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Contos-->O Fog Londrino -- 17/03/2013 - 23:26 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

Cinza. O pouco que os olhos veem é monótono, frio e de um tom somente. Um pássaro desconhecido ousa ser insolente, na cantoria da manhã escondida do sótão da casa dos fundos, onde moro. Eu mesmo estou oculto, abrigado das pequenas gotas que caem do céu, sem coragem de ver mais de perto a janela com a umidade condensada, escorrendo e formando traços nas superfícies dos vidros. Pequenos riozinhos se insinuam nos caixilhos de madeira, cristais de luz que reproduzem o tom predominante da estação que eu menos gosto. Tudo nesta invernada me lembra de sono, preguiça, a sensação de incompletude que me acompanha há séculos. Não levantar, em meio a cobertas de grande grossura, ouvindo os estalidos da madeira nobre e antiga esticando seus músculos, enquanto os meus se assemelham mais aos membros relaxados dos ursos em sua hibernação...Uma vista geral dá o tom de meu estado de ânimo: Lá, ao fundo, encostada no cano que vem da lareira lá embaixo(e por isso mesmo o canto mais quente do quarto) a minha escrivaninha, cheia de papéis espalhados por ela. A luz, acesa, vigiou os calhamaços que jazem nas tábuas já vetustas de carvalho, um presente de meu pai quando "me tornei mocinho". Talvez ele quisesse que eu seguisse seus passos, contador de uma firma da capital, onde trabalhava diuturnamente, só chegando em casa na hora em que todos iam jantar, invariavelmente às sete em ponto. Parecia um relógio e ele, orgulhoso, puxava do bolso o lindo relógio de corrente e falava alto:

--Hora de jantar!

Sua voz ecoava nos aposentos da casa, até porque ele tinha uma voz de barítono que se orgulhava de exibir em cantorias no banheiro que na maior parte das vezes arrancava suspiros de meu irmão mais velho e risadinhas de minhas duas irmãs mais novas.

Ah, em tempo! Sei que é indício de que sou mal-educado. Porém minha mãe, principalmente ela e minha tia que mora conosco, tia Emily, as duas sempre nos lembram do que sempre temos de fazer e é claro, falhei novamente ao não me apresentar para vocês todos. Sou Mark Philips, filho mais novo de Anthony Philips e de Caroline Philips, irmã de Emily , tia querida que, ainda jovem, perdeu seu marido na guerra que assolou nosso continente em 1914. Tenho dez anos, durmo no sótão de uma casa espaçosa de um subúrbio de Londres desde que meu pai resolveu vir com a família tentar a sorte na cidade grande, farto que estava da pobreza e da necessidade de alimentar a família que crescia, há cerca de dez anos. Eu ainda não havia nascido quando ele e minha mãe decidiram mudar de vida, saindo do campo e ele, a muito custo, vendeu a casa onde vivera toda sua juventude para juntar umas economias e vir para Londres. Aqui, receberam Emily que acabara de perder o marido e passara um tempo com o juízo avariado, triste que só ela. Dizem meus pais que ela vivia no sótão onde estou agora e dias e dias sem fazer nada, deitada na cama onde estou, desanimada. Levou um tempo para melhorar, e não foi por falta de cuidados.

Minhas irmãs dizem que eu falo demais. Gosto muito delas mas sou mais chegado em June, a mais nova, talvez pela idade: Ela tem onze  anos e Judith, treze. Já começa a ficar insuportável esta Judith, com seu humor instável e seus ciúmes com as coisas de mulher que ela ganha de mamãe e que já não mais divide com June, segundo ela porque ela "já é uma mulher enquanto você é um simulacro"e eu sei lá o que raios é isto, só sei que June chora.

--Mamãe, ela me chamou de simulacro!

Minha mãe olha Judith com aqueles plácidos olhos verdes e a chama num canto. Nós observamos sua conversa. Mamãe nunca eleva o tom de voz conosco, mas é decidida e disciplinadora. Ela está dizendo a Judith que, se ela realmente quer ser uma mulher e não um simulacro, como ela mesma diz, tem de ter atitudes de uma futura mulher. Daí que ela fica mais insuportável, porque se nega a brincar ou sequer fazer algumas das tarefas que mamãe distribui, tais como ajudar na manutenção da casa. Tia Emily, depois que se recuperou, faz as vezes de ajudante. A casa é um brinco, graças a elas duas, sem dúvida. Ela me passou o quarto do sótão porque ao lado de nossa casa existe uma outra, onde ela alugou um quarto, depois de deixar sua casa à venda, com todos os móveis dentro. Só pegou suas roupas e coisas pessoais e habitou o quarto da pensão onde mora; diz que faz isso para não invadir nossa rotina, porém sempre está em nossa casa, com sua risada gostosa e sua beleza radiante(ela é oito anos mais jovem que minha mãe) de modo que ela é como se fosse uma espécie de irmã mais velha.

Meu irmão , John, é um caso à parte. Tem dezesseis  anos, os cabelos ruivos e um dente quebrado na frente, fruto de suas muitas brigas na escola onde ganhou a fama de bom de luta. Raivoso, sempre mal-humorado em casa, já o peguei fumando no quintal um par de vezes. Ele falou, olhando em meus olhos que se  eu quiser chegar à idade dele, bico calado, meu pai não pode saber. Como todo menino de sua idade, já trabalha como distribuidor de jornais e ganha seus trocados, de modo que há dias que sai e gasta o que ganha com amigos que eu não recomendaria a vocês. Eles falam uma língua estranha que não tem a ver com a minha, cheios de gírias e maneirismos. Vocês tinham de ver, parece um espelho invertido de meu pai. Está tomando corpo, nas lutas se sai bem pela agressividade. Lembro de ter visto John uma vez só pedir colo para mamãe, quando levou uma sova de um menino mais velho que lutava boxe; chegou com o olho roxo, o nariz meio sangrando. Daí ficou de molho uns dois dias, deixou de ser gabola, mas qual o quê: logo recuperou sua autoestima.

Volta e meia, John diz para mim:

--Bebê da mamãe! Estou de olho em você!

E sai, esbaforido porque tem de pegar um bonde que o leva à banca onde pega os jornais cedo pra jogar nas casas bem cedinho, ainda quando a luz se insinua no céu. As brigas mais sérias são entre Judith e John. Nunca chegaram às vias de fato e se chegarem um dia, meu pai os põe para fora de casa. Como eles não são loucos de sair assim pelas ruas de uma cidade tão fria, se suportam. Há dias porém que não se falam sequer. June tenta aproximar os dois mas nunca tem sucesso, o simulacro...

--Simulacro é você.

Ela fica emburrada e aí minha solidão aumenta. Nestas horas meu quarto é mais do que um mero sótão, é um mundo. Lá é o lugar de meus brinquedos; aproveito para ler sobre tudo o que me cai nas mãos e meu pai, por participar de uma congregação religiosa, lê bastante e tem uma boa biblioteca que eu sempre estou remexendo. De vez em quando puxo um livro e leio e ele nota e diz que um certo ratinho passou por ali e roeu um livro. Mas ele quer que eu o devolva...E eu leio o que posso e o que eu entendo. Afinal, só tenho onze anos...Está bem, quase doze. É o que diz Judith quando quer que eu ajude nas coisas de casa, pronta para fazer as unhas enquanto eu limpo os cestos dos banheiros ou arrumo minha cama e a dela.

--O que você vai me pagar em troca?

--Está brincando? A troca vai ser você poder comer minha sobremesa.

--Ora, isto é muito pouco!

--Como diz John, você podia se contentar com menos e tentar sobreviver até à idade dele...

--Também você me ameaça?

--Não entenda isto como ameaça, meu querido irmão. Apenas um alerta. Agora, faça o trabalho que eu preciso me arrumar para Edward.

--Papai sabe desse seu namorado?

--...Papai é um londrino típico. Vive pendurado em seu guarda-chuva, romântico incorrigível. Ele não sabe de nada, mesmo. Nenhum de nós sabe de nada.

Aprendi bem cedo que na Inglaterra o humor é corrosivo. Também existe a falsa sensação de segurança que o sistema faz aparecer nos lares: cada um tem seu canto, cada um tem a sua liberdade. Daí o medo de perder tudo isto. Um tanto de espanto, o horror ao novo. Um frio percorre as espinhas quando se ouve falar que multidões vagueiam pela Alemanha vencida, escorchada pelos juros de uma dívida que não se pode pagar. Surgem as palavras grosseiras, uns e outros se olham desconfiados quando a onda de miséria percorre os corpos de um lado a outro de nosso continente. Um mar nos separa da crueza do Abismo, sempre vivemos numa ilha, é o que pensam nossos irmãos. Mas infelizmente não estamos sós. Eu desconfiava que John já estivesse contaminado pelo ódio que pretendia varrer da Europa os estrangeiros, os negros, os judeus...Mais de uma vez eu os ouvira correndo atrás de pobres vadios. Desconfio que o mal grassasse entre nós, em plena sala de jantar. Mas meus irmãos e eu jamais saberíamos que a semente do mal já esticava seus braços à distância. Medrava em meio à alegria esfuziante da vitória um peso indefinível, um nojo e um cheiro nauseabundo que ultrapassava as cloacas fétidas de Londres. No mistério indevassável do fog londrino, podia-se ver o vulto de um Alguém que faria Jack, o Estripador, parecer uma coisa de criança.

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