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Cronicas-->As casas também se abatem -- 08/10/2006 - 15:28 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Depois dum Verão quente e extremamente seco, tinha chegado finalmente a época das chuvas. Chovia torrencialmente na zona de Lisboa há vários dias.
Cheguei a casa arrasado por mais um dia de trabalho e encharcado até aos ossos. Despi a roupa molhada e vesti o pijama, bebi um copo de leite e deitei-me, ouvindo a água a bater ininterruptamente nos vidros da janela.
Liguei a televisão, mesmo a tempo de ouvir as últimas notícias. Depois das secas e dos incêndios, era tempo de inundações, de árvores derrubadas e de estragos importantes por todo o País. Vários prédios ameaçavam ruir. Fiquei atónito quando vi, inesperadamente, imagens da rua em que tinha vivido até casar. A polícia interrompera o trànsito e os bombeiros ajudavam a evacuar algumas das pessoas que ainda habitavam naquele prédio. Conhecia-o como as minhas próprias mãos, pois ali vivi quase trinta anos. O prédio começara por ter quatro andares e um terraço, sendo este último, mais tarde, transformado num outro andar. Tinha elevador o que, há mais de sessenta anos, não era muito frequente.
Desliguei a televisão e fiquei a recordar a velha casa, com nostalgia...

Vi-me a sair do elevador, no quarto andar, e a dirigir-me para a porta cinzenta-azulada do lado esquerdo. Acompanhado dos meus pais quando era mais pequeno e depois sozinho quando já tinha chave. Por vezes nos bicos dos pés, para que não notassem a que horas tinha chegado...
A entrada era um pequeno hall, com um armário bengaleiro, em que a presença ou ausência de um chapéu assinalava se o meu pai estava ou não em casa. À direita, o escritório; em frente, o quarto dos meus pais e, à esquerda, o corredor que levava ao resto da casa. Quantas vezes brinquei ali com uns primos, fugindo ao chá com bolos, às bolachas, às torradas e às cusquices dos mais velhos.
Parece que ainda via o escritório: uma estante vidrada, uma secretária pesada, um cadeirão e pouco mais. Sobre a secretária uma velha máquina de escrever «Royal». Nas gavetas, para além de documentos relativos à actividade do meu pai, também poemas da autoria dele, várias colecções de selos e um livro liliputiano com toda a poesia de Bocage. Na estante, uma colecção encadernada a azul com a História de Portugal. Depois da morte do meu progenitor, a divisão seria transformada num quarto para alugar.
O quarto deles era muito grande e tinha, do lado esquerdo, um pequeno living. Também este quarto seria mais tarde alugado, para ajudar às despesas da casa.
Quanta gente passou por estes quartos: - vários estudantes da Província, que vinham estudar nas faculdades da Capital, e também alguns casais extra conjugais, em que eram as senhoras que ali moravam, sendo visitadas pelos seus namorados. «Sempre o mesmo, não quero poucas-vergonhas!» - dizia minha mãe, quando contratava o aluguer.
Da grande varanda, via-se toda a Avenida até à Praça de Touros. As árvores não eram ainda frondosas como agora e o passeio central servia para passear... Velhos tempos em que os automóveis ainda não tinham tomado conta dos espaços livres da cidade!

Se por qualquer acaso, alguém se aproximasse de mim naquele momento, veria que tão depressa estava acordado como me deixava dormir, confundindo recordações e sonhos. Sossegue porém o leitor porque, de qualquer modo, tudo o que aqui relato é verdadeiro.
Enveredando pelo corredor à esquerda, que continuava depois em dois cotovelos, via-se uma porta que dava para o já aludido living que seria depois transformado em «arrecadação» para a mobília da casa de jantar e vários arrumos. Continuando até ao primeiro canto, encontrava-se a porta da casa de jantar. Esta divisão seria mais tarde o quarto dos meus pais. Depois da primeira doença grave dele, uma lamparina rodeada de imagens de vários santos ardia sem interrupção em cima dum móvel. Uma larga janela dava para um comprido saguão que, lá em baixo, era usufruto dos porteiros.
Saindo deste quarto, encontrava-se à esquerda uma despensa e, em frente, o corredor na sua recta final, liso à esquerda e com três portas à direita, indo desembocar numa ampla cozinha.

Revi-me, em pequeno, jogando a bola naquele longo corredor. O primeiro quarto à direita era ocupado por visitas, seguindo-se a casa de banho e ao fundo o meu quarto. Como póde caber tanta coisa e haver tantos sonhos num espaço tão pequeno! Foi o meu mundo! Um lavatório antigo, um divã e uma mesinha de cabeceira, com uma pequena telefonia verde-clara que comprara em segunda mão... Encostada à parede, à entrada, uma estante onde se foram juntando os meus livros... Ali se desenvolveu o meu gosto pelas leituras e pela escrita.
A cozinha era a única divisão sem janela, mas contígua à marquise que tinha duas e ainda uma porta que dava para a escada de serviço. A parede da direita estava inteiramente ocupada por armários e pelo lava-loiça. Em frente, a chaminé e, ao centro, uma grande mesa e várias cadeiras. O frigorífico e a televisão só apareceriam muitos anos mais tarde.
Na marquise, um pequeno WC que servia igualmente para os despejos da cozinha. De uma das janelas, junto ao tanque de lavar roupa, via-se uma garagem e uma vivenda onde habitavam freiras. Nunca percebi quem eram e o que ali faziam, pois uma grande nespereira tapava tudo o que se passava em baixo. Da outra janela, para além das arrecadações e de dois quintais, viam-se as traseiras de vários prédios e vivendas. A escada das traseiras destinava-se sobretudo a fornecedores e pedintes.
Cansado como estava naquela noite, acabei por adormecer...

Pensei muitas vezes em ir ver, com os meus próprios olhos, o estado em que o prédio tinha ficado, mas o tempo foi passando. Só um ano depois, e porque tive de visitar um amigo gravemente doente que habitava naquela zona da cidade, me dirigi ao local. O prédio já lá não estava. Tinha sido demolido. Um tapume de madeira escondia o estaleiro duma obra. Era domingo e ninguém estava a trabalhar. Aproximei-me e tentei espreitar. Escutei então o som de um violão, de onde saía uma melodia que já não ouvia há muitos anos. Espreitei melhor e vi o homem que o dedilhava. Bati com os nós dos dedos no tapume e chamei-o:
- O senhor pertence aqui? Sabe dizer-me há quanto tempo o prédio foi demolido?
- Sou filho dos porteiros do antigo prédio e agora pagam-me para guardar a obra à noite e aos domingos...
- Bernardino?
O homem olhou surpreendido, sem entender como um desconhecido podia saber o seu nome.
- Sou o Rodrigo do 4º Esq., com quem partilhavas todas as semanas a leitura do «Mosquito», recordas-te? Adorava também ouvir-te tocar violão. Tocavas tão bem! E tocas ainda pelo que ouvi...
E ali ficámos os dois, contando as nossas vidas e desfiando recordações. O prédio tinha sido demolido há dois meses, depois do senhorio ter negociado com os inquilinos a liberação do mesmo. Em breve surgiria um novo edifício.

Despedimo-nos, ao fim do dia, com um vigoroso abraço e ficámos com uma certeza. Embora «as casas também se abatam», as suas memórias hão-de perdurar durante muito tempo. Também elas têm uma alma e muitas histórias para contar.



NB - 3º no Prémio Literário HERNÂNI CIDADE - 2006, Biblioteca Municipal de Redondo
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