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Cronicas-->Iidish Mama -- 03/10/2006 - 18:42 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não sei se me apresento oficialmente. Não, não sei se me exponho assim. Afinal tudo se sabe. Sei que meu pai era um grande homem. Ele me apresentou aos Antigos quando eu era ainda jovem. Nós todos éramos proibidos de ler, só o que fazíamos era ler o que chamamos de poesia oficial. Textos enaltecendo as virtudes de nosso regime libertário, que fez nascer a liberdade em nossos corações, que fez brotar a primavera em todas as plagas de nosso mundo azul.

Bem, meu nome é Joachim, filho de Jacob e Sarita. Estes eram meus pais, estes eram meus referenciais de idéias. Meus referenciais. Desde pequeno que me lembro de seus rostos e da voz sempre aguda de mamãe me cobrando a presença à frente das telas, nas comemorações oficiais de nossas jovens autoridades; eu relutava e ela insistia aos berros:

--Joachim!!!!

--Misha, obedeça sua mãe.

Nada mais podia fazer quando meu pai me falava assim. Eles nunca haviam sido violentos, mas havia algo nos olhos de mamãe que me assustava. Um pouco por medo dela, um pouco mais por pena de meu bondoso pai, eu obedecia.

"Festividades marcam a marcha dos Herdeiros da Terra sobre as Últimas Hostes de Empedernidos. Aviões subluz relampejam nos céus de Márnia, nossa Grande Cidadela. Nossas forças determinam a presença de novos armamentos dedicados ao Controle dos Empedernidos Iconoclastas, desrespeitadores da Ordem Estabelecida."

Divisávamos ao longe, chegando, uma horrível máquina cheia de pontas e engrenagens destinadas ao controle das multidões enfurecidas que vez em quando irrompiam em enormes rebeliões, massacradas pela miséria absoluta e de tal forma subtraídas de qualquer garantia de vida e de subsistência que preferiam a morte. Esta lhes era oferecida em doses megalomaníacas, dolorosas ou simplesmente aniquiladoras na forma de jatos de luz concentrada, limpa, estéril e sem derramamentos de sangue.

--Papai, não quero ver isto.

--Prometo que um dia eu te mostro algo bem mais interessante...

--Jacob!

--Coisas de nossa família, Sarita.

--Pois sim, vai é envenená-lo com estas idéias de iconoclasta. Seu Iconoclasta!

Lá iam eles para mais uma discussão acalorada, que sempre acabava com portas batendo, cada um em seu quarto isolado (nossa casa era razoavelmente ampla, quatro quartos com banheiros separados e cada um deles com Paredes independentes, personalizadas...). Eu já me acostumara às brigas naquela casa. Mas minha sensação de independência era quase que maior que aquilo tudo e eu simplesmente abominava minha Parede Leitosa.

Bastava entrar no quarto.

"Pequeno patrão, a luz está boa? Quer que eu toque música? Devo lembrar da hora, música só em baixa intensidade, filmes temos os do Canal Natureza. Há emails à sua espera. Também há uma garota esperando sua aprovação no Comunicador de Longa Distància. Seu site foi visitado por 37.567 pessoas, até agora. Garoto esperto!"

Jamais se igualaria a meu pai.

--Luz!

Imediatamente luz no quarto, vinda dos lados de làmpadas indiretas de baixo consumo e excelente luminosidade. Abre-se uma janela pequena onde se movimentam outras janelas, de perto você pode ver, algumas garotas rebolam em algumas, nas outras há mãos e pés expostos, mas a que mais me chama a atenção é a janela da esquerda, com estranha tonalidade lilás e uma figura amarela ao fundo.

--Som.

Um som indistinto a princípio, mas crescente, começa a invadir o ambiente.

--Cheguei, né, tipo estou aqui pra mandar ver...

--...ai mano, pauleira, é meu rock rural...

--...de onde você fala?

--...namorada, ela é chata, você parece gata...

--...Puto!!! Puto!!!

--...Nós da Seita do Saber te convidamos a entrar na Confraria do Saber eterno, onde procuraremos o Santo Graal juntos...

--...Uma ova...

--...Caralho, que traseiro, cara...

--...Alguém aí?

--...Joachim?

A voz vinha da janela lilás.

--Ampliar janela! Bosta.

Amplia-se a janela. Lilás, rosa, amarelo, uma janela de cor mutante. Mas nada de aparecer ninguém.

--Joachim.

--Que quer comigo?

--Como assim? Isto é jeito de falar comigo? Quero ser sua amiga!

--Bom, sem ver não consigo saber quem é, sendo assim...Não sou trouxa!

--O bom e velho Joachim, Misha!

Aquela voz colocada no misturador jamais poderia ser decodificada. Eu não tinha nem idéia de quem poderia ser a autor das gracinhas. Ou autora.

"Intensos distúrbios foram esmagados em zonas urbanas de mais uma cidade dos Iconoclastas. Governo convoca mais cidadãos para a Vacinação Obrigatória. A melhor maneira de prevenir doenças é a vacinação em massa. Os que não vacinarem estão incursos na Lei de Desobediência Civil".

Mesmo ali, na parede leitosa, estava presente a eterna vigilància.

--Joachim!!!!

Tremia só de ouvir minha mãe falando assim. Sabia que certamente ela faria algo ou diria alguma coisa para me colocar em xeque, algo para me deixar atónito ou simplesmente amedrontado. Quão diferente de meu pai Jacob!!! Ele insistia em preservar os ritos, ainda me apresentava os textos que guardara, e que eram considerados subversivos pelos Guardas da Cultura Popular. Isto poderia valer a prisão de meu pai, mas ele os guardava enrolados qual pergaminhos em grandes tubos de material refringente às radiações escaneadoras dos Vigilantes que sobrevoavam nossos subúrbios á busca de qualquer vestígio de textos subversivos. Mais de uma vez eu presenciara a prisão de amigos de papai. Pessoas que como ele ousavam resistir, que ainda ousavam pensar diferente. Muitos voltavam vacinados. O pai de um amigo meu voltou vacinado, nunca mais foi o mesmo. Toda vez que tentava folhear um livro dos que tinha, vomitava e chegou a convulsionar por horas. Meu amigo disse que ele doou todos, mas meu pai sorriu ao dizer que seus livros haviam tido um bom fim, estavam seguros. De minha parte, eu lia sempre com receio de que alguém nos invadisse a casa e nos levasse a todos.

"Eu irei ficando velho, feio, horrível. Mas este retrato se conservará eternamente jovem. Nele, nunca serei mais idoso do que neste dia de junho... Se fosse o contrário ! Se eu pudesse ser sempre moço, se o quadro envelhecesse !... Por isso, por esse milagre eu daria tudo ! Sim, não há no mundo o que eu não estivesse pronto a dar em troca. Daria até a alma !"

Dorian Gray me impressionava, de onde meu velho Jacob tirara aquela maravilha?

--Preste atenção ao essencial, Misha. O que os olhos não podem ver. Dorian vende o que tem de mais nobre para preservar sua juventude. Muito atual não?

--Jacob!

--Sarita, minha cara, o Governo está em toda a parte, mas aqui nesta sala, eles não entram!

--Mas como?...Eles sabem...de tudo! Por quê não entrariam aqui?

--Certas coisas você não sabe ainda meu filho, mas no tempo certo tudo se aclarará, não tenha dúvidas!

Aquele era o único cómodo onde discutíamos assuntos que eram proibidos. Por muito menos um amigo de minha mãe morrera e um tio de meu pai fora exilado. Mas ali, naquele cómodo, parecia haver um cone de silêncio, como se fosse uma Catedral Oculta, um altar onde a nossa alma estava posta. Claro, papai jamais reproduziu os Sagrados Ritos ali. Mas por ocasião de meus quinze anos, desencavou o Tora. Seus olhos se encheram de lágrimas.

--A palavra de deus.

--Jacob! Olhe o que fala. Por amor a este deus que fala, por amor a esta casa, cuidado com o que diz!

Ele assentiu com a cabeça. Já tinha seus cinquenta e poucos anos, ela mais jovem, enérgica e lutadora. Trabalhava em casas de famílias abastadas, sempre trazia um pouco de tudo que lhe davam, meu pai era um especialista em recuperação de documentos perdidos, que na época da grande Cisma, muitos haviam sido perdidos. Ele os ajudava a procurar e mais de uma vez dissera que sua missão ajudava cada vez mais ao regime se institucionalizar,aferrando suas garras nas liberdades que ainda tínhamos.

" Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
Misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
Que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
Uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
E que se chame "Nunca mais".
Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
Com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
Enquanto a mágoa me envenena: "Amigos... sempre vão-se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ele também há de ir-se embora."
E disse o Corvo: "Nunca mais."
Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
Julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
E a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
De seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: - o ritornelo
De "Nunca, nunca, nunca mais".

Poe e suas sombrias fontes. Papai me dizia que sua inspiração fora artificial, mas eu flutuava em suas histórias fantasmagóricas e dantescas, tal qual o gato emparedado no muro e seu miado infernal ou a peste rubra e escarlate que me povoou a noite de sonhos lúgubres.

--Joachim!!!!! Já falou com a parede hoje?

--Ainda não mamãe...

--Pois vá! Quer perder este lindo pescoço que tem? Eu ainda quero ter o meu!

--Está bem!!! LUZ!!!!!!

"Bom assim, meu patrão esperto?"

--CALE-SE!

"Noto raiva em sua voz. Talvez precise de nossos médicos, talvez precise de doses de Tranquilum, na sua idade muitas coisas acontecem..."

Senti-me excitado ao ver nas janelas que vários casais fornicavam abertamente, numa explícita demonstração de minhas intenções mentais e isto me dava, sim, muita raiva. Raiva de ser manipulado, de ser mandado. Raiva de ser controlado até em meus mais íntimos impulsos.

--Parede. O que é ser Iconoclasta?

Numa sensível mudança de cor, a parede se tornou de diáfana a opaca. Sua cor mudou e ouviu-se um estalido ameaçador. Uma voz que definitivamente não era da Parede questionou:

--Qual a razão da pergunta?

--Quero saber o que é ser Iconoclasta.

--Por quê?

--Quero saber! Você não sabe de tudo?

--Nem imagina o quanto sei de você.

A afirmação me amedrontou. O que uma parede saberia de mim?

--...De suas punhetas.

Imediatamente a parede toda com cenas de minhas mais secretas paixões, de minhas mais estranhas obscenidades. Olhando assim, tinha a noção de minha pecaminosa presença ali. De como o que fizera ás escondidas poderia ficar exposto, e estava.

--Como?

--Quer um conselho, pequenino onanista?

--Qual?

--Deixe a Iconoclastia. Podemos querer saber algo mais a seu respeito que esta ridícula sequência de cenas masturbatórias.

Senti meu rosto corar e uma pressão se fez presente. Sabia que havia algo de errado em minha cabeça, as dores sempre apareciam quando eu menos esperava, mas aquela era uma dor indefinível.

Quando acordei, estava deitado na cama. Meu pai me olhava preocupado, minha mãe chorava, os dois estavam muito tensos.

--Que aconteceu?

--Perguntou algo ao muro?

--Perguntei sobre...

--CALE-SE!

--Sarita!

--Vocês dois sabem muito bem o que ele perguntou. Bom, vou dizer mais uma vez: Quero paz aqui. Não quero saber de gente e vocês sabem o que mais. Já basta o seu tio! Não me venham depois com choradeiras ou pedidos de ajuda, eu juro que me vou, vocês ficam com seus livros sagrados que eu fico com minha sagrada vidinha que graças a Deus eu tenho!

--Prometo que não faço de novo, mamãe.

--Por favor, Misha, por favor. Isto nos traz problemas.

--Está bem papai. Eu juro, por tudo que ainda é sagrado. Juro mesmo.

"- Bata-me uma. - pede-me o insinuante monstro.

- Aqui? Agora?

- Claro, aqui e agora. Quando haverá de surgir outra oportunidade como esta? Adivinhe o que é esta garota adormecida ao seu lado. Olhe só esse nariz.

- Que nariz?

- É isso - a gente quase nem o vê. Olhe esse cabelo, parece saído de uma máquina de fiar. Lembra-se do linho que você estudou na escola? Isto é linho humano! Esta é uma autêntica, seu palerma! Uma shikse ! E, além do mais, adormecida! Ou talvez, com grande probabilidade, esteja fingindo. Fingindo, mas sussurrando, num sopro: "Vamos, garotão, faça comigo todas aquelas coisas sujas que sempre desejou!"

Como poderia deixar de ser o que era? Tudo se transmutava!!Tudo se transformava, eu e Roth, eu em meu complexo de indecência, nós ali e meu pai sempre com a cara mais lavada do mundo, sabia que ele me compreendia, sentia isto com meu coração e meus ossos. Ele já passara por isto e minha mãe, coitada, aterrorizada com mais um momento de fraqueza de ambos, já se iam altas as discussões a meu respeito, mas o bom senso sempre prevalecia e vinha dele.

--Luz!

"--Agradável assim?"

--Sim. Gostaria que lesse para mim.

--"O que gostaria? Temos os Livros de Arrefecimento, temos os livros da Natureza, gostaria que lesse algo da vida dos lobos do gelo que ainda sobrevivem nas estepes russas?"

--Seus bancos de dados são escassos.

--"Não duvide de minhas capacidades, pequeno onanista".

--Ora, vá para o Inferno!

--O que quer que eu faça?

--Quero algo de Hesse!

A luz diminuiu. Um baço calor se fez e a a pressão voltou à minha cabeça; surpreendentemente, uma música surgiu.

" Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das estepes. As pessoas argutas poderão discutir a propósito de ser ele realmente um lobo, de ter sido transformado, talvez antes de seu nascimento, de lobo em ser humano, ou de ter nascido homem, porém dotado de alma de lobo ou por ela dominado; ou, finalmente, indagar se essa crença de que ele era um lobo não passava de um produto de sua imaginação ou de um estado patológico. É inadmissível, por exemplo, que, em sua infància, fosse rebelde, desobediente e anárquico, o que teria levado seus educadores a tentar combater a fera que havia nele, dando ensejo assim a que se formasse em sua imaginação a idéia e a crença de que era, realmente, um animal selvagem, coberto apenas com um tênue verniz de civilização. A esse propósito poder-se-iam tecer longas considerações e até mesmo escrever livros; mas isso de nada valeria ao Lobo da Estepe, pois para ele era indiferente saber se o lobo se havia introduzido nele por encantamento, à força de pancada ou se era apenas uma fantasia de seu espírito. O que os outros pudessem pensar a este respeito ou até mesmo o que ele próprio pudesse pensar, em nada o afetaria, nem conseguiria afetar o lobo que morava em seu interior."

Naquela manhã, papai estava com um estranho sorriso nos lábios. Dissera-me que nós iríamos visitar o lugar aonde ele conseguia tais e tão maravilhosos textos que eu ensinara á parede, que por mais que relutasse, ainda era a minha parede.

Caminhamos no frio ar da manhã, mal sabendo o que nos aguardava.
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