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cronicas-->O TIO SANTO ANTÓNIO -- 19/01/2007 - 23:11 (Francisco Miguel de Moura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O TIO SANTO ANTÓNIO

Francisco Miguel de Moura*

Conheceu o padrinho de crisma ainda com boa saúde e disposição de vida, pois, para o menino daquele tempo, doente era a pessoa que não se levantava mais da cama.
Seu padrinho de crisma era o tio António, irmão da mamãe. Eis outro costume do povo de Jenipapeiro naquele tempo: - Os parentes é que serviam de padrinhos de seus filhos, raro era escolhê-los fora da família. Só em último caso.
O tio António era solteiro, não tinha casa nem família, "morava" com a tia Rosa, mas aparecia continuamente na casa das demais irmãs para almoçar e conversar com as crianças. Ele foi um dos infelizes do século XX que herdaram "o mal do século" - e herdar é só uma maneira de dizer. E século aqui já não é o passado mas o "atrasado" ou seja, o XIX, quando os jovens e as jovens do Brasil eram acometidos muito cedo do mal que ceifou muitas vidas valiosas. Que nome poético mas triste é ceifar! Não se contam os boêmios, poetas e escritores, rapazes e moças ainda na flor da idade, que pegaram a moléstia. E, uma vez pegada, era só esperar a morte dentro de pouco tempo, um ano ou qualquer coisa mais, de acordo com a resistência de cada um. Não havia remédio na medicina.
O menino ainda lembra com nitidez. Cansado de brincar de fazer currais de pedra e colocar bezerros dentro - ossos brancos de animais mortos, fosse pela seca, fome ou doença, fosse pelo açougueiro - ficava no alpendre de sua casinha esperando alguma surpresa. Nem que fosse o chiado de calango nas folhas secas ou a carreira de um camaleão atravessando o terreiro. Fora disto, só grilos cricrilando ou cancãos-de-fogo acuando cobra. Nada mais. O tempo era grande. A fome era maior. Ficar esperando o feijão duro amolecer, a carne cozinhar na trempe com lenha de garranchos, era um suplício. O estómago doía. A mamãe demorava nos afazeres da vazante.
Algumas vezes o padrinho o alegrava com sua visita. Fazia as refeições na casa das irmãs, principalmente da tia Rosa, que era abastada, e onde tinha sua rede de dormir. Depois da construção da casa nova, o que era temporário passou a permanente. Uma vez ou outra ia lá em casa, sempre por ocasião do almoço. Vinha antes da hora, pelo caminho da frente, talvez lá da casa de tia Maria de Manuel Abílio. Logo que o menino o enxergava entre os galhos de catingueira e marmeleiro, corria à cozinha para pegar a colher de metal amarelo, escondendo-a por dentro da calça, na cintura, deixando que a camisa cobrisse o resto.
Ele, advinhando, gritava de longe:
- A colher amarela é minha, «Melado».
«Melado» era seu apelido, como de resto o de todos os meninos louros ou fogoiós do Nordeste, ou pelo menos naquela região.
Chegava, sentava-se num tamborete e ia desfiando anedotas, ditos picantes, palavreados, trocadilhos, achados jocosos tais como:
- "Vai ver a água,/
pra lavar o cu,
pra lavar o cu,
pra lavar o cu,
pra lavar o cu
-a-dor!
Pronunciava um -a-dor! muito estirado na voz.
Bem humorado, só lembra de vê-lo sorrindo. Crê que gozava uma saúde de ferro. E vivia feliz da forma livre que escolhera.
- «Melado», a colher amarela é minha! - repetia.
E pegava o menino pelo braço, acariciava a cabeça, os cabelos, via onde a mamãe guardava as colheres e esperava a chegada dela.
Na hora do almoço, a mamãe mandava que lhe entregasse a colher amarela. As outras colheres eram todas de metal branco.
O menino, obediente, mas... com uma certa relutància experimental é que resolvia entregá-la. Não fazia aquilo por maldade, era de ciúme mesmo pois, não estando o pai, ele se tornava o dono absoluto do precioso instrumento.
Quando a família zarpou para a Sussuapara, que era longe, muito longe de Jenipapeiro, lembra sua figura baixa, não muito gorda, cabelos pretos, alegre, brincalhão, levando ao ombro um baú velho de madeira, coberto de couro e pregos de cabeça redonda (arrebites) que formavam uns desenhos interessantes. O que ficara no baú, não podia imaginar, não prestava muita atenção a miudezas. Sabe que não era possível levá-lo na viagem. Daí surgiu a solução de deixar na casa da tia Rosa. E o peso quem pegou foi ele, o tio António, seu padrinho. Tomou-lhe a bênção. Mas escapou-lhe um comentário:
- Lá nesse lugar não vou ter a quem pedir a bênção, mãe!
- A gente volta logo, meu filho.
Depois que viajaram para Sussuapara, nunca mais o viu. Soube que adoecera. A tia Rosa lhe reservara um quarto especial. Mas não somente o quarto: prato, colher, pote e caneco, a fim de que não transmitisse a doença aos outros. Contaram-lhe que ele ia passo a passo definhando, emagrecendo... A tosse o castigava. Armou a rede onde dormia à noite e nos dias seguines só levantava por pouco tempo. As brincadeiras e o bom humor foram desaparecendo dos lábios, o rosto dia-a-dia se vincava pela magrém.
Realista ao extremo, mandou fazer o caixão funerário, deitava-se dentro experimentando se se conformava bem ao seu corpo, mandava fechar as duas bandas para sentir como iria sair para o cemitério.
Não demorou muito, a tosse tomava conta do pulmão, do corpo todo e do seu espírito. A luz dos olhos ia ficando sem cor.
Religioso, sim, mas o sofrimento o maltratava. Talvez nem tanto a solidão. Na condição de rapaz velho, já estava bem acostumado a ela. De nada se maldizia.
A esperança era o céu. Não existia, como hoje para os aidéticos, nem os tais remédios que prolongam os dias e diminuem os efeitos devastadores, nem os recursos de psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. O psicólogo daquele tempo era o padre. O padrinho António, confessou, arrependeu-se dos pecados, tomou o sacramento da extrema-unção e, serenamente, esperou que "a indesejada" lhe exaurisse as últimas forças.
Foi um santo. Tio António. Tio Santo António! Amém.

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*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, mora em Teresina. E-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br
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