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Contos-->Croa cerrada -- 13/07/2012 - 18:50 (José Mattos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

O caminhão sacolejava numa marcha morosa pela estradinha. Já estávamos há dois dias nessa lida. Eu, sentado a um canto da carroceria, observava as árvores de galhos tortuosos e de pequeno porte que deslizavam no sentido contrário ao nosso destino. Às vezes entrávamos numa espécie de túnel. Olhávamos para cima e só conseguíamos ver uns pequenos brilhos do sol respingado nas folhas. Meu pai, como se fosse um guia, ia informando a cada situação diferente:

 

– Aqui é croa cerrada, por isso esfria muito quando passamos por ela. Onça tem de penca por aqui. Aliás, bichos de todas as qualidades e costumes.

O caminhão foi saindo da mata densa e o calor foi aumentando até se tornar insuportável. Volta e meia, uma sacudidela, como se quisesse nos jogar no chão. Até que demos com um grande riacho. Não vi ponte alguma. O motorista desceu, olhou e mandou que descêssemos para ajudar a empurrar. A água corria ligeira sobre a areia branquinha que, de fria, doía nos pés. Após muitas patinadas dos pneus e o suor escorrendo pelo rosto devido ao esforço para ajudar o veículo na travessia, irrompemos do outro lado. Seguiu mais alguns metros e parou.

 

O motorista desceu com um riso de vencedor no rosto. Minha mãe mexeu nas tralhas e, metendo uma caixa na cabeça, alojou-se debaixo da primeira sombra que achou. Um grande e frondoso pé de pequi. Após improvisar uma trempe, sentamos em redor da bacia de farofa e comemos com um gosto que só sentem os famintos. A mãe não comeu. Estivera amuada toda a viagem. Meu irmão me chamou para tomar banho no riacho. Meu pai recomendou cuidado com uma tal de sucuri.

 

– Bicho traiçoeiro, vem de longe mirando a gente nos olhos. Depois fica assim por perto banzando, embaixo d’água, bem pertinho escondida no meio do aguapé e fica só com o focinho pra fora namorando o distraído. Querendo um abraço bem arrochado. Ai do pião que ela passar a rudia. Num iscapa nunquinha. O bom é carregar uma faca bem afiada junto ao corpo mode o caso de ela se engraçar prus lado da gente. Só tem um remédio se Deus livre-guarde ela se embolar com nós: ir cutucando ela, fazendo cosquinha, cutucando com a ponta da faca no contra-escama dela, pra ela ir afroxanu as laçadas. Do contrário, já foi pro beleléu.

 

Subimos de volta pro caminhão e seguimos viagem por entre aquele ermo de sertão, cruzando com manadas de porcos-do-mato, os queixadas; emas; seriemas; quatis. Um perdigão levantava voo aqui e ali, deixando para trás seu piado, entrecortado como o trilar de um apito de árbitro de futebol.

 

A viagem seguiu cheia de rangidos, trancos, freadas bruscas, berros do gado à beira do caminho, revoada de pássaros das mais variadas espécies, bichos, bichos e mais bichos. Num canto, meu irmão chorava por ter levado um arranhão no rosto. Os galhos passavam enroscando na carroceria do caminhão. Íamos atentos, baixando e levantando o corpo, desviando das unhas pontiagudas dos arbustos.

 

Minha mãe, sentada a um canto da carroceria, permanecia imersa em seu silêncio. Por algum instante, tive a impressão de ter visto uma lágrima arrastada em seu rosto.

 

Tínhamos feito muitas mudanças. A cada uma delas eu via nos olhos de minha mãe um crescente esmorecimento. No início dessas andanças, ela relutava com argumentos entusiasmados pela esperança. No entanto, os argumentos foram cedendo espaço para a melancolia. No cimo dos meus cinco ou seis anos, ficava horas observando-a arrastar-se de um lado para outro, labutando com os afazeres da casa como se carregasse nas costas um enorme fardo, e triste.

 

Eu me sentia desolado a cada “nova parada”. Era assim que minha mãe dizia, afagando-me a cabeça, minha testa apertada contra os seios. Seu coração saltava. Como se eu não entendesse o que acontecia. Quase que num ritual, recolhia os cacos das louças quebradas na mudança; afastava-se de casa algumas braças, puxando o saco de arrasto tilintando. Depois de enterrado, ela esquadrinhava o horizonte por longo tempo com os braços cruzados e o rosto sombrio. Ficava meio sem jeito quando percebia que eu a observava à meia cara atrás de um canto da moradia, ou de uma árvore, um arbusto. Forçava um riso repuxado, quase uma careta. Apanhava-me pelo braço e voltávamos para casa.

 

Corriam os meses; ela ia tomando nova aparência, ensaiava umas cantorias quando meu pai estava distante, e ria para mim, lá da beira do fogão, torrando café. Um riso franco. Acanhado, mas franco. Seu andar ia pegando agilidade, as chinelas de couro já não se arrastavam chapinhando a terra naquele chape-chape, e o peso parecia aliviar-lhe as costas. Adotava uma postura mais altiva ao caminhar. Isso me deixava agoniado, pois já havia percebido que, quando minha mãe começava a melhorar, estava chegando a hora de uma nova mudança.

 

Por mais de uma dezena de vezes me vi tentado a questionar meu pai se acaso era proposital as intempestivas mudanças. Se não gostava de ver minha mãe feliz. Mas tudo que eu conseguia era estacar diante dele, emudecido, sem articular uma única palavra. E quando indagado, eu simplesmente respondia:

 

– Nada não, pai.

 

Baixava a cabeça e dava-lhe as costas, ganhava o terreiro e me embrenhava no mato, engolindo soluços com o bornal a tiracolo. Descontava minha ira nos pássaros que se espantavam em revoadas. Voltava para casa com o sol já ido. Nessa última fuga, ao retornar, encontrei minha mãe sentada num cepo de madeira – chorava. Nova mudança para a noite. Sempre mudávamos à noite. Meu pai nunca dizia o motivo. Desconversava.

 

Ela segurava entre as mãos a imagem de São Judas, relíquia que ganhara de minha avó, que não conheci. Partira-se em pedaços ao embalada. Meu olhar carregou-se. Inflei que não cabia em mim. Um nó doído estrangulou minha voz, olhos abrasados. Prostrei-me em frente ao pai. Disse tudo, falei sem me dar conta. Tudo de um único despejo, romperam-se as comportas. O corpo era todo tremura. O chão sumiu-se sob os meus pés, e a imagem de meu pai oscilava, indo e vindo, desfocada. Talvez uma tonteira.

 

Por fim, parei fatigado e esperei o castigo. Senti o fogo da guaiaca me queimar as costas, as pernas. O vergão empolando o corpo. Fechei os olhos e cerrei os dentes.

 

Estremeci quando a grande mão de pele grossa me agarrou pelo braço, puxando-me para junto dele. Abraçou-me demoradamente, soluçando: “nunca mais, meu filho. Prometo. Essa será nossa última mudança!”.

 

Minha mãe, abandonando o desalento e os cacos, correu para nós de braços abertos desfraldando um largo sorriso como eu nunca vira.

 

– Promete mesmo?

 

– Prometo!

 

A lua já despontava na linha riscada junto ao chão, longe. Em silêncio, nos acomodamos entre as trouxas, no assoalho do caminhão.

 

Já era noite quanto chegamos ao nosso destino. Olhamos a silhueta da nova casa. Ela parecia repousar na vigília do escuro da noite, surda à sinfonia dos bichos e insetos noturnos, que logo silenciaram como se nos observassem de seus ocos, curiosos.

http://mugidodaema.blogspot.com.br/

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