O genial cartunista hispano-argentino Quino é autor de uma tira em quadrinhos que confronta Mafalda, a protagonista, e Susanita, a jovem fútil e interesseira. Diante do manancial de notícias ruins que corria da boca da amiga, Susanita respondia: “ainda bem que o mundo fica lá tão longe...”.
O mundo, claro está, é o palco dos assassínios, dos assaltos, da violência, das barbaridades de toda ordem que, mais tarde, tornam-se manchetes de jornal. É onde o rio da História corre, tingido em alguns trechos por sangue e lágrimas. A realidade, enfim.
Susanita negava-o. Sua condição de membro da então feliz e segura classe média argentina (a tira data dos anos 70) lhe permitia, ao menos mentalmente, guardar distância do que lia nas letras grandes do Clarín e do La Prensa, os maiores jornais de seu país. Mais: de dentro de seu confortável apartamento, com um bule de chá a esperar-lhe, o mundo pouco lhe poderia interessar, isto é, preocupar. A sua situação, e a de todos que estavam à sua volta, permitia tais arroubos de alienação, indiferença e inconsciente alívio. Era-lhes permitido ignorar.
Hoje, vivendo entre nós, já não poderia faze-lo. A própria Argentina de Quino (um dos tantos rio-platenses que emigraram para a Espanha) não existe mais e não admitiria julgamentos que colocassem o mundo “lá tão longe”. Que dizer, então, de nós, historicamente imersos em, e componentes de, uma sociedade insustentavelmente desigual, assustadoramente violenta e tragicamente injusta, onde a realidade não existe através do jornal, lido pela minoria letrada, mas bate à nossa porta (nós, a classe média) através da maioria iletrada. Abrimo-la, e, ao mesmo tempo, tomamos contato com o mundo, que agora está “aqui perto”, e passamos a fazer parte dele. Somos, então, reféns da realidade e das suas vicissitudes, mantidos sob o jugo do que se nos apresenta: uma mira dum revólver ou o fio de uma faca.
Tudo isto, é claro, não passa de divagação retórica baseada em um jogo de imagens e palavras, que, ao contrário do que se objetiva, acaba por atenuar a violência do que é fático. Na verdade, não atenua. O Brasil de hoje não autoriza a contemplação ou a reflexão num bom português; exige, isto sim, e com urgência, a ação.
Celso Augusto Uequed Pitol
uequedpitol@bol.com.br
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