Comer não é direito de todos
Leonardo Boff é teólogo e escritor
Publicado no jornal O POVO, dia 31 de janeiro de 2003
Há dois valores que o socialismo, apesar de suas contradições, tinha vivos: o internacionalismo e o sentido da solidariedade mundial a partir dos oprimidos. Essa herança desapareceu quase totalmente após a implosão do ensaio socialista. O que veio após foi uma revolução, vale dizer, uma involução: o triunfo de uma cultura materialista, competitiva e mercantilista. Mercantiliza-se tudo: água, saúde, educação, arte, sexo e religião. Setores desta, então, entraram pesadamente no mercado, disputando entre si quem mais atrai gente, se as sessões de exorcismo e cura, se a hilária aeróbica de Deus.
Se tudo é negócio, então, tudo vira oportunidade de ganho. A coisa é simples: os ricos são ricos porque aproveitaram as oportunidades e os pobre são pobres porque se mostraram incapazes de aproveitar delas. A função do Estado se concentra em criar oportunidades para todos e de manter o acesso ao mercado livre e competitivo. A partir daí, cada qual lute e construa seu caminho.
Onde reside a falácia dessa visão? Na admissão de que não existem mais direitos humanos universais e incondicionais, pouco importa o dinheiro que tenho no bolso. O que existe, dizem, não são direitos mais necessidades vitais. E cada um por si mesmo deve buscar atendê-las. Não existe mais o direito para todos de comer, vale dizer, de viver, nem o direito ao acesso à água potável e ao ar respirável. Tudo é acessível, contando que se pague.
Comida, água e ar não são mais bens comuns mundiais, cuja gestão cabe à responsabilidade pública coletiva. Agora são bens econômicos, cuja gestão, para ser mais eficaz, dizem, caberá ao setor privado. Em 1974, o G7, ao projetar a Nova Ordem Econômica Mundial, propunha como resposta à crise do petróleo, erradicar até o ano 2000, totalmente a pobreza e garantir o acesso à água potável a todos. Em 2002, ao constatarem que a situação mundial se agravou, os mesmos decidiram, em Joanesburgo, em apenas diminuí-la pela metade até o ano 2015. Em outras palavras, o direito de comer, de beber e de respirar, em fim, de viver, não está garantido para todos.
Reconhece-se assim que a desigualdade entre ricos e pobres é insuperável. Como o repete nosso humanista maior o ministro Cristovam Buarque: Podemos ser não só desiguais, mas dessemelhantes, pois não nos sentimos mais do mesmo gênero humano; só erradicamos a pobreza se nos sentirmos semelhantes, caso contrário, bifurcamos a humanidade . O combate à fome humana que inclui a fome de beleza (cidadania) é critério inconfundível de vigência ou não de humanidade e de com-paixão entre os humanos.
Agora temos condições de apreciar o caráter revolucionário e anti-sistêmico do projeto Fome Zero do governo Lula. Ele crê que outro mundo e outro Brasil são possíveis, desde que tenhamos com-paixão e amor incondicional ao outro. Foi o sentido ético-político de sua fala em Davos.
É admirável que não sejamos dirigidos por um mercador que nas coisas só vê mercadoria e nas pessoas, recursos humanos. Mas por um político que tem coração, que não se envergonha de chorar e que entende o poder como oportunidade, a verdadeira oportunidade, de fazer a revolução da ternura: garantir que todos possam comer ao menos três vezes ao dia.
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