Num passar de olhos eu vi: Minha vida a limpo, eu não me arrependera de nada feito, só do que desfizera ou deixara de fazer.Eu costumava ser mais mordaz, perdi o tino da acidez, só sobrou a voracidade. Minha nau insensata nem bem se lançou ao léu, soçobra ao leme e vem um véu de fumo branco, eu me vejo deitado e secretamente rio das pessoas em torno. Eu adormeço, mas de vez em quando um choro convulso me desperta. Alvoroço!
Não suporto as carpideiras de encomenda, morto que é morto é chorado pelas putas, pelas amantes, filhos, genros e noras; morto de respeito deixa marcas indeléveis na saia da secretária mal-falada, deixa um ouvido mordido na padaria, morto de respeito é daqueles dos meus. Bom, morto mesmo, mas de respeito. Adormeço. Ó zona do sapateiro aqui, desperto com o barulho dos saltos dela, sempre me incomodaram, arrastando pela casa enquanto ela fumava um charuto cubano de fumo forte que exacerbava minha asma, ela fazia de propósito, morto de respeito tem uma esposa que fuma charuto cubano e morre de ciúmes das putas de olhos lavados que vêm e vão nos intervalos dos clientes de beira de estrada, este sou eu, bem aí, ó, na frente de vocês, morto que é morto não mente jamais, só indaga, deixa uma dúvida na testa de todos, do adolescente que peida fedido só pelo desafio ao velhinho que peida contente pois é o único prazer que resta nesta vida de senil. Morto que é morto, mesmo, não peida: Fede, mas de uma maneira sutil, tão sutil que a viúva espalha perfume na sala antes que os "convidados" apareçam. Eu juro, vida de morto é difícil. Daqui onde estou, morto de verdade , eu posso ver as pessoas me olhando desenxabidas, uns pensando "morre filha da puta", outros "puta que o pariu, justo ele, um pegador", outros "bem feito: Muquirana, salafrário, sacana", dá pra enxergar feito balões de estória em quadrinhos, ah meu Zéfiro, deviam me enterrar junto com a coleção escondida no sótão da casa de campo. Só eu sei onde está, mas eu acho que algum caseiro vai achar, junto com as fotos da viagem que fiz a Cancun com aquela mexicana...Bem, é outra vida, outra estória, que saco este suadouro aqui, tanta flor que arrepia. Dá vontade de levantar mas ia ser um escàndalo, ia ter gente desmaiando, outras iam morrer mesmo, prefiro assim, este mutismo de doido, esta narcolepsia, esta catatonia que não me deixa mover um músculo: Dureza!!! Afinal, duro mesmo só...quem é mesmo aquela ali? Ah, a secretária, por quê ela veio? Sabe que minha mulher a odeia! Bom, vou saindo devagarinho...mas espera: Morto que é morto de respeito enfrenta tudo em calma, com silêncio, absoluto silêncio!!! Espera, e aquele careca? Ah, meu sócio, viu como a memória falha nestas horas? Eu andava mesmo precisando de sossego, férias, mas minha mulher vai ter férias eternas de mim!! E eu dela, pena. Boa companheira, suportou meus dias ruins. Quase todos meus dias ruins. Bem, alguns, quase nenhum, está certo. Ele ali que sabe de tudo, ele que me mandou para este hotel aqui onde vou sossegar de vez meu facho. Ele ali, bem na frente: Você não vê? Ele...Ora, ele. Só isto. Não estão vendo? Problema de vocês que lêem esta joça, não pedi para o autor me inscrever aqui nesta página, modernidades que eu não aceito. Até a fim fui romàntico!!! Bom, agora vou dormir, pelo jeito só sobrou minha velha: Seus olhos se encontram com os meus:Lembro de seus olhos jovens e alegres a perscrutarem minha alma, ela descobria até o que eu pensava! Bons tempos aqueles. Enfim, vou me despedindo. Ele que quis, de novo. Ele. Ora, o autor desta bagaça. Se sei por quê?? Perguntem a ele!! Eu que estou morto e vocês me perguntam! Tem cabimento? Boa noite.
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