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Cartas-->ARATÚ -- 16/02/2004 - 13:47 (Marco Antonio Cardoso) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Em 1965, quando eu tinha doze anos, meus pais se mudaram do centro da cidade de Salvador para um velho sobrado num dos subúrbios mais distantes e isolados que se possa imaginar: Aratú.
Naquele tempo meu pai trabalhava na construção de uma fábrica de cimento que iria se instalar naquela localidade, onde havia uma baía cercada de mangue, quase em estado selvagem, embora ficasse a pouco mais de uma hora do centro.
Havia uma casa na subida de uma colina, que era a antiga sede de uma fazenda de cana de açúcar, desativada fazia algumas décadas, conforme fiquei sabendo depois.
Para se chegar lá era mais fácil utilizar o trem, que partia da estação da Calçada, percorrendo toda a costa norte da Baía de Todos os Santos até a altura de Paripe, depois adentrando os pequenos vales entre os morros cobertos pela bela vegetação da Mata Atlântica, até alcançar o mangue que marginava a pequena baía de Aratú, que ganhara este nome de um crustáceo próprio da região.
A estação de Aratú era a primeira da cidade a ser alcançada pelos trens que se dirigiam à capital baiana. Era na verdade uma pequena cabana improvisada no que restou da usina de cana da velha fazenda. A torre da usina ainda dominava a paisagem, com sua cor avermelhada, fazendo lembrar de tempos distantes e vidas diferentes das que vivíamos na segunda metade do século XX.
Meus pais, eu e minha irmã saímos do centro de Salvador e nos acomodamos na velha casa, por pouco tempo, um ano ou dois e estaríamos livres daquele castigo. A mudança foi uma imposição do trabalho de papai, que o queria bem perto da obra, supervisionando tudo que era feito, sem que qualquer distância o impedisse de garantir que tudo estivesse estritamente dentro do projeto.
No início tudo era uma maravilha. A sensação de liberdade, correr pelas colinas, andar a cavalo, catar siris com os moradores locais. Eram as férias mais incríveis que se poderia querer, mas as férias acabaram e nós continuamos ali. Embora tivéssemos energia elétrica, naquela comunidade éramos os únicos privilegiados com aquele avanço tecnológico. Naquela época não me intrigava o porque dessas coisas, pois parecia normal que as casas que ficavam à esquerda da nossa fossem pequenas, tortas, feitas de pau-a-pique e cobertas de palha, tendo seu interior iluminado à noite por lampiões a gás.
Aquele povo era de fato cortês, simples e prestativo, pareciam gratos por ali estarmos, e nos tratavam com uma deferência tal que poderíamos nos considerar príncipes ou coisa parecida.
Não possuíamos carro, somente um jipe que a empresa cedeu de empréstimo a papai enquanto estivesse à frente daquele serviço. No entanto, nos finais de semana visitávamos nossos parentes na cidade, seguindo pela estrada da Base Naval que dava mil voltas e era repleta de curvas perigosas que serpenteavam nas encostas dos morros que seguiam toda a linha da costa até Salvador.
Quando as aulas começaram, tivemos que utilizar o trem como meio exclusivo de transporte de Aratú até o Barbalho, onde eu e minha irmã estudávamos, na Escola Getúlio Vargas.
Aquelas viagens, hoje impossíveis de se repetir, ficaram como que gravadas em minha memória, pela beleza que representam de uma época ao mesmo tempo feliz e terrível.
No primeiro dia de aula, lá fomos nós esperar o trem que sempre atrasava. Para evitar que estes atrasos representassem algum dano em nosso aprendizado, mamãe nos fazia acordar com as galinhas, e em pouco tempo estávamos descendo por uma trilha até a estação, para tomar o trem que nos levaria até a cidade.
Por trás das verdes colinas que se enfileiravam no nascente, víamos a fumaça branca vindo em nossa direção. Nem todos os trens eram elétricos naquela época, alguns ainda eram movidos a vapor. No horário da manhã o trem que nos servia de transporte era desse tipo. Ele vinha de Alagoinhas, passando ali por volta de seis horas da manhã. Não vinha muito cheio, por isso havia sempre lugar disponível nas janelas, que eram os nossos preferidos.
Como era o primeiro dia, mamãe seguiu conosco, mas doravante minha irmã, que era mais velha que eu dois anos, seria a responsável por mim nestas viagens diárias.
A paisagem realmente me deixava absorto. O mangue, a mata, a praia, as colinas. O mar tranqüilo que alisava suavemente aquelas areias era uma das coisas mais agradáveis de se ver, logo pela manhã. O pensamento repousava na janela, e nem as sacudidelas do trem tirava a atenção que eu dedicava àquela paisagem. Ao fundo da baía a silhueta da Ilha de Itaparica completava o quadro, que mais parecia uma tela impressionista. Não hoje, devido a degradação que essa área sofreu nos últimos quarenta anos, mas na época, posso afirmar sem medo de errar que aquela região era a mais bonita do mundo, um verdadeiro paraíso que não se soube preservar.
O trem cortava o subúrbio, pequenas vilas com capelas cercadas de casinhas simples, os nomes sugestivos, muitos de origem indígena, ou ligados a fatos ali registrados. Paripe, Praia Grande, Periperi, Plataforma, até que se alcançasse a ponte que cruzava a enseada dos Tainheiros, onde se amontoava a população mais pobre da cidade. Eram palafitas construídas com sobras de madeira, que abrigavam centenas de famílias pobres, que sobreviviam da catação de mariscos, e viviam nas mais calamitosas condições de higiene e segurança. Após cruzar um pequeno túnel encravado num rochedo da costa, o trem cruzava a ponte metálica, depois seguindo diretamente para a estação final no bairro da Calçada.
A estação era a maior do estado, mas não era grande coisa. Nem por dentro nem por fora. Penso que poderia ser melhor, mais bela, para uma estação de uma capital, porém cumpria sua função naquela época, com boa eficiência.
Da estação de Calçada ainda tomávamos um bonde até a altura de Água de Meninos, subindo a pé a Ladeira da Água Brusca, que terminava a poucos metros da escola. Realmente era distante, mas era sempre uma viagem divertida, tanto na ida quanto na volta.
A escola Getúlio Vargas fica próxima do quartel do Barbalho, local de tristes lembranças na época da repressão política praticada pelos militares golpistas de 1964. E esta época estava começando naquele início de 1965, assim como a revolução dos costumes das pessoas, inclusive na pacata e atrasada província que era a cidade de Salvador.
O movimento de jipes e caminhões do exército era constante na frente da escola, e chamava nossa atenção, pelas coisas que ouvíamos falar sobre o golpe e a possibilidade de uma guerra civil.
De volta à nossa longínqua casa, passávamos as tardes em liberdade, percorrendo as redondezas. O fato de aquela região ter sido uma fazenda de cana de açúcar, repleta de escravos, onde ainda se via as ruínas do engenho, enchia nossa imaginação com toda sorte de idéias fantasiosas. Com o tempo aquele lugar se tornou enfadonho para minha irmã, que preferia passar as tardes em casa, ajudando mamãe em suas tarefas diárias, ou exercendo o lado caritativo, ajudando a comunidade, e até organizando uma pequena turma de crianças que elas começaram a alfabetizar.
Eu preferia percorrer as matas próximas, escalar as colinas que ficavam atrás da casa, ou então, com outros garotos da região, ir catar siris e mariscos no mangue, quando a maré baixava. Nossa diversão era atravessar o mangue com a maré baixa até a pequena ilhota que fica próxima à margem leste da baía. Lá havia apenas vegetação de mangue, pequenos arbustos cujas raízes ficam parcialmente descobertas, e sob as quais os crustáceos se escondem e se reproduzem. A emoção maior era voltar antes que a maré voltasse a cobrir o caminho, que se tornava impróprio para uma travessia a pé. Outras vezes andávamos sobre os trilhos, para além das colinas que separavam Aratú da localidade de Mapele, atravessando um túnel, por sobre o qual passavam os caminhões que levavam materiais para as obras da fábrica de cimento. Mas meu passatempo preferido era examinar as reminiscências da escravidão naquele lugar. Aquilo me chamava a atenção, pois tudo que estudava na escola era possível constatar in loco. As pessoas que moravam ali, negros em sua grande maioria, deveriam ser os descendentes daqueles que trabalharam nos canaviais. Canaviais que não haviam desaparecido por completo. Aqui e ali alguém cultivava as grandes baixadas com cana de açúcar, o que fazia o pensamento fantasiar sobre o que teria acontecido ali com os descendentes dos meninos que brincavam comigo então.
O engenho, do qual restavam apenas algumas paredes e a chaminé, era outro local que gostava de visitar. Quase todo dia eu estava lá, como se quisesse encontrar alguma coisa importante, um tesouro.
Mas a descoberta que mais mexeu comigo, foi quando fomos construir um galinheiro nos fundos da casa, e tivemos que desbastar uma pequena elevação coberta de ervas.
Meu pai levara alguns operários para o serviço, e no meio da escavação eles toparam com o que parecia ser uma grande rocha. Aquilo não me chamou a atenção, até que eles tivessem terminado de cavar e revelar um pilar de pedra, de onde pendiam alguns gomos de corrente enferrujadas e desgastadas pelo tempo e pelas condições em que ficaram conservadas. Aquilo era nada mais, nada menos que um “tronco”, peça obrigatória nas fazendas de escravos, onde estes eram castigados, caso não obedecessem às ordens dos senhores de engenho e seus capatazes.
Esta descoberta me excitou demais. Passava horas observando aquele monumento ao ódio e à estupidez dos homens. Naquela época conceitos como este não me ocorriam, mas um grande mal estar me dominava, enquanto eu me deixava ficar ali, olhando para aquele instrumento de tortura, imaginando quantos homens e mulheres foram ali torturados, chicoteados, castigados com vergastadas odientas, enquanto eram mantidos sem comida ou água, até que se quebrassem seus ímpetos de liberdade.
Descobri, com as mulheres mais velhas da comunidade, que no lado esquerdo da casa, onde agora se enfileiravam pequenas casinhas de pau-a-pique, era o local onde antes ficava localizada a senzala. Possivelmente no bananal que se estendia do fundo dessas casas, homens e mulheres viveram nas condições mais miseráveis que se possa imaginar, e lá criaram filhos que já nasciam sem nenhuma perspectiva diferente de futuro, que não a terrível provação de ser escravo até morrer.
- Que bom que isso acabou. Dizia eu para mim mesmo, enquanto vagava pelo sítio pavoroso.
Meus pais começaram a notar minha obsessão pelo lugar, e já falavam em mudar-se dali, temerosos de que as memórias de tudo que se passou ali afetasse minha saúde mental.
Mas eu não queria saber de sair dali, eu gostava de morar naquele lugar, pois ele parecia preencher alguma coisa em mim.
A casa era antiga, mas já havia sofrido algumas reformas nos anos de 1920, adequando-se aos gostos da época. Uma grande varanda envolvia a frente e o lado esquerdo da casa, e algumas platibandas foram erguidas nas fachadas frontal e lateral, modificando o estilo original do prédio. Em seu interior uma grande escadaria dominava a sala, que era iluminada por várias janelas debruçadas nas varandas. Esta escadaria também fora uma inovação feita na planta original, pois não era própria da estrutura comum às construções do tipo.
Nós dormíamos no pavimento superior. Meu quarto dava para o lado direito da casa, para o poente, mas era quase impossível se ver o sol no crepúsculo devido a uma grande árvore cuja copa ficava bem em frente à minha janela.
Esta árvore era muito antiga, podia-se perceber pelas marcas em seu tronco. Não sei bem qual era a espécie a que pertencia, mas na primavera ela oferecia um espetáculo de cores que nunca vi em lugar nenhum. Suas flores pequenas eram abundantes, coloridas com um vermelho vivo, depois da floração cobria todo o chão com um belíssimo tapete vermelho, que muitas vezes assemelhava-se a uma poça de sangue.
Alguns galhos da árvore, quando balançados pelo vento da noite, batiam em minha janela como se fossem as batidas de uma pessoa a me chamar.
Eu custava de dormir quando isso acontecia, imaginando mil coisas. Cobria-me dos pés à cabeça, e quase sempre tinha pesadelos.
Esses pesadelos e meu comportamento durante as tardes estavam carregando meus pais de preocupação. Já pensavam em levar-me a um médico, devido a estes fatos, que para mim pareciam ser muito normais. Afinal, quem não teria pesadelos se morasse numa casa centenária no meio do nada?
Os pesadelos estavam se tornando constantes e cada vez mais claros. O que de início era algo como uma sensação ruim, agora tomava formas apavorantes. Eu evitava ficar ao redor da casa em meu tempo livre. Quando não era possível ir ao mangue ou às roças, ficava dentro de casa, estudando ou mesmo sem fazer nada. Evitava sobretudo dois lugares: as ruínas da capela e a tal árvore.
No mesmo lado direito da casa, um pouco recuada, ficava o que restou de uma velha capela. Eram as bases de suas paredes e uma elevação que parecia ser um altar. Estava coberta de ervas quando chegamos, mas devido ao meu passatempo de explorador, logo desnudamos o que fora no passado uma capela, como era costume haver em sítios como aquele. A capela ficava de frente para a árvore vermelha, como eu a chamava, e no início não me causava nenhuma impressão, mas agora sentia arrepios quando passava por perto, tanto dela quanto da árvore.
Para tranqüilizar meus pais, deixei de comentar sobre os pesadelos, mesmo quando eu comecei a ouvir vozes, pois assim me pareceram os sons que ouvia logo depois que os galhos da árvore batiam na janela.
Uma tarde, eu e minha irmã estávamos sós em casa, quando ela me propôs uma brincadeira.
- Do que se trata? Perguntei.
Ela foi até seu quarto e retornou com uma espécie de tabuleiro. Pediu que apanhasse um copo na cozinha, e quando eu voltei, a mesa da sala estava coberta por uma toalha branca e o estranho tabuleiro, com letras e números desenhados, estava disposto bem no centro.
Minha irmã fechava as cortinas e tinha nas mãos uma vela acesa.
- Para que tudo isso, perguntei, você está ficando louca?
- Não bobo, isto é uma coisa que minhas colegas me ensinaram. Você não está assustado com seus pesadelos e outras coisas, pois bem, isso pode ser obra de fantasmas. Se for, nós saberemos.
- Como? Quis saber, mas estava morrendo de medo, tanto quanto de curiosidade.
- Isto se chama mesa Ouija, é uma técnica de comunicação com os mortos, os fantasmas. Colocamos este copo assim, sobre o tabuleiro, temos papel e lápis, e a vela é para dar um clima, entende.
- E o que fazemos agora?
- Sente-se aí, coloque as pontas dos dedos sobre o tabuleiro, delicadamente, feche os olhos e concentre-se no fantasma. Eu vou fazer as perguntas. Se houver um fantasma, ele vai mover o copo por sobre as letras que formarão sua mensagem. Depois é só ler. Simples não?
A sessão começou. Confesso que estava amedrontado, mas nem fazia idéia do que iria acontecer depois daquilo, e o quanto seria apavorante.
Minha irmã começou o que ela chamava de invocação. Pedia ela, num tom de voz soturno, que se ali havia algum espírito de pessoa falecida, que quisesse se comunicar, que o fizesse.
Eu sentia calafrios e minhas mãos tremiam. Tinha os olhos fechados, até perceber que o copo se movia. Abri-os e vi o copo se arrastando sobre o tabuleiro, sozinho, parando sobre um caractere qualquer, o qual minha irmã logo anotava no pedaço de papel. Ela estava entusiasmada, somente uma de suas mãos estava pousada sobre o tabuleiro. Quando o copo parou definitivamente de se mover, uma pequena rajada de vento apagou a chama da vela, o que me assustou e me fez derrubar a cadeira onde estava sentado, caindo junto com ela.
Minha irmã, ainda excitada, ajudou-me a levantar e a guardar tudo antes que mamãe voltasse.
Eu queria saber o que estava escrito no papel, mas ela o tinha dobrado e guardado num bolso de sua blusa. Finalmente, depois que tudo estava no lugar, ela me parou e mostrou-me a mensagem que conseguíramos: Socorro.
Naquela noite jantamos em silêncio, o que não era muito comum. Tão logo foi possível nos recolhemos. Ficamos conversando em voz baixa sobre o que acontecera e qual seu significado. Tínhamos mil e uma explicações, mas nenhuma seria mais fantástica do que a verdade.
Aquela noite as rajadas de vento estavam mais fortes. Alguns trovões distantes anunciavam que seria uma noite de chuva. A árvore vermelha estava mais agitada do que nunca, mas estranhamente, eu não sentia mais tanto medo. Depois que todos dormiram, eu tomei coragem e abri a janela. A noite escura, sem estrelas, o céu cinzento e o vento forte, compunham um quadro bem sinistro. Naquele instante, um galho agitado pela ventania tocou meu braço, assustando-me. Olhei para baixo e vi o manto vermelho que rodeava o tronco da velha árvore. Foi então que ouvi, não uma voz, mas várias, soavam abafadas e pediam por socorro. Fiquei lívido. Fechei a janela e corri para baixo dos lençóis.
A manhã demorou a chegar, mas assim que o primeiro galo cantou, pus-me de pé e me preparei mais rápido do que nunca para ir à escola. Na verdade, queria ficar longe da casa o mais rápido possível.
Aquele dia começara envolto numa atmosfera de medo, e seria assim até que a noite caísse. Presenciamos um espetáculo terrível na escola, quando soldados invadiram o estabelecimento à busca de comunistas. Alguns alunos mais velhos foram levados das salas de aula e colocados em um caminhão, seguindo para o quartel dos Aflitos, como soubemos depois. Dois anos já haviam se passado desde o golpe de 1964, e a repressão aos opositores do regime recrudescia.
A violência parece ser a única lei que sobrevive quando os direitos do homem são postos abaixo pelos oportunistas.
Hoje eu vejo que os frutos das árvores que foram plantadas naqueles anos estão quase maduros. São frutos amargos, repletos de espinhos, que vão ferir a todos que se virem forçados a come-los.
A noite chegou, clara, com uma enorme lua cheia. Os raios da lua se espalhavam sobre as águas tranqüilas da baia de Aratú.
Novamente as batidas e os sussurros, sempre no mesmo horário. Desta vez, encorajado pela luminosidade da lua, resolvi superar o medo natural e verificar o que poderia ser aquilo tudo. Minha mente estava mais lógica, portanto eu buscava explicações dentro do possível, para coisas que pareciam não ter uma explicação natural.
Abri a porta e avancei pela varanda até a escada que levava ao lado direito da casa. O luar atravessava os galhos e iluminava o tapete vermelho das pétalas de flores no chão. Acerquei-me da árvore, dando uma volta completa. Em determinado momento, rocei os dedos em seu tronco e estremeci.
Uma algaravia deixava minha mente confusa, atordoada. Algumas palavras eu podia entender, mas claramente, ouvia choro e pedidos de socorro. Quando consegui libertar-me daquela situação, deparei com uma horrível sombra que estendia a mão para mim. Uma figura terrivelmente deformada, com mais de dois metros de altura, mãos enormes e rosto deformado, abriu a boca para falar-me, mas não conseguia proferir palavra. Eu dei um grito e corri, o mais que pude, até entrar em casa. Na sala meus pais e minha irmã já vinham me acudir, assustados com meu grito. Queria saber o que acontecera, se eu estava bem.
- Um fantasma, eu vi um fantasma, um monstro.
Aquilo era a gota d’água que faltava para eu me ver forçado a me consultar com um médico de cabeça.
O mais drástico estava por vir. Meus pais me mandaram passar uma semana na casa de minha avó, que ficava bem perto da escola, no largo de Santo Antonio, bem em frente à penitenciária.
O médico não encontrou nada demais em mim, apenas que parecia estar agitado com algum acontecimento extraordinário. Quando meus pais lhe contaram o que ocorrera, ele disse que não se preocupassem, pois essas coisas não eram tão incomuns como parecia.
Uma semana na casa de vovó e eu já estava pronto para outra. As coisas estavam mais tranqüilas, mas não demorou e tudo voltou a ser como antes.
A semana que passei na casa da vovó tinha sido bastante proveitosa. Lá tive contato pela primeira vez com um livro instigante: O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.
Quando se é criado num ambiente que considera tão somente as experiências materiais como verdadeira e plausíveis, e que tem na religião apenas um lenitivo para os momentos de angústia e ignorância, a leitura de um livro como esse mexe definitivamente com a cabeça das pessoas que querem realmente se abrir para novas possibilidades.
E foi isso que aconteceu comigo. Muitas perguntas foram respondidas, muitas dúvidas foram mitigadas. Eu agora podia ver muito além das simples superstições, o que seria de grande ajuda para mim e talvez para os espíritos que vinham pedir socorro.
Naquela noite eu estava disposto a enfrentar o que aparecesse, pois nada poderia me assustar do modo como fizera antes.
Comuniquei minha intenção à minha irmã, que me desejou boa sorte, mas queria ficar longe daquilo tudo.
As batidas foram seguidas dos sussurros, como sempre. Voltei ao terreiro decidido a enfrentar qualquer alma do outro mundo que por ali aparecesse. Novamente ouvi as vozes quando toquei na árvore, mas dessa vez não me deixei levar pelo medo.
Perguntei o que queriam de mim, mas as vozes continuavam a repetir coisas ininteligíveis, até que uma outra voz bem grave se fez ouvir atrás de mim:
- Eles querem que você os tire daí.
Estremeci.
Por mais que estivesse preparado, ou que me achasse assim, um contato deste tipo é profundamente marcante.
Virei-me lentamente e lá estava aquela sombra deformada, olhando para mim fixamente.
Não tive medo dessa vez, mas um sentimento de piedade tomou conta de mim, e eu pude então me dirigir àquela alma penada.
- O que queres aqui, espírito?
- Não tenha pena de mim, que eu não sou digno de pena. Sou prisioneiro do meu próprio pecado. O mal que eu fiz me acorrentou aqui, e somente poderei sair quando este mal for reparado.
- Conte-me o que aconteceu aqui.
- Sob esta árvore estão enterrados os corpos de vinte escravos, mulheres, velhos e crianças, que eu matei.
As palavras daquela sombra me açoitaram o coração de forma angustiante. Enquanto ele me narrava sua desdita eu ia vivenciando cada palavra, como se estivesse acontecendo comigo.
Aquele era o fantasma de um capataz que vivera naquelas terras quando da assinatura da Lei Áurea. O dono daquelas terras era um homem intransigente e violento, que estava muito descontente com os rumos que a política imperial estava dando ao problema da escravidão. Enquanto o Imperador pensava em libertar os escravos, num processo lento e gradual que vinha acontecendo já a alguns anos, com a Lei dos Sexagenários e a Lei do Ventre Livre, dotando a região sul do país com mão de obra assalariada oriunda das imigrações de europeus, no nordeste esta solução não acontecia, e os donos de terras produtivas não dispunham senão dos ex-escravos para continuar tocando suas lavouras.
Muito aborrecido com esta política, que julgava injusta, ele sentia crescer grande animosidade para com os negros que viviam em sua fazenda, que já não produzia tanto como em outras épocas.
A notícia de que a Lei Áurea havia sido promulgada pela princesa Isabel, causou furor em todo o país, fazendo com que muitas fazendas ficassem desertas, principalmente no nordeste do país. Ali não fora diferente. Os homens foram os primeiros a partir, deixando as mulheres, os velhos e as crianças para trás.
Pensava o fazendeiro que agora iriam querer alimentos como sempre lhes fora dado, quando eram escravos. Entrou na senzala e encontrou-os em grande algazarra.
Pediu que eles partissem dali o quanto antes. Não queria mais nenhum negro em suas terras, pois agora teria que contratar assalariados, que pretendia trazer do sul.
Um homem velho, que parecia ser uma espécie de conselheiro do grupo aproximou-se e lhe pediu que lhes dessem alguns mantimentos para poderem partir, pois não possuíam nada e teriam que encontrar terras para plantar, mas não tinham como sobreviver até lá.
O homem ficou possesso com o pedido do velho negro.
Esbofeteou-o, causando forte reação nos demais, que avançaram contra ele.
Cercado de jagunços, além do próprio capataz, um homem alto e forte, violento e sem compaixão, iniciaram uma luta desigual, logo conseguindo dominar o grupo revoltoso.
Todos foram amarrados e levados até a capela, onde foram trancafiados.
O fazendeiro mandou que cavassem um grande buraco no meio do terreiro, o que levou o resto do dia e somente terminou na manhã seguinte.
Os homens nada falavam, apenas cavavam, mas sabiam que uma grande barbaridade seria cometida ali.
Vendo a grande cova aberta, mandou o proprietário que ajuntassem a madeira que serviria para movimentar a caldeira do engenho, e cercassem a capela com toda ela, ateando fogo em seguida.
O fogo logo consumiu a pequena construção, causando a morte de quase todos os que dentro estavam. Quando seu teto ruiu, pode-se ver que alguns ainda agonizavam. O capataz, tomado de uma fúria sem propósito desferiu vários golpes com um facão nos corpos das vítimas do incêndio criminoso. Mortos e feridos foram atacados pelo feroz empregado, sob o olhar aprovador do fazendeiro.
Concluída a carnificina, jogaram os corpos na grande vala e cobriram-na de terra.
Algumas semanas depois, o fazendeiro fez plantar uma grande árvore naquele lugar, para aproveitar o adubo que havia embaixo.
Era um ipê branco, mas na primeira vez que ele floresceu, suas flores eram vermelho sangue.
Logo após aquele fato insólito, o dono daquelas terras morreu subitamente, e o capataz, que me narrava aquela história tão terrível, sofreu um grave acidente no moinho de cana, morrendo após ser desfigurado pela máquina.
- Esta é minha maldição. Aqueles que pereceram na selvageria me cobram a guarda perpétua de suas almas, e aqui sou obrigado a permanecer, enquanto eles estiverem enterrados sob esta árvore.
Eu estava atônito com a narrativa daquele espírito. Queria pensar racionalmente, como se aquele momento fosse um sonho, uma fantasia. Eu mergulhei nas palavras narradas, que nem foram bem palavras, é difícil explicar, mas era como se um filme passasse através de mim, e assim eu ia tomando conhecimento dos fatos, sentindo-os como se fosse um espectador de tão terríveis acontecimentos.
- Corte esta árvore, corte-a e liberte estes escravos do cativeiro. Dizia-me o espírito do capataz.
Havia ali perto um machado, que tinha sido usada mais cedo para cortar algumas toras que se destinavam à construção de uma cerca. Eu tomei este machado e desferi golpes violentos no tronco da árvore. Era um tronco duro, muito espesso, mas quando eu o acertei, parecia estar golpeando carne. De fato, logo nos primeiros cortes, pareceu-me que escorria sangue e não seiva daquele tronco.
Ouvi gemidos que depois se transformaram em gritos, por fim risos nervosos. Uma grande agitação me cercou, como se alguma coisa rodopiasse ao meu redor. Tentei fugir dali, mas fui detido pelo capataz.
- Seus golpes são insignificantes em seu mundo, mas aqui, no mundo dos mortos, está quase destruindo a prisão que mantém os escravos neste lugar. Não pare, alguns já se foram, mas faltam outros. Continue.
O capataz me olhava fixamente, enquanto segurava meu ombro, tentando deter-me. Continuei o trabalho, destruindo aquele cativeiro e libertando todos os escravos que ali se achavam aprisionados pelo ódio de que foram vítimas.
O galo cantou, e eu estava exausto. As sombras desapareceram, assim como os sussurros e gritos fantasmagóricos. Voltei para casa e me atirei na cama. Dormi até altas horas, pois era sábado e ninguém me incomodou.
Nas noites seguintes nada mais aconteceu, nenhum galho batia em minha janela, não importando o quanto ventasse. Nenhum ruído me acordara novamente, e nenhum pesadelo me acometeu outra vez, até que nos mudamos novamente para o centro da cidade, um ano depois desses acontecimentos.
A tragédia passada naquele lugar deixou marcas profundas, situações inacabadas para gerações futuras resolverem, se tivessem boa vontade. Na cidade, os anos sessenta acabavam de forma perigosa. Repressão política e tortura eram a tônica daqueles anos e da década seguinte também. Os crimes que seriam cometidos nesta época seriam mais tarde, acredito, apaziguados por pessoas de diferentes origens e opiniões, que algum dia cruzaram o caminho dos fantasmas e assombrações, registros das ocorrências mais odiosas que as pessoas podem produzir, que ficam perpetuamente marcados na matéria que compõe o tempo.
Meu tempo naquele lugar passou, assim como o de outras pessoas, quer tenham vivido no passado ou tenham sido meus contemporâneos. Hoje, quando acontece de cruzar a estrada que passa em frente às ruínas da velha casa, sinto uma sensação de liberdade, que sopra como a brisa que varre as colinas e enruga as tranqüilas, porém hoje poluídas, águas da baia de Aratú.
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