Usina de Letras
Usina de Letras
159 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62220 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10363)

Erótico (13569)

Frases (50618)

Humor (20031)

Infantil (5431)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140802)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6189)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Desvi(d)as -- 30/11/2010 - 20:29 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O conselho do Grande Encontro Virtual está reunido há cinco dias. É um milagre que as conexões estejam todas estáveis e que os debates não tenham sido hackeados. Trombadores e Resistentes parecem ter entendido que essa é a última chance que o planeta tem de se salvar. Se algo de concreto não for decidido com presteza, é possível que este seja o último registro oficial do estranho impasse que vivemos e que começou ninguém lembra mais quando. Algo entre dez ou doze anos. Lembro-me bem que o aniversário do meu filho, a festa de três anos dele, balões, palhaços e bolo, aconteceu num dia ainda normal. Pessoas andavam pelas ruas sem grandes preocupações, além daquelas que sempre acompanham os seres humanos desde o começo de tudo. Sei, também, que o aniversário de quatro anos do pequeno não mereceu festa. No de cinco, meu único herdeiro estava morto havia meses. Faz mais de dez anos que ele morreu. Depois dele, foi a minha mulher, atropelada por uma turba de Resistentes. Ou de Trombadores? Quem sabe? Nem sei se gostaria que eles estivessem vivos... Vida pela metade? Um dia, as pessoas pararam de desviar umas das outras nas ruas. O motivo ninguém soube explicar, típica incompetência que assola os teóricos sempre que algo surpreendente muda os rumos da história. De uma hora para outra, aquele tipo de gente educada que, para não esbarrar no outro, mudava a trajetória na calçada, nos corredores do shopping, nos acessos às arquibancadas dos jogos de futebol, abandonou essa prática. O planeta, antes, era habitado por dois tipos de humanos: aqueles que desviavam e aqueles que esperavam que o outro desviasse. Isso é coisa do passado. Os Desviadores se rebelaram silenciosamente. Não houve passeata, comício ou levante. Os telefones da polícia e dos bombeiros começaram a tocar mais do que o normal. As queixas eram sempre parecidas: uma velhinha se chocara com um carregador do supermercado e sofrera traumatismo; uma criança fora atropelada por um grupo de corredores; um homem derrubara com uma peitada a própria mulher grávida que vinha em direção oposta. A questão ganhou jornais, debates foram feitos na TV, congressos internacionais foram organizados. Aos poucos, os jornais deixaram de circular: os jornalistas não conseguiam chegar às redações, impedidos pelos que tinham parado de desviar, àquela altura chamados de Trombadores. Quando as emissoras de TV pararam de transmitir os seus sinais (oh, não shhhhhhhh), é que o mundo percebeu a real gravidade da situação. Ficar em casa mostrava-se o conselho mais sensato. Ainda havia o e-mail, os chats, os grupos de discussão. A quarentena não tinha uma intenção terapêutica, pois nunca se soube a causa do problema e muito menos se esperava uma cura milagrosa anunciada pela ciência. Permanecer entre quatro paredes era, para a maioria, apenas a solução mais rápida e eficiente. As famílias numerosas não tinham escape: pais e filhos trombavam, mães e filhas atropelavam-se, avós e netos colidiam. Esse inesperado choque de gerações acabou por dizimar boa parte da população. Os homens e mulheres solteiros tiveram mais sorte e, se fossem fisicamente poderosos, arriscavam-se a enfrentar os Trombadores que vagavam pelas ruas: Trombadores sobreviventes, todos eles musculosos e obstinados na intenção de cumprir a rota que haviam traçado, mesmo que, depois de meses de caos, ter uma rota fosse mais um delírio que uma meta. Em busca de comida e água, Trombadores e Resistentes, literais, bateram cabeça em praça pública. Ah! Uma guerra torna-se uma carnificina quando se perde a possibilidade de distinguir um lado do outro. É esse o momento em que uma pergunta assombra os soldados: quem tinha razão no início disso tudo? Trombadores? Resistentes? (Chego a pensar que nunca foi mesmo possível separar opressor e oprimido...). Na Web, ao menos no começo, o consenso era de que os Trombadores eram os grandes culpados. As regras tinham sido mudadas por eles! Durante milênios, se um resistente caminhasse pela rua, com sua segurança e decisão, encontraria um Desviador gentil, cordato e disposto a mudar seu curso em favor do curso rígido e seguro do outro. Eles, Trombadores, deveriam voltar ao papel que a história, que Deus, meu Deus!, havia lhes designado. Os Trombadores, por sua vez, tinham cada vez mais convicção de que o antigo status de Desviador, a eles imposto pelo sistema, era sinônimo de opressão. O que os obrigava a desviar? Por que os resistentes não podiam fazer o mesmo? Anos se passaram até que, com o esforço heroico de homens solitários, um grande encontro virtual foi organizado. Há uma preocupação muito grande com o futuro da humanidade, uma vez que são raros os nascidos nos anos de conflito. Mais algumas décadas, e o ser humano entrará em processo de extinção. Neste momento, a proposta em votação é a de que as ruas sejam divididas em cinco ou sete seções, cinco ou sete corredores, que impediriam o contato entre as pessoas. Turnos deverão ser cumpridos e poucos contatos reais acontecerão. Cada cidadão teria algumas horas de vida externa, nas quais seria produtivo para a sociedade (já discutem se esse nome, “sociedade”, ainda deve ser usado); no resto do tempo, clausura. Não era essa a preocupação dos especialistas quando a internet surgiu? Que o homem nunca mais sairia de sua casa, vivendo do delivery de tudo: pizza, carros, outro seres humanos e nem tão humanos assim? Esse tempo não precisou chegar. As relações entre os homens não existe mais e a internet, em vez de ser o demônio do distanciamento é, agora, o deus do único contato possível. Quando ainda havia sinal de TV, lembro-me de ter assistido a um documentário num daqueles canais de vida selvagem. Achei que o porco-espinho era um maluco por gostar de ter piolhos e pulgas. Esse é o jeito que a natureza encontrou para oferecer algum toque alheio para a pele por baixo da couraça assassina dos bichinhos. O porco-espinho tem piolhos porque precisa que alguém toque nele! Daria tudo por um toque humano que me mostrasse a vida da minha pele. Ao menos um toque de pulga, piolho, carrapato. Até um espinho de porco selvagem serviria para mim... Logo o mundo pode ser só deles: dos porcos selvagens. A proposta segue em discussão. Dividir as ruas em corredores e os dias em turnos. A ideia tem falhas. Ela não resolve a questão da natalidade, por exemplo. Mas é uma ideia. Os processos de inseminação já estavam bem avançados antes de isso tudo começar. Há quem defenda que todos devem se tornar Desviadores. Não é lógico isso. Se todos desviarem, todos trombarão. É o que me parece. As leis da física são cruéis. Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Opressor? Oprimido? Rolo compressor. Comprimido. Há um hacker tentando me derrubar. Até aqui, Deus?! A conexão está péssima. Às vezes funciona, às vezes some. A votação começou. Eu preciso votar. Preciso votar!
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui