Chico Buarque sabia que havia, já em 1974, muitas léguas a nos separar quando compôs uma de suas mais conhecidas canções, “Tanto Mar”, saudando a vitória da Revolução dos Cravos em Portugal. Aparentemente datados, os versos do músico carioca carregam nos dias de hoje um significado diverso e até mais impactante: mostram, com a elegância habitual do grande compositor, o alargamento do oceano que separa Brasil e Portugal, os “países-irmãos” que se ignoram mutuamente e, não raro, voluntariamente.
As crispações entre brasileiros e portugueses são quase tão antigas quanto os 502 anos da chegada de Cabral. Em vários momentos da história dos dois povos – fuga da Família Real, Independência do Brasil, a ditadura salazarista e outros – um dos países foi apontado como inimigo do outro. Para o português de 1820, éramos o “país dos macacos e dos pretos”, como noticiou um jornal de Lisboa da época; o brasileiro de 1920 afirmou que a língua-pátria era o “brasileiro: já passou de português”, ressaltando as diferenças entre o vernáculo de lá e de cá. As disputas não ficam restritas às relações sociais da generalidade da população, permeando o território dos acadêmicos e intelectuais dos dois lados do Oceano. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, nunca perdoou a negligência lusa para com a educação e a cultura no Brasil colonial, ao contrário dos espanhóis, mais preocupados em educar os criollos e difundir os costumes europeus do que os seus vizinhos. No século XVI, Peru e México já abrigavam universidades. O Brasil só as teve no século XX, décadas após a colonização portuguesa. Em contrapartida, o ensaísta português Eduardo Lourenço, ex-professor universitário na Bahia, em seu brilhante A Nau De Ícaro afirma que o Brasil “matou o pai” e elegeu não o português, mas sim o índio como o seu representante-mor. Esqueceu-se de onde veio, ou preferiu esquecer.
Não esqueceu, entretanto, o bom humor: pululam em todo o território brasileiro, e em constante renovação, anedotas de portugueses, cuja origem, remonta à imigração portuguesa, dos “manuéis” e “joaquins” que guardaram a pobreza em suas canastras puídas, embarcando em naus na ocidental praia lusitana com destino à terra da “árvore de patacões”;
Já não o fazem. Portugal é hoje um membro da União Européia, com uma renda per capita de 13 mil dólares, e não é mais necessário buscar patacões no outro lado do Atlântico quando os têm de sobra dentro de seu pequeno território. E, paralela à invasão das novelas brasileiras, perfeitamente adaptadas ao modus vivendi lusitano (e vice-versa), escorre para o solo português uma outra invasão, a dos próprios brasileiros, sonhando em entrar na Europa com o perfume das flores do seu jardim. Novamente afloram desavenças: os dentistas brasileiros lutam até hoje contra a má vontade da lei portuguesa, que os considera incapacitados para exercer a profissão. Mais recentemente, levas de imigrantes ilegais, e não só do Brasil, despertaram no povo de brandos costumes um sentimento até então só conhecido pelos seus (muitos) emigrantes no resto do globo: a xenofobia.
Assim vão os países irmãos: seguindo o movimento das respectivas placas tectônico-econômicas, separando-se cada vez mais até que, um dia, os laços que os (nos) unem sejam, por fim e para sempre, cortados.
Celso Augusto Uequed Pitol
uequedpitol@bol.com.br
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