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Contos-->O SENHOR ORLANDO -- 03/05/2011 - 18:11 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Gosto de conversar, de dialogar e de trocar ideias. Sou avesso aos que tentam monopolizar as conversas ou, no outro extremo, aos que se mantém calados, às vezes sem se ver mesmo a sombra de uma reacção nos seus rostos. Com o senhor Orlando era diferente. Ancião já a ultrapassar os oitenta, ele tinha sempre uma história interessante para contar acerca de todos os assuntos. Era o que se podia chamar uma enciclopédia viva.
Se falássemos de futebol, de jogadores, de treinadores ou clubes em voga, logo ele nos lembrava que, no seu tempo, havia “este”, “aquele” e que o “clube tal” já estivera entre os maiores e ganhara mesmo campeonatos de Portugal.
Se falássemos de informática, logo nos diria que mais revolucionárias ainda tinham sido outrora a electricidade e o telefone, a máquina de escrever e a televisão. Conhecia nomes e datas das principais invenções, sabendo a importância que tinham tido no contexto de cada época.
Como se podia conhecer tanta coisa, sobretudo ele, que tinha sido apenas um marceneiro, embora dos bons pois trabalhava a madeira com mestria? O saber pode adquirir-se de várias formas. Pelo estudo, pela experiência da vida ou lendo, lendo muito. Se os três factores se conjugarem, melhor ainda.

Orlando não chegara a tirar a instrução primária em criança, pois começou a trabalhar muito cedo com o pai. Conseguiu estudar mais tarde, frequentando mesmo o Curso Industrial. Ainda estudou uns anos, à noite, depois do trabalho, apesar das dificuldades em comprar material escolar e em pagar as deslocações até à cidade que distava alguns quilómetros. Depois, enquanto as outras crianças, se entretinham com as brincadeiras próprias da idade, ele devorava livros, comprados a expensas suas ou emprestados pela biblioteca da Associação Cultural da vila. Quando podia escolher, preferia aos romances e livros de aventuras, biografias de personalidades célebres, relatos de invenções e de descobertas ou livros de História. Lia também muitos jornais, muitas das vezes atrasados, encontrados por aqui e por ali. Ouvia rádio, quando e onde podia, dando prioridade a palestras e entrevistas.
Tinha a avidez do conhecimento e assim continuou pela vida fora. Foi por isso sempre muito apreciado pelos colegas e pelos amigos.

Casou cedo e a mulher morreu-lhe quando a tuberculose era uma doença quase sempre fatal. Não teve filhos e nunca mais se casou. Trabalhou até poder e só se reformou quando passava já dos setenta anos.
Passou a frequentar o café da terra, sobretudo pela manhã e nos fins de tarde. Em casa, durante o dia, lia e cozinhava. Aprendera a cozinhar durante a vida militar, quando prestou serviço na messe dos sargentos de um quartel no Norte. Ainda hoje se perguntava porque não seguira a profissão de cozinheiro.
Quando entrava pela porta do cafezito, ouviam-se cadeiras a arrastar, dando-lhe lugar à mesa, numa disputa pela sua presença. Todos, novos e velhos, apreciavam a sua habilidade para contar histórias.
Naquele dia, um dos presentes, ainda bastante jovem, falava do acidente de trabalho que tivera e que lhe esmagara uma perna. Logo Orlando contou histórias de vários estropiados das guerras coloniais, que ficavam sem pernas e por vezes cegos, quando não morriam. Quase todos eles, com maior ou menor dificuldade, mas sobretudo com grande força de vontade, tinham sabido ultrapassar as suas deficiências e levar vidas quase normais. Quem o ouvia descrever, com detalhes, os rebentamentos de minas, algures nas picadas de Angola ou nas florestas da Guiné, julgava mesmo que ele lá tinha estado, o que não era o caso, pois o “senhor” Orlando, como lhe chamavam respeitosamente, tinha estado apenas em Goa que, comparada com os outros territórios coloniais mais tarde em tempo de guerra, era um paraíso. E que coisas maravilhosas ele contava de Goa, dos Goeses e do belo rio Mandovi.

Naquela tarde, encontrava-me num banco do jardim, junto do coreto, conversando com um velho reformado que se sentara ao pé de mim. Queixava-se da vida, dizendo sem hesitações que no tempo da “outra senhora” tudo era muito melhor. Apercebi-me da aproximação do senhor Orlando e chamei-o:
- «Sente-se aqui connosco. Venha ajudar-nos nesta conversa. Este amigo queixa-se, como toda a gente, da crise que o país atravessa e que tanto prejudica os trabalhadores e os reformados. Diz que antigamente era tudo muito melhor» …
- «Ora deixem-me instalar bem, pois as minhas artroses não perdoam quando há mudanças de tempo. Se bem entendo, está a querer dizer - sejamos claros - que no tempo do “botas” vivíamos melhor. Puro engano. Éramos um país de analfabetos, os trabalhadores não se podiam manifestar, havia miséria, não podíamos falar à vontade nem tínhamos o direito de reunião. Éramos uma terra de emigrantes, com muita gente a passar fome e muitas crianças a não saberem sequer o que era um par de sapatos. O que acontecia era que os jornais só diziam o que a Censura deixava publicar. A Rádio era igual e a Televisão, mais tarde, também. Vivíamos num país e num mundo onde não acontecia nada. Até era proibido noticiar os suicídios. Isto tudo, acompanhado de discursos do “chefe” e sob a vigilância da polícia politica, através dos chamados “bufos”. Agora todas as coisas podem ser escritas e faladas nos jornais, na rádio e na televisão, minutos depois de acontecerem. Pode criticar-se os governantes. Se estivermos bem informados, podemos tentar mudar o rumo das coisas através do voto popular».
- «Convenceu-me. Envergonho-me de quase ter defendido o antigo regime. Também vivi parte desse tempo. Tem razão. Só sabíamos aquilo que eles deixavam que nós soubéssemos e contentávamo-nos com pouco».
E ali ficámos mais uns longos minutos, ouvindo com atenção o que ele nos contava. Separámo-nos com amistosos apertos de mão.

A notícia correu célere na vila, naquela calma manhã de Janeiro. O senhor Orlando morrera durante a noite, vítima de um AVC. Ainda fora chamada uma ambulância, mas nada puderam fazer.
O funeral teria lugar na manhã do dia seguinte e o corpo seria velado a partir daquela tarde na casa mortuária. Ele deixara-me em tempos um envelope para entregar à “funerária” no dia em que ele morresse. Assim fiz.
Não fui à igreja nem ao cemitério. Senti uma grande dor como se ele fosse da minha família. Iria noutro dia visitar a sua campa e levar-lhe umas flores. Fui sete dias depois. Aproximei-me e coloquei as flores no canteiro. Li em voz baixa o que estava escrito em letras douradas na pedra tumular que o cobria: «Aqui jaz um homem que levou a vida a aprender, com a consciência de quase nada saber. Agora descansa em Paz».

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