho
e passássemos a contribuir pra formação da receita, cada vez mais rarefeita. Mamãe o
dissuadiu da idéia por mais de uma vez. Dizia que estávamos ainda muito verdes, muito
crus, pra enfrentar os sururus do mundo dos negócios, ou dos negócios do mundo. Um
pouco mais de estudo nos daria mais cabedal pra conseguir uma profissão menos brutal.
Mas o aperto continuava, feito um espanhol garrote que vai apertando o condenado
pelo cangote. E taque aborrecimentos no trabalho, alguma confusão na escola, problema
de saúde em cima disso. Dá pra ser omisso?
No meu segundo ano primário, passei a ir à escola literalmente de pés no chão.
Uniforme limpinho, pasta de couro, de três compartimentos que me presenteara o tio
Zé Velu, seleiro, mas só nisso, do avô herdeiro. No mais era um boêmio, violonista e
galanteador irrefreável. Além de fumante dos cigarros Douradinho. Suas visitas à casa
de vovó eram espaçadas, já que ele e meu papai não cruzavam bem as espadas.
Não me ocorre que tenha tido muita dificuldade em me ajustar à nova situação de
carmelito descalço. Acho que entrei de sola até. Tinha o cuidado de botar água na
baciinha esmaltada, banhar os pés, meter os cadernos na pasta e me mandar. Geralmente
sob as vistas do mano César, ainda pré-escolar, companheiro de muito brincar. Como
a aula começava ao meio-dia, pra evitar correria, precisava eu de uns 15 a 20 minutos
para descer a São José e voltar a subir ladeira até o grupo velho, por aquelas ruas
esburacadas, empoeiradas, mas as do centro, de pé de moleque calçadas. O que não
podia, era estar eu ainda a caminho e ouvir a Ave-Maria, que se tocava no alto falante
da matriz. Aí estaria atrasado e pegaria o portão fechado. E não é que, um belo dia,
tava eu em meu lava-pés, e eis que ouço uma desafinada cantoria, que era tudo, menos
a temida Ave-Maria: era o César que subira na cumeeira e soltara aquela latumia. No
fundo ele achava melhor que eu ficasse em casa pra contar-lhe estórias de castelos,
meninos e aventuras que nunca se acabavam.
Mas o dever chamava. E ia eu enfrentar Dona Zinha. Brava como ela só! Acho que
ainda sou capaz de me lembrar dos nomes de muitos dos colegas daquele ano e dos
três outros em que a gente ia mudando sempre de companhia e formando novas turmas.
Geralmente menores com o passar – ou o bombardear – dos anos.
E me sentava num desses bancos para dois, armação de ferro gusa e pranchas de
madeira, já lisinho de tanta banda que por ali sentara. Tinha por companheiro o
Raimundo, moreno-mulato, também sem sapato. E sem mãe, ainda que jovem sensato.
Já maiorzinho, seu pai dirigia o único caminhão da Prefeitura. Os colegas, ou meninos
de outras classes chamavam-no de beiçudo. Embora discordasse daquele tratamento
eu não me manifestava. Pra mim era Raimundo, e assim bastava, conversado a gente
estava.
Um belo dia, não sei se foi tia Lia, trouxe do Pará de Minas um embrulho que causou
sensação, contendo dois pares de calçados que foram do Zenrique, filho de Tia
Conceição. Já usados, mas bem conservados, a mim e ao César foram regalados.
Sapatos pra mim, botininhas pro mano. Foi aquela comoção, sábado dia da engraxação.
Enquanto lustrava os meus, que deram certinho, ficava eu gabolando: tá um espelho,
espelho tricolor! eu que torcia pro Flu, ainda que fosse unicor.
E, na segunda seguinte, ainda como se pisasse em ovos senti-me entrando triunfalmente
na sala de aula de dona Zinha, experimentando aquela confortável distância do assoalho. E no meio da aula, sentado que estava junto ao descalçado Raimundo, provoquei-o, quase cochichando: viu só meus sapatos? E você com essas pranchas aí no chão...