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Teses_Monologos-->Eichmann em Jerusalém e o Tribunal Penal Internacional -- 04/10/2003 - 14:26 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
INTRODUÇÃO

O objetivo desse trabalho é analisar as relações entre o Direito Internacional Público (daqui em diante será referido como DIP) e a Política Internacional à luz da emergência do Tribunal Penal Internacional, primeira entidade capaz de demandar penalmente indivíduos em nível internacional que, no entanto, ainda não entrou em vigor. Tal objetivo será buscado através de um Estudo de Caso (“caso Eichmann”, tal como apresentado por Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a Banalidade do Mal”) e da feitura de simulações, aplicando-se o modelo do Tribunal Penal Internacional ao Estudo de Caso, levando em conta, obviamente, uma contextualização histórica que impõe limites severos a tal exercício.

ADOLF EICHMANN – A BANALIDADE DO MAL

Adolf Eichmann, filho de Adolf Karl Eichmann e Maria nee Shefferling – ambos protestantes – nasceu em 1906 na cidade de Soligen, Alemanha. Ele tinha oito anos quando sua família mudou-se para Linz, na Áustria, e ele podia ser considerado um medíocre aluno. Seu pai era um gerente comercial da Linz Eletric Works. Sua mãe morreu quando ele tinha dez anos e logo seu pai se casou novamente. Ele teve uma irmã e cinco irmãos. Alguns anos mais tarde, Eichmann disse a um entrevistador holandês, que estava colaborando no livro sobre suas experiências, que seu melhor amigo na infância, Harry Selbar, era um judeu. Ele cresceu como uma típica pessoa de classe média e, como também era típico na época, era afetado pelo forte nacionalismo que era parte da cultura do pré-guerra na Áustria. Depois de abandonar a escola, ele se tornou um vendedor da Socony Vacuum Company e mais tarde, ele conseguiu um emprego na American Oil Company, o que lhe deu a oportunidade de viajar.

Em 1932, Eichmann e seu pai foram convidados, pelo Dr. Ernst Kaltenbrunner, um amigo da família, para conhecer o Partido Nazista. Eichmann ficou impressionado com o fervor nacionalista daqueles que eram membros do partido e decidiu se integrar também. Um ano depois, ele perdeu seu emprego na companhia e, então, pediu ajuda a Kaltenbrunner que arranjou-lhe um emprego na brigada da SS da Áustria. Logo depois, Eichmann foi convidado para o Serviço Secreto da SS, o SD e lá, ele obteve o posto de sargento. Em 1935, ele foi chamado para cuidar do Jewish Department e manteve esse mesmo posto durante os anos da guerra, diferentemente de outros burocratas nazistas, que mantiveram uma rotatividade entre os diversos departamentos. Eichmann aprendeu hebraico e iídiche e estudou os judeus, angariando informações sobre seus líderes, sinagogas, empresas e cultura. Ele se casou com Vera Liebl, nativa da Boêmia.

Na Alemanha dos anos 30, Hitler capitalizou o descontentamento do seu povo, humilhado pela derrota na Primeira Guerra, e construiu uma monumental máquina bélica e militar. O ditador unificou o país apontando claramente um inimigo, contra o qual todos deveriam se unir. O judeu cosmopolita, segundo ele, era responsável por tudo de mal que havia no mundo. Hitler iniciou, assim, uma forte perseguição aos judeus. Em 13 de março de 1938, a Áustria foi anexada pela Alemanha. Reinhard Heydrich, chefe da SD, teve a responsabilidade de definir claramente os aliados e os inimigos da Alemanha. Eichmann chegou em Viena em 17 de março e como um conhecedor dos assuntos judeus, que até esteve na Palestina, logo consegui o cargo de exterminar a comunidade judaica. Uma autoridade especial foi estabelecida enquanto Heydrich administrava o escritório central para emigração de judeus, com Eichmann no comando. Sua idéia era reabrir as instituições judaicas, mas somente com o propósito de assisti-los em suas deportações. Com “mão de ferro”, insensível a quaisquer apelos, Eichmann se tornou um respeitado autocrata nas relações de judeus. Ele estabeleceu um sistema burocrático, em forma de fila, no qual os judeus começavam em uma ponta e quando eles chegavam ao final, eles não possuíam mais nenhum de seus bens a não ser um passaporte válido por duas semanas. E se neste período eles não conseguissem visto para saíram do país, seriam mandados para Dachau, uma prisão perto de Munique para oponentes políticos do regime nazista.

Naquela época, houve a conflagração da Segunda Guerra Mundial e Eichmann comandava o escritório central para a emigração de judeus, com 3 filiais. Quase que anualmente, ele era promovido, até chegar aos posto de Coronel da SS (SS Oberstrümbannfüehrer), no ano de 1941. A Segunda Guerra começou em setembro de 1939, quando a Alemanha atacou a Polônia, país no qual estava a maior parte da população judaica. O escritório de Eichmann deu às tropas germânicas ordem para matar todos os judeus que fossem considerados uma ameaça à segurança. Aí, foram assassinados 3 milhões de judeus poloneses. Enquanto isso, em Berlim, Eichmann dividiu os judeus em guetos e campos de trabalho forçado. Contudo, durante o julgamento, ele que havia sugerido a guetização como método para matar um grande número de judeus. Os guetos seriam o primeiro passo para a “Solução Final”; os seus sobreviventes seriam mandados, então para os campos de concentração.

Eichmann também foi supervisor do Einsatzgruppen que tinha como objetivo principal matar os judeus e roubar-lhes suas propriedades. Estima-se que 1,4 milhões de judeus foram assassinados por essa instituição em apenas seis meses. Tendo todos os arquivos sobre as ações deste grupo foram enviados para Eichmann. Contudo, os líderes nazistas começaram a se preocupar em estarem criando tantos assassinos “sangue frio” e então, Eichmann achou que eles precisavam de uma “Solução mais Elegante”, o que levou a um encontro, num subúrbio de Berlim chamado Wannsee, dos líderes nazistas para encontrá-la. A moção encontrada após uma hora e meia de conferência, foi a exterminação sistemática dos judeus nos campos de morte. Na Conferência de Wannsee, Eichmann apresentou a estimativa do número de judeus que seriam deportados para cada país e mortos nas câmaras de gás. Neste encontro o Terceiro Reich adotou o plano de deportação dos judeus para os campos de morte, o que ficou conhecido como a “Solução Final”. A maior parte deste debate centrou não na moralidade dessas ações, mas na proporção de sangue judeu que seria derramado com esse “tratamento especial” e nos métodos usados para efeito genocida. Heydrich deixou claro nesse encontro que todos requerimentos organizacionais e logísticos seriam responsabilidade de Adolf Eichmann .

Através dos anos, Eichmann foi o maior burocrata designado par deportar, concentrar e “assassinar” milhões de judeus. Ele viajaria de um país ocupado para outro para assistir os arranjos finais para a carnificina dos judeus. Em 1941, Hitler ordenou que todos os judeus do Reich fosse assassinados. Eichmann, como perito dos judeus na máquina de guerra nazista, foi o instrumento central na burocracia de guerra alemã. As vitórias iniciais do Exército do Terceiro Reich logo foram colhidas aturdindo derrotas. Antes do outonos de 1944, houve um bombardeio por parte dos aliados na região da via férrea européia que tinha sido ocupada para os esforços de guerra e deportação dos judeus. Além disso, os alemães também estavam sofrendo perdas na fronteira oriental. Tentando agradarem os russos, que estavam chegando a Budapeste rapidamente, Himmler tentou impedir a “Solução Final” e ordenou para que Eichmann parassem todas as deportações para a Hungria. Contudo, Eichmann ignorou as ordens de Himmler e reuniu mais 50.000 judeus. Incapaz de os deportar através de trens, ele decidiu que fez os judeus marcharem para os acampamentos de morte na Polônia. Com a guerra aparentemente perdida, Eichmann fixou seus esforços para destruir todos os documentos que poderiam achar que o implicasse no assassinato de massa mais odioso em história humana, e “assassinando” tantos judeus quanto poderia antes da inevitável vitória dos aliados.

Com a rendição da Alemanha, em 17 de maio de 1945, Eichmann esperou abatido pela sua captura. Todavia, um amigo da SS sugeriu que ele deveria escapar para as montanhas uma vez que ele poderia ser considerado como criminoso de guerra. Sua tentativa de evitar a captura falhou e ele foi feito prisioneiro pelos americanos e foi conduzido a um campo de prisioneiros de guerra. Ele conseguiu escapar e foi novamente capturado, mas passou a ser conhecido como Otto Eckmann, e não mais como Adolf Eichmann.

Durante o Julgamento de Nuremberg, o nome de Eichmann foi citado muitas vezes como o principal conspirador para a matança de todos os judeus da Europa. Aterrorizado pelo fato de que poderia logo ser descoberto, ele fugiu do campo americano de prisioneiros de guerra, a 35 milhas de Nuremberg, e desapareceu nas montanhas da Alemanha. Adotou o nome de Otto Henninger e se tornou um criador de galinhas. Quando o Tribunal Internacional de Nuremberg identificou Eichmann como o burocrata nazista encarregado no assassinato de massa dos judeus, ele começou a ser perseguido por muitas pessoas. Encondeu-se, então, num monastério na Itália, quando lhe foi dado um passaporte com o nome de Ricardo Klement.

Em 1950, com ajuda de nazistas, Eichmann voou da Alemanha para se esconder na Argentina, que era um bom lugar para nazistas e seus simpatizantes. Com dois anos, ele achou que estava seguro e sua esposa e seus três filhos também foram para Buenos Aires onde Eichmann trabalhou, primeiramente, como um criador de coelhos e, depois, como mecânico na fábrica argentina da Mercedes-Benz. Rapidamente, Eichmann reconstruiu sua vida. Ele foi apresentado, em 1956, à um holandês, ex-membro do partido nazista, Wilhelm Sassen, que o convidou para co-escrever um livro sobre suas experiências durante a guerra. Mais de 600 páginas de material datilografado foi preparado por meio de entrevistas com Eichmann e parte do material foi condensado e publicado na Life Magazine. Esses entrevistas proveram informações úteis para os promotores antes e durante o julgamento de Eichmann.

David Ben-Gurion, primeiro ministro de Israel, disse que era dever de sua Nação julgar os crimes contra os judeus e capturar todos os responsáveis por eles. Ele anunciou que Adolf Eichmann deveria ser levado para a Justiça se ainda estivesse vivo, mas todos aqueles que procuravam por Eichmann não conseguiram encontrá-lo. Contudo, no outono de 1959, assim que Israel conseguiu uma pista, mandou agentes especiais para Argentina que ficaram meses vigiando Eichmann, fotografando sua casa e desenhando detalhados mapas. Disfarçados, eles pediram informações, tiraram fotos, e finalmente, em 11 de maio de 1960, eles agiram. Capturaram Ricardo Klemente, ou melhor, Eichmann voltando para casa depois do trabalho, e o levaram à um esconderijo no qual ele foi interrogado. Lá assinou um documento que dizia que ele estaria disposto a passar por um julgamento em uma Corte competente. Os agentes o drogaram e o levaram para Israel sendo tratado como um criminoso qualquer. Eichmann foi levado para um prisão de Segurança Máxima, e extraordinárias precauções de segurança foram tomadas para evitar que Eichmann escapasse ou fosse resgatado. Viveu sob vigia 11 meses com investigadores que estavam construindo um caso contra ele. Uma agência especial de investigação foi estabelecida, a Agência 06, chefiada por oficiais germânicos. Todos os dias, os investigadores gravavam a interrogação de Eichmann; esta era transcrita para que o prisioneiro pudesse corrigi-las. Ao final, mais de 3.500 páginas sobre a vida de Eichmann foram escritas.

REAÇÃO MUNDIAL À CAPTURA DE EICHMANN

A reação mundial à captura de Eichmann teve diversas opiniões, a favor e contra o julgamento. O New York Times escreveu que “ Nenhum ato imoral ou ilegal justifica outro... a lei tem que proteger até mesmo os criminosos mais depravados”. (18 de junho de 1960). Outros editoriais, ainda, discutiram que o fim justificou os meios. Havia unanimidade no orgulho pela captura na imprensa israelense. O governo da Argentina expressou sua revolta e declarou o incidente como uma violação de sua soberania nacional. No dia 15 de junho, encaminhou uma reclamação oficial junto à ONU e pediu uma reunião para considerar "a violação de seus direitos soberanos criando uma atmosfera de insegurança e desconfiança incompatível com a preservação da paz internacional”. A ONU criou então uma sessão especial para discutir o incidente.

A Argentina conclamou Israel a fazer reparações das violações de soberania territorial cometida por seus nacionais. Todavia, naquele momento, não se fez claro se a captura tinha sido levada a cabo através de missão oficial do governo ou por sobreviventes do Holocausto que buscavam justiça. A Argentina nunca exigiu que Eichmann retornasse. A ministra do exterior de Israel na ocasião e futura primeira-ministra, a americana Golda Meir, se desculpou em nome do seu país pelo seu comportamento, mas disse que neste caso, uma violação da lei era justificada.

O representante de Estados Unidos na ONU, Henry Cabot Lodge, reconheceu a reclamação da Argentina como legítima, mas sugeriu que a resolução para esta reclamação fosse subjugada à preocupação de que Eichmann deveria ser trazido à Justiça. O embaixador Lodge sugeriu um acordo que resultou na desculpa de Israel para aquela ação, com a compreensão da Argentina, que não pediria para que Eichmann retornasse.

Nunca foram cortadas relações diplomáticas; a Argentina, porém, não achou a forma da desculpa de Israel aceitável e chamou de volta seu embaixador em Israel. No dia 5 de agosto, contatos diplomáticos entre representantes das duas nações resultaram em um acordo comum que declarou que o assunto que "infringiu direitos fundamentais do Estado de Argentina " fora considerado superado.

DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS NA ATUALIDADE

Segundo Ana Flávia Barros-Platieu e Ancelmo César Lins de Góis o crescente fenômeno de correlação e transnacionalidade das relações econômicas, sociais, financeiras, tecnológicas, culturais e sociais, vêm confirmar o caráter internacional ao campo do Direito, criando a necessidade de se discutir questões referentes à sua aplicabilidade e a forma como os limites soberanos dos Estados devem ser relativizados para que de fato se forme um Direito homogêneo no nível global, sem as máscaras do relativismo cultural. O que na realidade vem ocorrendo, é a formação de um consenso de que os Direitos Humanos não podem mais ser vistos como uma competência exclusiva dos Estados, e as questões referentes ao mesmo podem e muitas vezes devem ultrapassar a idéia de soberania nacional.

De fato, a questão dos Direitos Humanos já vem sendo colocada como primordial no cenário internacional a ponto de se pensar na criação do Tribunal Penal Internacional como uma forma de ao julgar e penalizar crimes dessa natureza. Ao inserir em seu quadro o genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes de agressão, o Tribunal pretende punir, de maneira a constranger futuras investidas contra os direitos dos seres humanos, mesmo em tempo de guerra. O advento das Relações Internacionais entre os novos atores (OI’s, ONG’s, indivíduos) que permeiam o sistema, resultou numa pressão pública sobre os Estados, para que eles julguem os culpados e intervenham, ainda que diplomaticamente, em casos como Ruanda e Iugoslávia. Essa assertiva, deixa claro que os Estados ainda são vistos como os atores chamados a defender os direitos legítimos, estabelecendo relações jurídicas tanto na esfera privada quanto pública, nos âmbitos nacional e internacional.

O Direito Internacional (Público) está cada vez mais evidente na agenda internacional contemporânea, demandando que se criem instrumentos jurídicos internacionais de modo a regular tal matéria, não apenas redefinindo o papel dos Estados que deixam de deter o domínio reservado deste campo, mas também inserindo no cenário da ‘justiça global’, os indivíduos e os diferenciados tipos de organizações. A partir disso, pode-se entender que

"In the prospect of an international criminal court lies the promise of universal justice. That is the simple and soaring hope of this vision. We are close to its realization. We will do our part to see it through till the end. We ask you . . . to do yours in our struggle to ensure that no ruler, no State, no junta and no army anywhere can abuse human rights with impunity. Only then will the innocents of distant wars and conflicts know that they, too, may sleep under the cover of justice; that they, too, have rights, and that those who violate those rights will be punished." Kofi Annan, United Nations Secretary-General

“A institucionalização gradativa das relações internacionais por meio de instrumentos jurídicos é uma das condições de possibilidade (...)” de se criar o que James Rosenau definiu como governança global em que a noção de que a “ existência de regras, a qualquer nível da atividade humana, da família até as organizações internacionais, cujas finalidades, que são controladas, têm incidências internacionais”.

A difusão de tribunais ad hoc como o Tribunal Penal Internacional da Iugoslávia e o Tribunal Penal Internacional de Ruanda limitam-se a um lugar e a um tempo, não sendo suficientes para atingir o objetivo das Nações Unidas em assegurar o respeito universal aos Direitos Humanos e as liberdades fundamentais dos indivíduos por todo o globo, além de serem vistos como passíveis de uma “justiça seletiva”. Além disso, para se criar esses tribunais específicos, deve-se seguir uma cadeia de ações burocráticas que podem vir a trazer várias conseqüências maléficas até mesmo pelo tempo e custos envolvidos nesse empreendimento: enquanto o tribunal está sendo criado, as evidências dos crimes podem se deteriorar ou serem destruídas, culpados podem fugir ou desaparecer, vítimas podem ser coagidas ou eliminadas.

O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Dessa maneira, o Tribunal Penal Internacional é vista como o instrumento que falta ao sistema jurídico internacional e, somente com a sua condição de permanência, será possível lutar de forma rápida e eficiente, contra a impunidade e a favor da paz, da justiça e dos direitos humanos em situações de conflito. A Corte Internacional apresenta um caráter de complementaridade com os sistemas legais nacionais, atuando quando estes não estiverem em condições de ou não desejarem se manifestar em referência a um dado caso. Somando-se a isso, a Corte pode atuar tantos em casos referentes a signatários de seus estatuto, quanto por invocação do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, relevante à natureza mandatária de determinadas ações. Criada pelo Estatuto de Roma, elaborado em 17 de Julho de 1998 e aberto para assinaturas e ratificações em 2000, o Tribunal Penal Internacional condensa todos os esforços e expectativas no sentido dessa nova função, mais relevante e “coercitiva”, do Direito Internacional Público como veículo de promoção dos Direitos Humanos e de consolidação da presença de agentes não-estatais no seio da sociedade internacional. A Corte nasce com a competência para julgar 4 tipos de crimes considerados ameaças à “comunidade internacional como um todo” – o crime de Genocídio, crimes contra a Humanidade, crimes de Guerra e o crime de Agressão (para detalhes, ver ANEXO - ROME STATUTE OF THE INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, articles 5 a 8). Possui jurisdição sobre as ações de qualquer indivíduo que cometa um desses crimes, vinculando os Estados que aderem a seu Estatuto a lançar mão de todos os seus meios para levá-los a julgamento na sede da Corte (Haia, na Holanda).

Em que pese o fato de que ainda não está em vigor (depende de certo número de ratificações que ainda está muito distante de ser alcançado), o Tribunal Penal Internacional simboliza a preocupação em se criar uma jurisdição para os crimes mais sérios concernentes à comunidade internacional como um todo; prevendo em seu estatuto crimes como os cometidos pelo Terceiro Reich, não somente contra os judeus mas contra os distintos grupos que ameaçavam a “pureza da raça ariana” nos territórios dominados pelas forças nazistas. Poderia o Tribunal Penal Internacional, então, haver contribuído ainda mais para essa valorização do DIP, caso houvesse existido à época do julgamento dos criminosos de guerra nazistas? Tal é o que buscaremos esclarecer nesse trabalho.

TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E O CASO EICHMANN – UM EXERCÍCIO DE SIMULAÇÃO

Tendo em vista o caráter recente do Tribunal Penal Internacional (que sequer entrou em vigor, graças ao número reduzido de assinaturas que seu Estatuto obteve até o presente momento), pode-se afirmar que a utilização desta como “modelo” passível de aplicação a diversos contextos internacionais constitui tarefa relativamente facilitada. Com isso não se pretende tomar a Corte como instrumento analítico genérico – o cerne da questão é que a não-existência de um “histórico operacional” ou de uma “cultura organizacional” da Corte, por ser ela de recente criação, facilita o seu cotejo com contextos internacionais os mais diversos, ainda que sua criação, moldada (como qualquer instituição humana) por fenômenos sociais, culturais, políticos e históricos específicos, imponha limites à feitura de simulações. Em não havendo oposição entre as características do contexto internacional em questão e os princípios e normas contidos no Estatuto de Roma, portanto, a simulação é perfeitamente factível, e seus resultados podem contribuir para melhor compreender que papel o DIP pode representar no sistema internacional, mesmo em cotejo com decisões políticas as mais diversas.

A SIMULAÇÃO

1. TRIBUNAL PENAL DE JUSTIÇA – 1960?

Teria sido possível a existência de umo Tribunal Penal Internacional em 1960? O exame dessa possibilidade deve ser feito à luz do contexto internacional de então (época aproximada do auge da Guerra Fria).

1.1 GUERRA FRIA

Desde o término da Segunda Guerra Mundial e até o final dos anos 80, a Guerra Fria permeou os principais fatos políticos no mundo. A opinião pública mundial acompanhou o conturbado relacionamento entre os Estados Unidos e a União Soviética, relacionamento esse que Raymond Aron definiu como sendo a paz impossível, por causa dos interesses de capitalistas e de comunistas que eram inconciliáveis por natureza, e, concomitantemente, a guerra também improvável, por causa do poder de destruição das Superpotências, tão grande que um possível confronto seria, com certeza, o último. Podemos, assim, caracterizar esse período como o equilíbrio do terror, no qual nenhum dos extremos era alcançado, porém a tensão era uma constante.
Após a Segunda Guerra Mundial o cenário internacional foi redesenhado pelas potências vencedoras no conflito. Negociações nesse sentido haviam ocorrido previamente nas conferências de cúpula de Yalta e Teerã (1943) e Potsdam (1945). O mundo do pós-Guerra seria dividido em áreas de influência, submetidas ao poderio bélico/ideológico (configurando uma hegemonia) das Superpotências – Estados Unidos e União Soviética. A Organização das Nações Unidas, nascida sobre os escombros da Liga das Nações e à sombra do temor de um Holocausto Nuclear (prenunciado por Hiroshima e Nagasáki), seria responsável pela manutenção da Paz internacional mediante a cooperação internacional. Seu Conselho de Segurança, reunindo os vencedores da Segunda Guerra, seria a ponta-de-lança desse processo. No entanto, verifica-se a ineficiência do Conselho como gerenciador da Paz internacional e órgão executor (das normas criadas pela Assembléia-Geral da ONU) no período – graças aos vetos mútuos das Superpotências em seu seio. O sistema de segurança coletiva da ONU nasce prematuramente debilitado pelo embate das Superpotências, não possuindo a entidade um corpo militar de intervenção autônomo, o que contribuiu para seu relativo desprestígio. A ONU já nasce, portanto, imbuída pelo espírito “bipolar” da época, admitindo a existência de organizações internacionais regionais com as quais pudesse compartilhar as tarefas que lhe couberam quando de sua fundação. Em pouco tempo surgiriam a OTAN (1949) e o Pacto de Varsóvia (1955), levando ao colapso do sistema de segurança da ONU (propostas para sua reabilitação só viriam nos anos 90, após o fim da Guerra Fria). Além das duas Superpotências, outras potências, menores, ainda possuíam variados graus de importância, seja pela posse de armamento nuclear (Grã-Bretanha), extensos impérios coloniais (França, Grã-Bretanha), pujança econômica (Japão pós-1952 e Europa Ocidental pós-Plano Marshall), tamanho dos exércitos (China, Israel pós-1949) e modelos de desenvolvimento econômico autônomos (diversos países do Terceiro Mundo buscaram essa via, com destaque para a Índia).

1.1.1 A CRIAÇÃO DO ESTADO DE ISRAEL

Graças ao Holocausto praticado pelos nazistas, havia um clima internacional favorável à criação do Estado de Israel. O povo judeu, após milhares de anos de perseguições, teria seu “refúgio sagrado” enfim – quem não concordava com isso eram os árabes e principalmente árabes palestinos, imensamente desfavorecidos nas complexas negociações sobre o futuro da Palestina que já haviam começado durante a Primeira Guerra Mundial (1917). A concentração de cuidados com o Oriente Médio, além da questão árabe-israelense, deve-se à lógica da Guerra Fria e às características próprias da região. Habitada desde tempos imemoriais, a região destaca-se por três características. Do ponto de vista econômico, é a mais rica em reservas de petróleo; do ponto de vista geopolítico, serve de passagem entre Ásia e Europa; e no aspecto cultural-religioso, é o berço das três principais religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Essas características tornaram a região um dos centros nevrálgicos da Guerra Fria.

A criação do Estado de Israel, em 1948, agitou um passado milenar, que logo seria submetido ao jogo das superpotências. Muitos interesses geopolíticos estavam em jogo no Oriente Médio, tanto a União Soviética quanto os Estados Unidos acreditavam que Israel poderia se tornar um importante parceiro político na região. Israel foi apoiado pela URSS de 1949 (as armas com que Israel se defendeu dos árabes foram compradas dos soviéticos) até a invasão do canal de Suez, em 1956. Daí em diante Israel tornou-se o maior aliado dos Estados Unidos no Oriente Médio. Os palestinos e os países árabes vizinhos nunca aceitaram a criação do Estado judaico. No dia da fundação do Estado de Israel , em 1948, já ocorria uma guerra árabe-israelense. Tendo Israel vencido tal conflito, o Estado árabe-palestino foi divido entre Israel, Jordânia e Egito. Desde então o Estado de Israel luta contra seus vizinhos árabes e busca se impor diante deles, evocando os mitos do “povo escolhido” e do “eterno anti-semitismo” como cimento do povo judeu. O julgamento de Eichmann foi um dos momentos do “renascimento ritual” do Estado de Israel perante sua população – para Hannah Arendt, era a hora dos jovens e dos judeus do Leste conhecerem “a história”.

1.2 DIREITO INTERNACIONAL E A GUERRA FRIA

Segundo Arrighi (1982), a Guerra Fria correspondeu ao “fim do sistema de Estados westfaliano”, na medida que a soberania nacional (entendida num sentido político amplo) virtualmente cessou de existir no cenário internacional, graças à demarcação de áreas de influência sob rígido controle das Superpotências (que, aliás, seriam os únicos agentes “realmente soberanos”). Analisada no seu aspecto legal, no entanto, a soberania dos estados foi reafirmada – sendo um dos pilares mais fundamentais sobre os quais se ergueu a própria ONU. O grande número de entidades políticas que lograram o reconhecimento internacional, ascendendo à condição de Estados soberanos nos anos 50 e 60 contribuiu para essa valorização.

A ONU, fundada sobre bases tanto universalistas (defesa dos Direitos Humanos, entre outros pontos aos quais devem aderir seus Membros, os Estados) quanto particularistas (respeito à soberania estatal de seus Membros), defendendo simultaneamente a igualdade entre seus Membros (na Assembléia-Geral e nos diversos órgãos de seu sistema) e a desigualdade manifesta no seu Conselho de Segurança, dominado pelas Superpotências em conflito, reflete essa ambivalência verificada em relação à soberania estatal durante a Guerra Fria.

O Direito Internacional Público (será referido como DIP no que se segue), seguindo a situação manifesta nos princípios da ONU, permanece fundamentalmente um direito complementar, ciente da existência de entidades nacionais soberanas com jurisdição exclusiva sobre seus territórios e cuja competência é restringida por essas mesmas soberanias, ao mesmo tempo que abre possibilidades de restrição dessa mesma soberania, incluindo as organizações internacionais e (mais lentamente) os indivíduos e as ONGs entre os portadores de personalidade jurídica internacional e considerando que os perpetradores de crimes contra a Humanidade não podem se defender “atrás” de uma ou mais soberanias nacionais, permanecendo impunes. O Tribunal de Nuremberg, no imediato pós-Guerra, foi o primeiro a julgar indivíduos (e não Estados) por crimes considerados ofensivos à Humanidade como um todo. A existência do Tribunal Internacional de Justiça (ligado às Nações Unidas, herdeiro do Tribunal Permanente de Justiça Internacional existente à época da Liga das Nações e cuja competência supõe uma limitação, ainda que tênue, da soberania dos estados) no imediato pós-Segunda Guerra Mundial indica que a existência de tribunais/cortes internacionais em tal contexto não era uma impossibilidade.

No entanto, o fato dos responsáveis pelo julgamento em Nuremberg terem sido os vencedores da Segunda Guerra, o fato desse tribunal ter sido um tribunal ad hoc e o fato do Tribunal Internacional de Justiça ter atuação limitada (dada a importância marginal da ONU frente à hegemonia das Superpotências – Estados Unidos e União Soviética – em suas respectivas áreas de influência), impediram que o DIP fosse inteiramente beneficiado a partir da atividade desses dois tribunais – aos olhos de muitos, Nuremberg não passou de um julgamento dos vencidos pelos vencedores, pura “Realpolitik” e o Tribunal Internacional de Justiça era o símbolo maior da impotência do DIP frente a essas mesmas políticas de poder no cenário internacional.

O fato de que, ainda hoje, o Direito Internacional Público assume essa dupla feição, de direito complementar ao direito estatal, produto da soberania, e de direito que limita essa mesma soberania, contribui para a viabilidade da simulação a ser efetuada. O Tribunal Penal Internacional, reunindo elementos presentes tanto em Nuremberg quanto no Tribunal Internacional de Justiça, preenche os requisitos para ser o “passo adiante” no ganho de importância internacional do DIP – na medida que pode corrigir as “deficiências” dos tribunais que o precederam, possuindo potencial para limitar a soberania dos Estados que aderem a seu Estatuto e podendo julgar indivíduos por crimes contra a Humanidade. Ao mesmo tempo, a Corte é uma instância complementar à jurisdição dos Estados; somente após o “fracasso” dessa última ela entra em ação.

2. DA POTENCIALIDADE À VIABILIDADE

Tendo concluído que seria possível o julgamento de Adolf Eichmann pelo Tribunal Penal Internacional, caso esta existisse à época, surge nova questão: tal julgamento seria viável politicamente, levando-se em conta o contexto internacional em questão?

2.1 AS POTÊNCIAS E OS REMANESCENTES NAZISTAS NA GUERRA FRIA

Hannah Arendt, em diversas passagens de “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a Banalidade do Mal”, insinua que o governo alemão no imediato pós-Guerra (Konrad Adenauer) aproveitou antigos membros do Partido Nazista em sua máquina governamental, fazendo uma espécie de “vista grossa”. Tais ex-membros, como burocratas altamente especializados, executores de funções essenciais para o correto funcionamento da máquina estatal, eram imprescindíveis. Não era essa a situação de Eichmann (o “gerenciamento da Morte” não era uma tarefa essencial do novo governo alemão, ao contrário do que havia sido durante a maior parte do regime Nazista). Ele, como outros integrantes do Partido Nazista que não tinham utilidade “imediata” no novo governo alemão no Pós-Guerra, seriam alvo de intensa perseguição por parte dos Estados vitimados pela ação nazista na Segunda Guerra, não sendo portanto “acobertados” pela nova República Federal Alemã. Nesse ponto as Superpotências estavam de acordo – a prisão e julgamento dos homens de Hitler colaboraria para aumentar o grau de legitimidade da nova ordem internacional (Guerra Fria), como já havia ocorrido no Tribunal de Nuremberg sendo, portanto, altamente desejável. Não haveria empecilhos, portanto, ao julgamento de Adolf Eichmann por parte das nações vitimadas pela ação nazista na Segunda Guerra. Resta saber se um dos estados interessados no julgamento (especificamente Israel) estaria em condições de julgar Eichmann de forma condizente com seus atos – que foram “crimes contra a Humanidade, perpetrados no corpo do povo judeu” (Arendt, 1994: p. 17).

2.2 ISRAEL E O JULGAMENTO DE EICHMANN

Hannah Arendt, na obra “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a Banalidade do Mal”, faz críticas veladas e explícitas ao teor que assumiu o julgamento de Eichmann em Israel. Uma oportunidade para colocar a Humanidade no centro da discussão, colaborando para o fortalecimento do DIP e da própria ONU,, foi perdida e atendeu aos interesses de um Estado nacional particular em legitimar sua existência frente a seus próprios cidadãos. Uma oportunidade para consolidar os Direitos Humanos acabou por constituir a apoteose do poder estatal; não apenas o promotor do caso considerava que “a tragédia do judaísmo como um todo constituiria a preocupação central” (Idem, p.16) bem como “assim como todos em Israel, ele (o promotor) acreditava que só um tribunal judeu poderia fazer justiça aos judeus, e que era tarefa dos judeus julgar seus inimigos. Daí a hostilidade quase generalizada em Israel contra a simples menção de uma corte internacional que pudesse acusar Eichmann não de crimes ‘contra o povo judeu’, mas de crimes contra a Humanidade perpetrados no corpo do povo judeu” (Idem, p.17). Coerentemente, Eichmann foi julgado pela Corte Distrital de Jerusalém com base numa pela lei israelita de 1950 para punir os nazistas e seus colaboradores sobre os seguintes pontos:

Responsável pelo assassinato de um número incontável de judeus;
Alojou esses judeus, antes de serem assassinados, em condições designadas para exterminá-los;
Causou a esses judeus graves danos físicos e mentais;
Tomou ações para esterilização dos judeus, a fim de prevenir o nascimento de crianças;
Causou escravização e deportação de milhões de judeus;
Causou perseguição de judeus baseada em nacionalidade, raça e religião
Espoliou as propriedades de judeus por meio de medidas desumanas, como roubo, terrorismo e violência;
Todos aqueles que estiverem envolvidos com os crimes acima foram punidos;
Deportou meio milhão de poloneses;
Deportou 14.000 eslovenos;
Deportou 10.000 ciganos;
Deportou e assinou 100 crianças da vila de Lidice;
(As três últimas acusações estavam ligadas a envolvimento e associação a organizações (SD, Gestapo, SS) que foram julgadas em Nuremberg. Essas penalidades exigiam a pena máxima).

Há notável correspondência entre esses pontos e aqueles arrolados na jurisdição do Tribunal Penal Internacional, no seu artigo 5 (vide ANEXO) – demonstrando que, sem dúvida, a Corte poderia ter julgado o caso à época – na medida que constituem crimes contra a Humanidade, crime de agressão e crime de Genocídio. No entanto, verifica-se sobremaneira a recusa de Israel em aceitar uma “corte internacional” para tal caso, embora algumas das acusações (relativas aos poloneses, eslovenos etc.) não se referissem exatamente à soberania do Estado de Israel. Este último parece ter querido conferir ao julgamento um caráter de “imparcialidade”; de qualquer forma, percebe-se que Israel não desejava que Eichmann fosse julgado por crimes contra a Humanidade – retomando Arendt, “a tragédia do judaísmo como um todo constituiria a preocupação central”...

2.3 ALTERNATIVAS PARA UM JULGAMENTO IMPARCIAL

Havendo sido demonstrado o não-interesse do Estado de Israel em julgar Eichmann por crimes contra a Humanidade, é necessário estabelecer estratégias alternativas que pudessem tê-lo levado à Haia (Holanda) para julgamento no Tribunal Penal Internacional, caso esta estivesse em funcionamento à época. Estando Eichmann em poder do Estado de Israel, e sendo julgado por este Estado, não haveria a possibilidade de julgamento do caso pela Corte (isso está explícito no artigo 11 do Estatuto de Roma, “Temas de Admissibilidade” – vide ANEXO), a não ser que a Corte considerasse que o julgamento em Israel não fosse suficientemente imparcial (o que parece ser verdade, tomando-se o relato de Hannah Arendt). Mas ainda restaria a possibilidade de Israel não reconhecer o Tribunal Penal Internacional – bem provável, a partir da frase “...daí a hostilidade quase generalizada em Israel contra a simples menção de uma corte internacional que pudesse acusar Eichmann não de crimes ‘contra o povo judeu’, mas de crimes contra a Humanidade perpetrados no corpo do povo judeu” (Ibidem). Dessa forma, a fim de que Eichmann pudesse ser levado a Haia, os procedimentos nesse sentido deveriam ocorrer antes da sua captura e translado para Israel. A primeira dessas possibilidades é a do próprio país onde Eichmann se encontrava escondido (Argentina) levar o caso à Corte, tendo previamente ratificado o Estatuto de Roma. Essa alternativa é pouco provável, já que o governo argentino, tradicional “paraíso” de ex-nazistas fugitivos, nunca se mostrou interessado em julgá-los por seus crimes. Após a captura de Eichmann o máximo que o governo argentino fez foi reclamar reparações à sua soberania violada pela ação do Mossad...

Uma segunda alternativa seria o recurso de ONGs, indivíduos ou Organizações Internacionais ao Promotor da Corte, de acordo com o estabelecido no seu artigo 15. Munido de informações acerca dos crimes cometidos por Eichmann, o Promotor poderia iniciar o caso. Tal possibilidade é menos factível dado que, à época, a personalidade jurídica das Organizações Internacionais apenas começava a ser reconhecida, estando os indivíduos e as ONGs em situação ainda mais precária.

A terceira possibilidade diz respeito ao Conselho de Segurança da ONU, que é capaz, segundo o Estatuto de Roma, de fazer o pedido ao Promotor da Corte para iniciar esse tipo de processo. Como abordado previamente, os Estados Unidos e a União Soviética não se opunham à prisão e julgamento de Eichmann, pelo contrário, seriam potencialmente beneficiados por uma repetição do que fora o Tribunal de Nuremberg. Ciente do poderio investigativo dos serviços secretos soviético e norte-americano, não seria tarefa difícil descobrir o paradeiro de Eichmann, bem como a pressão do Conselho poderia obter facilmente a aceitação tácita do governo argentino relativo ao desenrolar do caso...Talvez houvesse alguma oposição de França e Grã-Bretanha, dado que estes, após o conflito do Canal de Suez, haviam-se tornado fortes aliados do Estado de Israel, e poderiam ter defendido o direito do “povo judeu” julgar seus “inimigos”. No entanto isso poderia ser contornado, caso houvesse real interesse soviético e norte-americano no julgamento. O Conselho de Segurança, assim, seria o veículo ideal para iniciar o processo e, dadas os recursos de poder de seus mais importantes integrantes, poderia “sustentar” o processo sem grandes dificuldades. Havendo vontade política, portanto, não haveria empecilhos ao julgamento de Eichmann pelos crimes sob jurisdição do Tribunal Penal Internacional.


3. SIMULAÇÃO – COMO SERIA O PROCESSO CASO O CONSELHO DEMANDASSE A CORTE

Supondo que o Estatuto de Roma tivesse entrado em vigência num período anterior aos crimes cometidos por Adolf Eichmann (fato necessário para que este caso fosse levado à Corte, de acordo com o Artigo 11 do Estatuto de Roma), o Conselho de Segurança, agindo em conformidade com o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, recorreria ao Promotor da Corte, munindo-o de informações acerca das atividades criminosas de Adolf Eichmann. O Promotor investigaria, então, a seriedade da informação recebida, buscando auxílio nos órgãos da “família ONU”, nas ONGs e em testemunhos individuais, quando necessários. Havendo concluído que haveria base razoável para proceder com a investigação, o Promotor pediria autorização à Pré-Câmara de Julgamento para iniciar o julgamento. Após a autorização da Pré-Câmara, o Promotor avisaria os Estados-Membros a respeito do início do processo, em especial aqueles cuja jurisdição está diretamente envolvida, fazendo o possível para impedir que estes atrapalhem o processo (via proteção de suspeitos, destruição de provas etc.). Um mês após este aviso os Estados podem notificar a Corte de que já estão investigando o suspeito sob sua jurisdição (não seria o caso da Argentina, por suposto), o que poderia ou não ser aceito pela Corte. O processo se desenrola. A Corte poderá requerer a prisão e o translado do acusado de qualquer de seus Estados Membros para Haia, sendo que os Estados Membros que ratificassem o Estatuto de Roma teriam a obrigação de colaborar de todas as formas com o desenrolar do processo – a sociedade internacional como um todo teria a obrigação de colaborar na captura e translado de Adolf Eichmann, ao contrário do que ocorreu na realidade, com seu sequestro e translado da Argentina para Israel pelo Mossad.

A Corte poderá aplicar durante o processo, além do Estatuto, tratados internacionais e os princípios e regras da lei internacional, incluindo aqueles da lei internacional do conflito armado e, em último caso, os princípios gerais do Direito de quaisquer estados do mundo, em especial daqueles que prevêem jurisdição sobre o crime, não sendo estes princípios incompatíveis com o Estatuto. O acusado pode ser penalmente responsabilizado, mesmo que estivesse “recendo ordens superiores” no momento em que cometeu seus crimes. A independência dos juízes da Corte (provenientes de todos o mundo, ao contrário do que ocorreu em Nuremberg) garantiria maior credibilidade ao resultado do processo. As penas possíveis incluem prisão por um período não superior a 30 anos, prisão perpétua (para os casos de maior gravidade, como o de Eichmann), multas a serem determinadas pela Corte, apreensão de bens e perda de cargos administrativos etc.

O RESULTADO DA SIMULAÇÃO – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Efetuado, dessa forma, o julgamento de Adolf Eichmann por crimes contra a Humanidade, crime de Genocídio e crime de Agressão no Tribunal Penal Internacional, percebe-se quão mais benéfica ao DIP e ao próprio sistema internacional teria sido essa possibilidade, comparada com o julgamento ocorrido na Corte Distrital em Jerusalém em 1960. A própria idéia da sociedade internacional trabalhar em conjunto, em estreita cooperação, na efetivação da Justiça em nível internacional, defendendo Direitos Humanos que tem por referência a Humanidade como um todo e não apenas uma de suas partes, responsabilizando indivíduos por seus atos, mesmo que estes busquem se acobertar sob a máscara das “ordens superiores derivadas da Razão de Estado”, e fazendo isso mediante procedimentos legais que não estão submetidos ao jugo das soberanias atomizadas dos Estados, é revolucionária. Outro ponto interessante seria a participação de organizações internacionais e não-governamentais, atuando lado a lado com Estados e com a Corte no desenrolar do processo, consolidando a idéia de que não somente Estados possuem personalidade jurídica e podem atuar no sistema internacional. No que diz respeito à pena imposta a Eichmann, o “povo judeu” e o Estado de Israel não teriam, decerto, satisfeito seu desejo de vingar seus mortos punindo seus inimigos com a morte e a utilização pública, quase teatral, de sua imagem; nem estariam satisfeitos por terem sido privados desse “direito” por uma Corte Internacional que lançava, ademais, suspeitas sobre a “imparcialidade” do sistema jurídico israelense. No entanto, o ganho agregado dessa simulação, para o sistema internacional, para o DIP, para os Direitos Humanos e para a democratização das Relações Internacionais, consolidando a importância de agentes não-soberanos e colocando a pessoa humana no cerne do debate dos Direitos Humanos (tanto como sujeito possuidor de direitos como quanto perpetrador de violações desses mesmos direitos, sendo passível de julgamento e punição) supera em muito as “perdas” do Estado de Israel e do “povo judeu”...

Certamente que esse exercício de simulação não é em si categórico – algumas de suas premissas envolvem alto grau de abstração e formulação de hipóteses dependentes de grande número de variáveis, tornando claro que houve um processo de intensa “modelagem” dos dados que pode haver ocultado lacunas, deficiências e contradições que decerto são de suma importância. Houve, da mesma forma, simplificações em diversos pontos, bem como momentos de grande subjetividade e interpretação. No entanto, uma visão panorâmica, algo nítida, das possibilidades do DIP e dos Direitos Humanos na época da Guerra Fria, sem deixar de lado a contextualização histórica e a lógica, se torna possível a partir desse exercício de simulação, mesmo que algumas de suas premissas hajam sido forçadas quase ao limite, elevadas a um imenso grau de abstração. Esperamos ter feito alguma contribuição, por menos que seja, nesse sentido.

BIBLIOGRAFIA

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

ARRIGHI, Giovanni. A Crisis of Hegemony in Dynamics of Global Crisis. Nova York: Monthly Reviews Press, 1982

BARROS-PLATIEU, Ana Flávia e GÓIS, Ancelmo César Lins de. Direito Internacional e Globalização. In: Cidadania e Justiça - Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros. Ano 4/ No 8 – 1o Semestre/2000.

KRASNER, S. Sovereignty: organized hipocrisy. Princeton: PUP, 1999.

Sites pesquisados: http://www.un.org/

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http://www.un.org/law/icc/general/court.htm
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