Caríssimos(as),
Antes de começar, quero fazer-vos uma confissão. Às sextas-feiras à noite, reúne-se cá em casa um grupinho de almas bem-querentes e melhor-falantes. Come-se (hoje foi bacalhau-à-gomes-de-sá), bebe-se e, sobretudo, fala-se. Hoje falou-se do filme de Mel Gibson, dos casamentos homosexuais de S. Francisco, das próximas eleições, e dos padres pedófilos. Tudo mais ou menos por esta ordem. Quando se chegou ao último tema, o dos padres pedófilos, já era tarde e havia sobre a mesa algumas garrafas de reguengos, vazias e empertigadas como se quisessem participar na conversa.
Daí a confissão: ponham vocês na conta do reguengos algum ponta-pé na gramática ou deslize na retórica que encontrarem no texto.
A causa imediata da discussão foi a publicação dum relatório nacional sobre o escândalo dos padres pedófilos. O estudo é o resultado de quase um ano de trabalho por um grupo de investigadores do John Jay College of Criminal Justice, da Universidade da Cidade de Nova Iorque.
O que se lê no estudo é realmente chocante.
Quando eu me criava, nos Açores de há mais de meio século, o pecado sexual era o papão com que os padres nos controlavam. Tocar no pipi era pecado. Se fosse acidentalmente era só pecado venial, mas quem mexesse no bugalhinho ficava em pecado mortal, enquanto não se fosse confessar. “Quantas vezes, meu filho? Ai, afasta de ti esses pensamentos pecaminosos. Reza, reza para não caires em tentação..”. Aquilo era como se a gente tivesse matado alguém. A mamã do Tonecas, o meu vizinho do lado, se o apanhava a dormir de bruços, acordava-o e ralhava-lhe. Dormir de barriga podia induzir em maus pensamentos. A nossa catequista ensinou-nos a sacudir aquela última gotinha de chichi com um toque de dedos na verilha, “só um, e sempre na verilhinha, tá bem?”
Masturbação então era o horror dos horrores. Chamavam-lhe o pecado solitário e acarretava condenação definitiva às penas do inferno. Isto depois da morte, porque em vida era a paralisia, a cegueira, a idiotice... e outras barbaridades sem nome. Lembram-se? Talvez muitos de vocês já se criaram numa geração mais desempoeirada... e ainda bem. De qualquer forma, era a Igreja, eram os padres que criavam estes papões que perseguiam e apavoravam as crianças e os jovens da minha geração. Agora são os padres que pervertem as crianças. Imaginem!
Segundo o estudo, quase quatro mil e quinhentos padres - 4.392 - foram acusados de cometer actos sexuais com crianças. Mesmo crianças. Um total de 10.600 crianças foram vitimadas, muitos com menos de dez anos, alguns com menos de sete.
Esta tragédia tem vindo a desenrolar-se ao longo dos últimos vinte anos, e com o conhecimento dos bispos que, em muitos casos, se limitavam a transferir o padre pedófilo para outra paróquia. Tudo em segredo para proteger o bom nome da Igreja. Agora rebentou tudo: há padres na cadeia, milhões de dólares a serem pagos pelas dioceses, para calar as vítimas, um filme sobre o assunto com o título de Padres-nossos, Our Fathers, sites com piadas de padres pedófilos.
Bom, vai longa a missiva... e talvez chata.
Um abraço do Zé |
