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cronicas-->Meu tesouro -- 19/02/2007 - 19:56 (Jader Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Meu tesouro

A chuva já durava vários dias -umas duas semanas, no mínimo. Nunca chovera tanto em Água Doce. As estradas para Mantena e Barra de São Francisco estavam intransitáveis. Os ónibus eram raros e, quando chegavam, era em dias alternados. Vinham sempre imundos e lotados de gente. Lembro que fiquei tenso naqueles dias molhados, por um motivo justo e só meu, um particularíssimo motivo. Aos nove anos eu já tinha concluído o terceiro ano do primário e passara, inclusive com certa folga, para o quarto ano. Como ainda não tinha ginásio em Água Doce, aquele seria o meu último ano de escola. Eu amava estudar e meu coração era uma tristeza só, uma ansiedade sem tamanho. No primeiro dia, do quarto ano de aula, a minha namorada e professora Durvalina nos passou o nome do livro de gramática que seria usado. Lembro como se fosse hoje. O livro tinha o encantador título de "Meu Tesouro". Hoje o meu coração ainda bate forte quando me lembro dele!
Aquele "Meu Tesouro" só era encontrado nas livrarias de Mantena, uma cidade maior. O Juca, meu pai, que estava sem dentes e precisava ir lá para botar uma dentadura nova, precisava comprar também uma grande panela de alumínio, encomenda da minha mãe para preparar toneladas de leite e Toddy, e aproveitaria para trazer o meu livro. Eu fiquei esperando inquieto. Havia dois dias que o Juca já tinha ido e não dava nenhuma notícia. Minha espera foi longa e sofrida. Nunca padeci tanto.
O ónibus que deveria chegar trazendo o Juca, com o meu livro, nunca chegava. Somente a chuva, fina e fria, continuava a cair. Da porta do bar, ansioso, eu olhava a toda hora para a curva da lagoa, na entrada da cidade, e nada de ónibus, nada de livro! De repente, percebi um movimento estranho, um grupo de pessoas molhadas se movendo na estrada. Olhei atentamente e vi que o Juca estava junto. De longe o reconheci entre todos. Sua silhueta magra, de desgarrado beduíno, era sobejamente conhecida de todos nós. Ele estava ensopado, seu chapéu de feltro marrom escorria-lhe sobre os ombros magros. Na mão esquerda, trazia uma enorme panela de alumínio -a encomenda feita pela minha mãe. Mas, e o meu livro? O Juca não era muito ligado nas encomendas dos filhos e, de certo, tinha ficado no barro da estrada.
O pessoal da cidade, curioso, cercou o grupo e queria saber de tudo. Cadê o ónibus? O que acontecera com o ónibus? Quebrara? Houve um acidente grave? Nesse dia o Juca, meu pai, teve o seu momento de glória. Sua dentadura nova chiava bastante e distribuía perdigotos aos seus ouvintes. Ele contava tudo em detalhes, explicava para um, depois para outro. Proclamava vantagens. Contava que percorrera mais de seis léguas sob a chuva gelada, amassando o barro.
Os ónibus do meu padrinho Victorio Coimbra que faziam aquela linha tinham um "design" de tanque de guerra. Eram velhos caminhões transformados em veículos de passageiros nas precárias funilarias de Mantena ou Barra de São Francisco. Para cada centímetro de chapa, aplicavam-se dez arrebites de aço. Pareciam blindados da Segunda Guerra Mundial, espinhentos e pesadíssimos. Eram semelhantes a enormes tatus de ferro, recendendo a gasolina e barro quente. Mal feitos e frágeis, quebravam a toda hora. O que vinha trazendo o Juca, para variar, tivera um problema mecànico na serra de Mantena e ficou por lá. Diziam: "quase tombou", "quase aconteceu uma desgraça", "quase isso", "quase aquilo." Mas, e o meu livro?
Com os olhos arregalados, enciumado, eu olhava para a grande panela de alumínio da minha mãe e ficava pensando no meu livro novo que talvez tivesse sido jogado ou perdido no barro amarelo da serra de Mantena. Para mim, que era o seu filho querido e me julgava o mais importante, o Juca era um mistério só. Ensimesmado, cavalgando num mutismo irritante, ele entrou no bar e entregou a panela gigante para a minha mãe.
E o malvado não me disse nada sobre o meu livro. Ó tristeza infinita! Apenas quando a dona Francisca, minha mãe querida, abriu a enorme tampa para conferir se era boa a sua encomenda é que senti um grande alívio no coração. Dentro, sequinho, repousando feito um filhote indefeso, vislumbrei o meu livro: lá estava o "Meu Tesouro!" Aquela visão maravilhosa foi uma grande alegria para mim, que gostava tanto de ler. Foi a represa trincada das minhas lágrimas contidas...



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