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cronicas-->Cinema Paradiso -- 28/01/2007 - 21:54 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ele finalmente se convenceu, ia ao cinema. Afinal, fazia tempo que não via corpos voarem nos ares, fazia tempo em que ele não via carros serem destruídos em meio a ruídos de batalha campal, nem via desafios verdadeiros, desses em que a testosterona sobra e a razão cambaleia. Ia assistir Rocky VIII, o octogenário que desafia o campeão chinês de três metros de altura, ou ia assistir Cambaio, o último filme brasileiro a ganhar o festival de Sundance de cinema estrangeiro?
Comprou a pipoca, nada mais salutar para um programa digestivo destes. Os hormónios da fera fazem funcionar bem a bile, o fígado e o sistema límbico. Tem coisa melhor que um molho tártaro, para combinar com as barbaridades de ver um octogenário levando socos sem parar de um chinês com cara de demónio tailandês metido a coreano ágil, mas que não passa de um estúpido japonês travestido de boxeador?
De passagem viu a idosa cair no conto do vigário, foi atravessar a rua em meio aos eternos malabaristas, três se destacaram e a atravessaram e passaram a mão em sua bolsa, coitada da velhinha, lá ia sua bolsa feito comida em meio aos peixes, sabe quando todos disputam pedaços, bocados da coisa que eles comem? Assim era a bolsa da senhorinha que caiu murcha antes dos últimos bastões do mais esperto dos malabaristas cair ao chão, ao que ele agradeceu e fez uma mesura, sendo que várias mãos saíram das janelas enquanto a pequena senhora chorava a perda de sua carteira em meio ao caos urbano e impessoal. Nada mais cruel, ele pensou, nada mais idiota; porém teve de convir que a velhinha pediu, ao atravessar a rua. Se ele fosse ela e tivesse chegado á sua idade, não sairia de casa, mandava trazer o filme, a comida e até os malabaristas na janela de casa.
Ele adentrou a sala do cinema e lembrou da bunduda que o olhara da janela do apartamento, ela desfilava de lingerie só porque o marido saía cedo para trabalhar e ele era um desses caras que nunca trabalham e se dão ao luxo de observar as janelas alheias, e também, morava ao lado dela: Seus prédios eram tão encostados que se estendesse uma tábua, entrava em seu apartamento e ele sabia que mais cedo ou mais tarde usaria deste artifício, o problema é que seu marido era policial militar e miliciano, protegendo uma comunidade de noite e de dia fazendo a ronda, coisa normal no Brasil de hoje, faz-se um bico aqui, outro acolá e se vai vivendo, ganhando-se menos do que se merece porém mais do que se pode.Também se lembrou que passara dos quarenta e ainda não tinha emprego nem mulher. Bom, mulher...Agora, emprego...Ele sabia que devia a alguns uns favores, mas vivia também de outros favores, então...Ia ao cinema na tarde que lhe aprouvesse, a hora que quisesse, não tinha patrão nem dono nem nada, ele podia!
Pegou a pipoca e saboreou uma delas mergulhando no molho tártaro e gorduroso, gosmento até, mas agradável ao paladar. A pipoca percorreu o céu de sua boca como uma língua e lembrou da última noitada com sua amante. A língua dela bem poderia ser aquela pipoca, tão seca de saliva era a peste. Bom, ele pagava, ela o servia, então nem amante era, era puta mesmo. Então, a pipoca, a puta, o molho...Sentiu náusea ao lembrar e jogou o molho fora, ficou com a pipoca e comeu mais uma, ruidosamente, o filme não começava e tinha pouquíssima gente, era quarta-feira e o cinema estava às moscas, só tinha uns adolescentes, um casal de jovens namorados que só faltavam transar antes de começar a projeção, duas fileiras adiante da dele, um gordo esquisito sentado duas fileiras atrás e uma senhora de vestido comprido e olhar fixo na tela, parecia em transe, mas de vez em quando coçava o nariz aquilino e fino, com uma pintinha que lhe dava certo charme. Quem sabe não rendesse alguma coisa aquela pintinha? Tinha tara por pintinhas desde que namorara uma ruiva que tinha sardas até no...Calma, ela parecia séria, talvez até uma freira! Tinha uma palidez doentia, devia ser serva de Cristo, elas precisam ficar doentes para acreditarem que a salvação vem deste mesmo Cristo que orna os crucifixos com a horrorosa imagem da paixão, as chagas sangrando, isso explica a palidez doentia dela, deve ser uma serva do senhor, o que quereria uma delas com aquele vagabundo? Não, melhor atirar noutra direção. Melhor mesmo a pipoca. Ele se lembra de que faz dias que está à deriva, de que precisa arranjar mais comida para sua casa. Nessas horas, pega mais uma pipoca e a saboreia entre os dentes antes de fazê-la naufragar no mar de saliva e papilas gustativas. Ele mesmo não sabe, mas é um caos de moléculas que se entendem milagrosamente, só ele não entende como com quarenta anos não tem uma ocupação definida, está num cinema que tem som Dual Runner Dolby Prologic com derramamento de fluidos perfumados, última palavra da indústria da diversão, ele pensa que vai conseguir sentir o cheiro de sangue que chegou a antever antes de comprar o ingresso do malfadado filme que nunca começa.
Ele devaneia sobre ruas, lembra das aventuras de quando jovem, quando andava num carro de segunda mão de seus primos com uma arma falsa caçando falsos bandidos, na época da ditadura militar.
--Teje preso!
--Judia de mim não, sinhó.
--Cala a boca, corno. Tu és subversivo.Tó vendo na tua fuça!
--Só é não. Só trabaiador! Trabaio muito!
--Com essa cara de retirante?
--Arretirante, pobre de cair, mas sou honesto, sim sinhó!
Lá vinha a coronhada.
--Páf!
--Ai seu moço, faz assim não! Minha ninhada em casa...
--Tú é homem ou é rato? Que negoço esse de ninhada??
--Porra cara chega!
--Chega o cacete!O cara tem ninhada em casa!
--Tem sim sinhó. Dez fio pra criá.
Soltávamos o coitado e saíamos correndo. Depois era contar as histórias para os outros...Até que um dia um de nós foi preso, torturado e morto por engano pela repressão. Aí nunca mais.
Porcaria de filme que nunca começa.Ele olha para a freira, ela reza um terço. Que faz uma freira assistir Rocky VIII? Que faz um gordo esquisito de cabelo engomado ali às três e quinze da tarde? Que faz ele ali, olhando como um assassino à busca de sua presa perfumada? Não, decididamente ele não é um assassino. È um profissional, do ramo, mas não é um assassino. Digamos que ele faz "limpeza". Ele é um cara limpo.
--Dez fio pra criá!
Ele deve ter cochilado porque a voz do coitado ecoava na sala.
--Faz assim não, seu moço!
Ele olhou para o lado. Quem dissera isto??
--Tenho ninhada em casa!
Não foi o gordo, a namorada estava no colo do namorado e balançava o ventre pra frente...Pra trás...
Os adolescentes gorgolejavam, que nem patos, sua língua cheia de gestos, como pigmeus pipilando. Não se entendia o que diziam, só se ouviam risadas e peidos, arrotos e o que eles dizem ser palavras. Como ele fora parar ali, neste cinema que não começava nunca?
--Faz isso não.
--Páf!
O mosquito que teimara em coabitar com ele o mesmo espaço, sentindo o cheiro do molho bárbaro, falecera repentinamente, vitimado por sua gordurosa mão de fada.
--Faz assim não, fio.
Como estaria sua mãe? Da última vez ela estava preocupada com ele. Mas ele sempre a tranquilizava. Mandava algum para ela porque o vagabundo de seu pai vivia alcoolizado, o verme; trabalhava como pedreiro e ele tinha certeza que se dependesse dele, metade das Alagoas caía de ruína mesmo.
--Páf!
O gordo deixara cair uma bala no chão. Ele olhou o relógio, foi ao banheiro e tirou o brusco pra fora, a tempo de ver duas sombras num dos reservados do toalete grudadinhas, devia ser um casal de bichas. Ele fez que não ouviu nem viu, mijou, saiu. Como tem disso hoje em dia, é normal, cada qual com seu problema, não ia ser ele que ia sair dando escàndalo.
--Páf.
Do nada veio a coronhada. E ao nada ele retornou, saindo do nada sem saber de nada, nem quem era ele, esqueceu de saber de onde vinha e confuso, apalpou as calças e como ele era esperto e aprendera a levar documentos e dinheiro na cueca como uns políticos, quem o atacara nada tinha levado a não ser uns dólares falsos que ele tinha para estas ocasiões, que é melhor um dólar falso na mão que nenhum e nada em lugar algum.
--Tudo bem? Vi você caído.
--Tudo. Me assaltaram.
--Porra, até aqui?
--No cinema? Sim, é a sétima vez (exagerou).
O gordo ficou apavorado, deu tchau e saiu, mas a freira lá, com o terço na mão rezando e a moça agora sentadinha no seu assento, esperava o começo do filme, segurando o...Lá vinha o filme. Ele abriu a boca, escutou com ouvidos bem abertos e estalou os olhos. Lá estava, não tinha dúvidas, era ele mesmo.Rocky VIII, o filme.
--Faz assim não fio.
--Páf!
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