Há um dito popular que diz: "os olhos são o espelho da alma". Concordo que através deles enxergamos a centelha do àmago dos seres que se expressa sob o efeito de circunstàncias definidas. Não significa que permanentemente uma pessoa se revele através do olhar. Já vi uma infinidade de mensagens transmitidas nos olhares que traspassam a órbita ocular, contendo entrelinhas que dispensam palavras, ecoam além delas. Vi o olhar da felicidade, da tristeza, do tédio, da ternura, da ganància, da indiferença, do ódio e do amor. São momentos eternizados de fala ensurdecida. O olhar frio do predador, da sovinice, do avarento, o singelo da carência, o enigmático da estupefação. O inseguro dos aflitos, o dissimulado da inveja, o oleoso do bajulador. O sorrateiro da maldade, o indiferente da mesquinhez, o esguio do ciúme. O lume de uma vela no olhar contido de paz. A aura voluptuosa de lubricidade. Cada ação que afeta a alma gera uma energia formando no olhar palavras para serem interpretadas. Sempre observei sentimentos através do olhar das pessoas. Todavia, houve um olhar especial, o qual jamais esquecerei. Foi abrasador e penetrou em minha alma, dotado de força magnética que invadiu meu ser. Era atónito e bestializado, como se desprovido da sensibilidade humana. Aquele olhar continha ao mesmo tempo a exclamação e a interrogação. Era lamurioso, acusatório e apalermado. Os olhos desprovidos da viscosidade, como se restassem lágrimas congeladas. Foi o olhar de uma menina com idade em torno de seis anos. Cheguei ao local praticamente junto com o acidente. Ela estava sozinha postada na margem da rodovia. Emudecida e estática, seu corpo trêmulo como de um filhote de animal desprotegido. Ela permanecia na beira da estrada para onde sua mãe a empurrou, e assistiu o enorme caminhão passar sobre o corpo da progenitora, que ficou estirado sobre o asfalto como um tapete sanguinolento. A menina segurava um bichinho de pelúcia. Era esquálida e calçava chinelo tipo havaiana. Abracei a infeliz criança que se deixou segurar no colo sem qualquer reação física, mantendo olhar sem direção. Lembro do som ensurdecido e palpitante de seu coração, no efeito do estado de choque. Amei aquela criança. Pensei em levá-la comigo, tornar-me seu anjo da guarda, seu protetor. Eu entendi sua alma que deixara de compreender as razões da vida diante da cena patética da morte da mãe.
Emocionei-me enternecido observando sua alma inocente, impedida de traduzir o acontecimento real, confundindo-o com pesadelo. Uma mulher acorreu, apanhou-a carinhosamente do meu colo e afagou-a. Disse ser amiga da finada mãe, a qual cometera o suicídio que sempre alardeava. Mãe e filha viviam sozinhas. Não tinham parentes vivos. A menina convivia naquele antro de prostituição entre várias mulheres, era como se tivesse diversas mães. Via na morte da mãe a perda de todas elas. Isso aconteceu há mais de 20 anos. Ainda sinto o olhar infantil que enterneceu-me e marcou indelével minha lembrança. Às vezes penso, onde andará aquela infeliz garota?
Odilon Fehlauer - Escritor Membro da Academia Itajaiense de Letras.