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Contos-->Irene e Jacob -- 14/03/2010 - 15:48 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Andando pelas ruas. Sinto-me só. Andando por lugares ermos, escuros. Talvez ache o supremo engano. Mas não, vivo me enganando. Sempre pensando no mais provável, no discernimento de minha razão. Sempre foi assim, a vida toda. Não vai deixar de ser diferente só porque agora estamos todos no mesmo barco. Tanta gente já se foi! Eu mesmo acho que estou em um limite impreciso. Vez em quando tenho vislumbres, acho que posso ser o que eu queira, mas é apenas um detalhe de minha imaginação. Veja a porta para a qual eu dirijo o olhar agora: nervuras, madeira velha, pesada, úmida dos bafios e das escarradas dos mendigos e das mijadas dos cachorros, mas já foi uma árvore, agora é um ornamento, uma pesada porta de glorioso ébano, o que faz uma porta de ébano em tão vetusta casa a esta hora, ainda mais a esta hora,por quê tinha de estar ali, pensa num espaço de tempo que se dilui entre meu olhar e a bruma da noite, enquanto fantásticos animais passeiam por suas antigas entranhas, e tudo isto, tudo isto que eu digo, não passa de uma mísera porta. Uma árvore dilacerada, uma árvore esmigalhada, um ser vivo que agora é um ornamento. Meus amigos -- aqueles que restam, muitos se foram — meus amigos dizem que eu penso demais, por isso sofro... Porque um dia serei a porta. A porta para um novo tempo que virá. Um tempo inefável, um tempo fugidio, um tempo que nos pune a todos, um tempo que nos dirige as mais medonhas palavras, um tempo que se nos dirige um sorriso, no começo, nos escancara uma carranca, ao final. Sim, porque é isto, afinal. Umas carrancas, todos se transformam em uma, não? Uma carranca, olhos vazios, órbitas escuras, estranhamente luminosas, é intolerável pensar na grandeza de nossas carrancas, é inconcebível minha lembrança de tantos tempos já mortos, os tempos em que ainda... Bem, ainda... Duro caminhar, meus tornozelos doem,enfim os calcanhares batem na rua, o vento levanta estranhos parasitas,estranhas flores em vórtices escondem mais sombras que iluminuras...

Mais folhas soltas, em esplendores de talvez invernada que se avizinha, talvez num pedaço de sonho, talvez num pedaço de paraíso. Eu caminho, caminho e caminho. Marcha escarvante, dizem os médicos, excesso de bebida, dizem outros, vão à merda, digo eu. A solidão dói, ela é dor física, ela é um peso que sobe à testa, ela é um soco de Tyson, ela é uma ferroada do abismo, a gente nunca sabe onde ela começa e termina, onde se encontram as duas hastes, onde estão as pontas da infernal máquina que nos ataca, mas ela está aqui, além, pelo menos ninguém vai deixar de ir comigo, este é meu consolo e reforço.Meu Deus, como uma simples caminhada pode render ócio e futilidades...! Uma simples caminhada, um simples tomar de ar, um acerto de contas com a alma amarfanhada, amassada em bancos de ônibus, em cantos esquecidos da psique. Talvez a invernada que se avizinha; talvez o pouco ar que nos resta, talvez, mas vem, e vem depressa, tem todo o tempo (a eternidade) para nos punir com o hálito gelado que nos lembra a imobilidade serena dos mortos. Pior é ter de dizer olá quando você quer dizer adeus. As pessoas pensam que alguns músculos faciais contraídos querem dizer um sorriso. Poucos sabem que o tétano dá uma aparência de riso sardônico, equem tem tétano sabe que o menos que se quer em tal situação é sorrir.

Sorriso, falsa arma, os crentes acham que com aquela máscara pregada na face, conseguem arrancar de você um dízimo, mais um pouco de sua tremenda empulhação. Pois querem comprar o paraíso, o Paraíso digo eu, com uns trocados que você dá. Qual! Se existe deus, este é bem distante, longe da putrefação inata deste solo que nos engolfa. Imaginem se a entidade que nos governa os destinos vai ter tempo de sobra para nos amparar no momento em que saímos desta vida? Sim, vou a igrejas sim. Vi gente casando, vi gente sendo velada. Sempre a mesma sensação: Frieza. Só os mais envolvidos crêem em algo. Os mais distantes escarnecem do morto ou dos noivos. Tanto faz, é a mesma coisa, são nomes diferentes, como damos nomes neste mundo, classificamos tudo, mas são nomes diferentes, a finalidade — enganar-se — é a mesma. Todos se enganam. As aparências são farsas, somos farsantes, a sociedade nos exige papéis, eu recusei sempre, sempre me eximi de assumir papéis. Aquele ali, por exemplo, sempre está no mesmo bar, sempre me olha com aqueles olhos empapuçados de álcool, encharcado que está na bebida que lhe enche o copo: Assumiu o papel, é o Ébrio. O outro, que lhe serve a bebida é o Louco. Sua atendente, a Fuinha. Nós que passamos, deveríamos ser os Comiseráveis. Que tal, os Arrependidos? Irmãos? Os Despossuídos? Escolha seu título. Escolha porque eu não tenho paciência, nem com você. É você mesmo. Você. Você. Lá vai ele, mais um gole. Eu passo. Tenho ainda muitas coisas a ver. Tenho muitos sons a ouvir, talvez ainda hoje. Sou um absorvedor de coisas vivas, eu que sempre estive aqui e nunca soube o que era estar aqui ou o que significava estar vivo. Talvez, você já pensou, talvez estar vivo seja isto, escapar sem acidentes em túneis, escapar com vida daquelas doenças terríveis que o progresso evitou, para chegar à minha idade gloriosa e saber que de nada serve uma vida tranqüila sem acidentes de percurso, sem paixões arrebatadoras, sem gosto de sangue na boca, somente para empanturrar o corpo de gorduras, a alma de imagens insanas, o cérebro de conhecimento inútil, os pulmões de alcatrão vil e assim, calmamente, chegar à beira do abismo e dizer: Está bem, eu passo. Passo. Passo a vez, me deixe mais um pouco aqui? Posso?Covardia extrema. Pouco sabemos do que nos aguarda, sabemos o que nos resta. Anos de arrastar pés em marcha escarvante. Anos de lucidez desmedida. Anos de amargura, como um remédio mal deglutido, uma sopa mal-feita num restaurante de esquina sórdido, iluminado por poucas lâmpadas quebradas, num passado não muito distante. Eu passo.

--Olá seu Jacob.

--Olá, seu Manoel.

--O mesmo de sempre seu Jacob?

--O mesmo, o mesmo, o mesmo.

--Tudo bem mesmo seu Jacob?

--Por que Manoel?

--Não me parece bem, hoje. Aliás, estou para lhe falar, o senhor anda pálido.Anda comendo bem seu Jacob? Ando preocupado com o senhor. Suas filhas têm vindo lhe visitar?

--Elas? Há tempos que não vêm.

--Por quê?

--Sei lá. Acho que cansaram de minha cara.

--O senhor sempre foi muito severo com elas, seu Jacob. Lembro que a maiorzinha nunca podia comprar balas fora de hora, lá vinha o senhor brigar com meus empregados, o senhor sempre dizia, bala só depois do almoço!

--Graças a isto, eu uso dentaduras e elas ainda conservam uma bela arcada dentária!

--A mais velha, nossa, está linda! Ela deu uma passada outro dia aqui, para comprar um maço de cigarros, ela bem que disse, me dá um maço, seuManoel, mas não fale para meu pai, é capaz dele brigar comigo. Sorriu e foi tão encantadora! Estava acompanhada de um moço muito distinto, um rapaz de queixo largo, bem apessoado, tanto que algumas moças viraram o pescoço, mas ele só tinha olhos para sua filha, cheio de carinhos para ela, precisa ver!

--Desde que perdi minha mulher, elas não vêm mais em casa. Passo os dias só.

--Deve ser triste.

--Deve ser. Para mim, dá no mesmo. Tanto faz. Vamos todos morrer mesmo, melhor que seja só do que mal acompanhado, pelo menos ninguém me olhará dar a última estrebuchada.

--Lá vem o senhor de novo. Minha mulher, a Etelvina, pode de vez em quando dar uma olhada no senhor?

--Bondade sua. Não preciso de pena, tem uma mulher que vai lá, duas vezes por semana, e limpa tudo. Afinal, não sou nenhum porco.

--Não é isto, seu Jacob. Está me parecendo adoentado. Pálido. Se estiver precisando, o senhor mora tão perto da gente, nós moramos aqui ao lado, é só chamar...

--Seu Manoel. Bondade sua. Mas agora, por ora, quero mesmo a média com o pãozinho bem tostado.

O Bom Samaritano. Este é o papel dele. O empregado é o Enfezado, dirige olhares de ódio à minha pessoa, ocupado que estava com a limpeza do forno de assar pão, agora tem de andar um metro e meio, dispender cinco calorias, erguer o pesado bule, cortar um pão, passar manteiga e colocar na chapa.Que maçada! Eles desempenham bem seus papéis, devem ter ensaiado muito, eles os desempenham à perfeição! Palmas!

--O senhor ouve?

--O que seu Manoel?

--Risadas, como de um pequeno ser se rindo...

--Devem ser as baratinhas aquecidas no forno. Há!

--O senhor hein! Não ouviu?

--Com certeza, não.

--Por quê?

--Tenho andado ensurdecido ultimamente.

--Está vendo? Está vendo? Precisa se consultar em um médico.

--Todos dizem isto, a mulher da gente morre e todos, num ato mágico, lhe querem preservar. Pensam que o destino será o mesmo.

--A gente conhecia dona Irene. Ela era uma mulher bondosa, todos sentimos pena quando aconteceu.

--Mas aconteceu. Um dia, serei eu a porta.

--Como?

--Nada, achaques de velho, pensamentos à toa.

--O senhor não é tão velho assim.

--Ah sim, ainda posso conhecer alguém tão maravilhoso, ainda tenho a vida pela frente, ainda posso ouvir os pássaros cantarem pela manhã, ainda...

--Já vi que...

--Por favor...

As pessoas têm a ridícula noção da finitude. Mas se incomodam com a idéia, e quando alguém próximo se vai, sentem-se na obrigação de consolar, de falar para esvaziar o medo da própria finitude,abrem então a goela de onde saem palavras vãs, ácidas palavras de temor ou vazias palavras de significado espúrio, nada acrescentam e com as lembranças só aumentam mais a dor de quem sente que perdeu um pedaço de si mesmo. Como explicar para todos que a vida é única e passa? Só sentindo na própria pele, dizem uns, eu digo que as pessoas deviam pelo menos se esforçar para se manterem caladas nestas horas, pelo menos em sinal de respeito, para depois, numa elaboração mais detalhada, absorverem o luto do Outro e, em empatia, estenderem os braços para uma observação mais inteligente... O café me desce lentamente pela garganta, a bebida requentada pelo suarento funcionário de meu querido amigo está meio sem açúcar, que misturado ao leite lhe dá uma consistência de material poeirento, assim como o vento nas ruas, as folhas que passam, tudo traz um ar de lembranças, obrigado pelo que me causou, caro Bom Samaritano...

--Quanto foi?

--Seis reais.

--Hum humm...

--Qualquer coisa, o senhor me chama?

--Fique certo que sim. Absolutamente!



O café me carrega de um peso que eu não tinha ao entrar na padaria. Este homem é lutador, há vinte anos era um galpãozinho alugado, agora é uma bela padaria estabelecida, ainda com muitas escolhas e pratos, sempre cheia de clientes, ávidos pelos quitutes que sua esposa vez em quando (agora) prepara para serem expostas. Ela também está cansada e era muito apegada em Irene, afinal nesta rua quem não era?Ela era muito apegada, tanto que quando Irene se foi, chorou muito, mais do que seria esperado para uma estranha à família. Irene tinha esta qualidade, cativar e foi assim que ela me cativou, há trinta anos atrás, em plena rua São bento, eu fazendo compras para a loja de ferragens de meu avô, era meu emprego na época, ela passeando por lá, sim, foi amor à primeira vista, ela conquistou parte de mim, mas o íntimo sempre lhe permaneceu secreto, tanto que ela sempre reclamava...

--Ás vezes, Jacob, às vezes, não tenho a mínima idéia de quem está ao meu lado... É como se você fosse um estranho...

--Bobagem mulher, bobagem mulher. Sou assim mesmo, sempre fui.

--É que às vezes eu estranho este seu comportamento, estranho esta sua estranheza...

--Isto vai mudar as coisas?

--Não...

--Então, Irene...

--Esquece Jacob...

Tocava-se a vida, as meninas crescendo, nestas horas tudo vem à mente tão rápido, tudo se comporta tão velozmente, passam os dias num segundo, num minuto se foi todo um tempo, bastam meia hora e quarenta anos de vida se foram, agora do alto de meus...Bem, já passou, afinal, mas as folhas continuam a se soltar das árvores. Elas têm meu telefone, tudo bem, uma se casou, a mais velha prefere morar sozinha, afinal trabalha e ganha bem para se manter, me incomodam seus namorados, ela me lembra a mãe, seus olhos sempre me lembraram os da mãe...

Passos escarvantes. Nome estranho! É como se eu escavasse o solo com os calcanhares, mas são passos deste mesmo tipo que eu tenho, e sempre os tive, desde um acidente na juventude—metido a besta, lá fui eu a montar o cavalo de meu querido primo, o animal não se conteve e me jogou da cela,resultado, quase lesão de medula, fiquei semanas de cama, bom foi receber as lições de casa de Irene, que as levava e me ajudava a fazer, daquela época vêm minhas melhores lembranças, porque ela vinha em casa por vontade, nada de papéis, era puro, o que brotava nada tinha de artificial, nada tinha de mais, éramos apenas companheiros e meus pais a adoravam, ela mitigou sua culpa pelo fato de terem me deixado andar em cavalo tão bravo, o fato é que voltei a andar e pelo menos fui poupado de jogar futebol e da suprema humilhação de sempre ter de ficar na posição de goleiro(na falta de outra melhor e eu reconheço, era ruim de bola mesmo.) Mal passado o susto da sombra (esta sempre me vem assim, de repente, como se fosse um vulto, indefinido e volátil, ainda que eu acreditasse nestas coisas, eu mesmo assim duvidaria de tudo o que visse...), minha casa à minha frente: Cômodos amplos, abertos, ao estilo dos anos sessenta, quando começamos a construir, recebemos a ajuda de um arquiteto amigo nosso que conhecia Irene dos tempos da juventude, agora eram apenas amigos e Irene disse, sim, este foi meu primeiro amor, agora somos apenas caros amigos, mas não era assim que eu via brilharem os olhos do outro. Tanto faz, mesmo, porque meus olhos, se já tinham dona a esta altura, não eram os de Irene que procuravam, pois que eu sempre fora apaixonado por... Outra. A Outra, como ela costumava chamar. Sempre, meu coração ardera por outra. Sempre, eu quisera ter tido tempo para rever o que fizera de minha vida. Destas coisas que você faz e amargamente, depois de muitos anos, depois de muito espaço de tempo passado, depois que as estações todas se confundem numa só, aí sim você reavalia e fica com o que mais lhe convém, longe que quer estar da tempestade que foi a juventude, longe do mar bravio das paixões tempestuosas, seu destino agora é carregar carrinhos de bebê, ver caras enfarruscadas de sono e remelo, ver cabelos desgrenhados de noites mal dormidas,ouvir ruídos até então inaudíveis, enfim...

A Outra sempre fora cobiçada por mim. Devia ter uns dezesseis anos, sim, era por aí... Era morena, seus cabelos eram compridos e encaracolados, ela vivia me esnobando, mas com o passar do tempo e com meu crescimento... Aconteceu o inevitável encontro, onde minhas pernas tremeram e as dela também, antes o que ela detestava virou logo sua sensação, era volúvel minha Outra, e Irene, já nesta época, costumava dar espiadas compridas à sua futura rival, que nem sabia do que aconteceria anos mais tarde...Um homem, e ainda só como eu, sempre tem do que lembrar, como se os nós dos dedos não doessem o bastante de tanto baterem nos cantos da pia do banheiro. Ah solidão, fermento de todos os venenos e enganos, ah solidão, que arde mais ainda, como um ácido corrosivo que vai lhe expondo as fraturas internas, as falhas do que já houve em sua vida, fragilizando psiques esparsas e vazias, mas não a minha, lúcido de meu escoar. Lúcido no derreter das possibilidades inúteis, consciente dos idílios impossíveis, intenso nos dias que se seguem um ao outro agora que minha companheira se foi, como numa fileira medonha em que o final é o que transubstancia, transfigura nossos corpos em sementes, mas esta perspectiva não me agrada, ainda mais que minhas filhas me abandonaram. Também assim é melhor, melhor do que ficar vendo falsos sorrisos, sorrisos de uma desfaçatez amarga, falsos olhares que não escondem senão o sentido do afastar-se, do deixar de lado o quanto antes, sim , elas não me procuram. Minha mágoa maior ainda não é esta, é meus futuros netos não quererem me ver, por influência das mães, prestimosas em afastarem seus lindos rebentos da “influência deste avô nefasto” como a mais velha disse um dia, na minha cara, como se eu fosse assim uma espécie de praga daninha que se apoderasse das almas com meus tentáculos esverdeados. Deus do céu, como ela lembra a mãe nos seus áureos tempos! Irene nunca deixou de ser bonita. Mesmo quando se foi se foi serena, sem reclamar, apenas pediu: Nunca, nunca procure a Outra. Isto eu faço todos os dias, mas a Outra já não existe mais para mim, o que era puro delírio agora é realidade, estamos ambos sós, ela sem o companheiro e eu sem minha alma gêmea. Valerá a pena? Não, eu sei. Nunca valeu, sua volubilidade e volúpia eram proporcionais, ela alegava que tudo o que queria era viver o máximo e acho que definitivamente conseguiu, mas foi comigo (eu sei) que se realizou e passou a vida inteira fugindo de mim e eu dela, porque sabíamos do inevitável Encontro, é isto. Nascemos um para o outro, mas apenas para nos vermos à distância, apenas para sabermos um do outro através de terceiros, apenas para um breve olhar num Shopping, um sorriso esquisito numa rua deserta, um pálido adeus numa estação escura de metrô; acontecia sem que o quiséssemos, impressionante! Dirão, isto parece ficção, pura casualidade, mas era assim. Vez por outra nos cruzávamos, em lugares inverossímeis, eu sempre apressado, ela sempre ocupada, ou vice-versa; certa vez, recém-nascida nossa mais velha, a encontrei num parque, ela se aproximou com suas duas filhas pequenas e me desejou sorte e falamos de coisas amenas, Irene trabalhava naquele dia e eu tirara uma semana de folga para ajudar no trabalho de criar a pequenina, que era muito travessa e ainda não entrara na escola. Talvez daí a aversão dela pela Outra, engraçado, e sua estranha aversão a mim, coisa que a menorzinha nunca teve. Engraçado, agora eu analiso isto. Certo! Deve ter sido assim. Assim caminha a inimizade. Irene fazia vistas grossas a estes pequenos deslizes. Vez por outra fazia uma caratonha sinistra, sabia que era hora de comprar flores, ela se sensibilizava, mas engraçado, minha filha mais velha com mais raiva ficava. É ruim assim, acontecerem as coisas sem o seu controle, bem disse Freud, nós somos uma ilha de consciência boiando no imponderável, no inverossímil, no conjunto de nosso desconhecimento interior! Como não conhecemos nossas possibilidades, como deixamos de aprender conosco, como aguçamos a ponta das hastes do inferno e da volúpia quando deixamos de ouvir nossos mais profundos sentimentos...é certo que o que eu sentia por Irene era cada vez mais forte, mas a avassaladora passagem da outra deixou sulcos como a água deixou a superfície de Marte: Vincada, minha alma cheia de rugas e vincos, minha pobre alma lavada em noites de insônia que sempre foi minha fiel companheira, sim...Esta fiel camarada, esta fiel companheira de tantos tempos estranhos, desde o nascimento das duas(a insônia companheira por abnegação), o primeiro revés financeiro(a insônia eu não devia ter feito isto ou aquilo), as grandes brigas(a insônia ela nunca mais me coloca o dedo em riste!), ah esta fiel companheira, às vezes Irene acordava, eu não entendia como ela conseguia dormir, e profundamente, em meio ao caos de fraldas e mamadeiras que as duas provocavam, sim..Ela dormia! Que bênção é dormir! Que bênção é poder não perder nenhum tempo deste maravilhoso dom que nossas espécies mamíferas têm: o dom de sonhar...!

--Como você consegue?

--Costume. Maternidade, vocês nunca terão nada a ver com esta sensação indizível!

--Que torna vocês mais distantes e arrogantes...

--Mas somos privilegiadas, não é mesmo?

--Realmente, o jeito com que você me apertou as mãos no parto delas foi uma amostra deste privilégio...

--A dor faz você transcender!

--Transcender? O quê?

--Tudo, a dor ensina ao corpo os limites, as vicissitudes ensinam à alma seus anteparos...

--Poético. Creio que você esteja um pouco cansada...

--Isto eu estou sim. Aliás, estou mesmo!

--Falta ajuda?

--Não estou reclamando.

--Jeito de falar então. Entendi mal?

--Certamente...

--Procurarei me corrigir, Irene...

--Ah, com certeza...

Daí ela abria um sorriso absurdo, daqueles que cativavam qualquer um, estava desfeita nossa discussão, nossa briga já deixara de existir, era um farrapo do passado, era um pedaço de futuro distante, mas ela deixava minha raiva escolher caminhos diferentes... E quando ia olhar, mal tinha tempo de ver o quanto fora estúpido...

--Papai, você é um estúpido!

--Que você falou? Menina! Respeita teu pai!

--Já estou acostumado, Irene.

--Mas não devia! Ela é uma abusada!

--Que é isto, parece que você nunca foi adolescente!

--O que a outra é cordata, esta é abusada!

--Verdade, mas esta diferença sempre existirá entre as pessoas. Somos diferentes...

--Mas você devia se importar!

--Que quer que eu faça?

Fracassei como pai? Eu era muito exigente. Nada me escapava... Talvez por isto mesmo, ela me execrasse. Mas no geral, nossa convivência em casa era pacífica, até demais para o meu gosto. Sempre adorei uma briga. Mas não ia brigar com a menina. Despontavam-lhe os seios. Mais de uma vez eu a surpreendi se mirando no espelho, entre orgulhosa e debochada de si mesma. Devia achar que não era bonita, aliás, sempre deixava a irmã de cabelos em pé quando dizia que se ela fosse um pouco mais bonita...Trivialidades de uma jovem adolescente.É amargo se saber perdendo a infância, a mocidade, a juventude e se sabendo velho agora. Eu murchara, e murchara mais depois que minha companheira se fora. Minha filha mais velha sofrera muito. Mesmo. De repente, sentiu que era a hora de partir, após dois anos de convivência forçadamente pacífica, agora que o anteparo se fora de vez. Não tínhamos mais porque disfarçar nosso estranhamento mútuo; éramos pai e filha, mas e daí?

Meu velho pai. Andava maltratado pela vida. Dizia-se grande jogador, o que conseguia era acumular dívidas. Minha mãe, na época em que ele ainda era vivo, o surrava verbalmente, não sei como ele agüentava, eu próprio a mandava calar-se, ao que ela se retirava amuada a um canto, apesar de às vezes estar mais que coberta de razão. Ele dizia para mim que havia descoberto uma fórmula de vitórias na loteria, um absurdo intrincado de combinações improváveis, numa paranóia que crescia e tinha seu ápice nos finais de semana, quando passava horas grudado ao rádio, esperando pelo óbvio, como sempre fez na vida. Esperou o óbvio, que veio: A morte, o esquecimento, o passamento, a urna funerária. Tudo porque sempre acreditara no inverossímil, sempre. Ele sempre tivera a razão assaltada por estes rompantes de fortuna e glória. Falhara, nunca acertara nada, mesmo quando apostava gordas somas. Nós, eu e minha mãe aparávamos sua ganância, e nos últimos tempos, até escondíamos o dinheiro, para que ele não gastasse o que lhe sobrara para a aposentadoria, indigna para um funcionário exemplar que jamais faltara ao trabalho, ora. Para quê? Colheu o óbvio, no dia de seu enterro, três colegas, só. Só isto. Será assim comigo, com todos, é horrível. Como podemos ser felizes se todos nós vamos morrer? Todos nós vamos deixar de existir, finalmente. Bem... Ah estas ruas cheirando a mijo, aqui no Centro, paspalhos que vivem urinando porque não têm tempo sequer de cuidar de suas necessidades básicas, veja você. Eles passam e a vida passa por eles, como passou por Irene e a Outra e eu, nós três num vórtice infernal de esquecimento e obviedades, minhas filhas e sua presunção de juventude, meus amigos e sua presunção de infalibilidade, todos nós e nossa presunção pueril de eternidade. Deus nos faz presunçosos. Deus nos faz esperançosos. Ele nos fez na ilusão de que se perpetuaria no Cosmo, eis que surgem cientistas que decretam sua morte e/ou inexistência. Oxalá estejam errados, que eu possa me reencontrar com Irene onde quer que ela esteja, tomara lá para onde vou em breve existam flores e plantas que já não as há por aqui nesta metrópole imunda e corrosiva, queira o Senhor de todos os frutos que todos os frutos eu possa comer porque em vida não o pude; Sempre atrás de uma quimera louca, acabei me devorando e sendo devorado porque jamais decifrei seu enigma,esta vida.

--Papai?

--Sim, minha filha?

--Sente falta dela?

--Você sente querida?

--Sinto. Mas Fernanda não dá o braço a torcer...!

--Ela sempre foi de não dar o braço a torcer... Como vai seu casamento?

--Que eu poderia dizer ao senhor? Vai bem... Mas sempre há diferenças...

--Como água e vinho...

--Nem tanto, papai, mas ele e eu divergimos um pouco. Agora que parecia que íamos acertar afinal...

--Ué, casaram e já desacertaram?

--Nos demos um tempo: Se as coisas correrem diferente, eu e ele combinamos que não ficaremos nos obrigando ao convívio...

--Test drive?

--Você é engraçado pai!

--Nunca pude fazer isto na vida... Mas acho que está para lá de certo...!

--Você mudou com o tempo papai...

--A perda de um membro, de um braço, te faz refletir e relevar com o tempo tudo aquilo que de inútil se guarda nos porões da alma...de modo que vou jogando fora restos esparsos...e vai sobrando o que é essência...

--Você não pode viver assim, tão só! Quer que eu venha morar com você?

--Pelo amor de deus, Eugênia. Nem pensar! Não quero ser um estorvo, até porque já o sou a mim mesmo, basta que assim seja.

--Sério? Nada lhe falta?

--O dia que algo fizer falta, eu peço...

--Orgulhoso, sempre orgulhoso!

--Ora, prefiro ser assim, independente e, aliás, cadê os discos que lhe

emprestei?

--Puxa, esqueci. Preciso trazer os discos... É tão corrido...

--O trabalho?

--Difícil se manter à tona... Mercado de trabalho difícil... Ainda bem que tenho curso de inglês e sei mexer no computador! Senão, lá na empresa, estava condenada ao esquecimento! E é engraçado, fala-se em reduzir horas com o PC, mas o que vejo é mais horas trabalhando, correndo atrás de relatórios e planilhas, é terrível!

--Então, no fundo, valeu minha brabeza toda...

--Com certeza, sim, valeu... Embora o senhor fosse por demais exigente!

Erguia os olhos e dava um sorriso encantador, que lembrava o desarme de Irene, o desarme de que todas as pessoas precisam quando chegam emcasa, cansadas e intoleráveis...Ela sabia cativar, minha filha mais nova, bonita como a irmã, muito mais humana e calorosa...Todos a queriam por perto e ela com certeza tinha muitos pretendentes, me confiara que apesar de estar casada, nunca deixava de dar uma olhada no mundo, como ela mesma dizia nestas horas, com uma ponta de ironia, para o caso de as coisas não darem certo...Engraçado como para eles, os jovens, tudo é muito fácil e volátil, desfazer vínculos deve ser fácil como urinar ou comer uma pizza requentada... Eu nunca o fiz mesmo morrendo de paixões que nunca me abandonaram, sempre fui fiel a Irene, até o final. Como se isto fosse alguma qualidade hoje em dia. Bela coisa. Tudo se desfaz depressa, até os mais fortes laços! Tudo se desfaz, me pego olhando retratos indecentes, tirados quando tinha paciência de registrar fatos, ainda não havia este tremor incômodo que me dificulta às vezes de tomar café (e que tanto desespero traz à minha filha mais velha, que olhava e ralhava: Pai! Vai deixar cair o café! —ao que eu respondia: Não, ainda não estou babando, querida, a outra mais nova saía da mesa e ia chorar de saudades, pois que Irene saberia contornar isto, mas agora não estava mais aqui, então as máscaras caíram, apenas nos suportávamos...) e noto certo amarelecer incipiente, material barato este que usei aqui, talvez fosse melhor mandar fazer microfilmes. Minha esposa guardava o filme de nosso casamento, este eu mandei, através de amigos comuns, colocar em fita nova, este vale a pena ser visto, eu e ela juntos, um ar de felicidade inacreditável, ah, a juventude, vai dizer que podemos esquecer? Aí, me dava este nó — começa bem aqui, aperta o peito, desaba em lágrima contrita, repara? Eu espero que não, nem no final dela eu chorei esta cerimônia de chorar o morto... Falsa, retrógrada, desnecessária. Suportei impávido os cumprimentos, notei o desvelo das pessoas em me trazer conforto, mas duro mesmo foi a primeira noite, ah, a primeira noite sem ela ao lado, foi terrível! Não mais seu carinho, não mais seu calor, não mais seu olhar brejeiro, não mais sua presença marcante, que alegrava esta casa agora vazia, abandonada, como podemos ser felizes se tudo o que temos de fazer é esperar a morte, todos? Todos esperamos, uns mais conscientes, outros jogando tranca, biriba, dominó, truco. Todos nós esperamos, mais veementemente agora, que já entrei em anos e velho, cabelos esparsos, olho no espelho o que a vida fez em mim e percebo: Nada mais sou que um pálido fantasma de mim outrora, aquele homem de traços pujantes, mas fracassado agora, vencido pelo que tentei ser e nunca cheguei a ser. Amargo? Não mais que este café que eu esquentei no forno.

Mãos suadas. Espera retorno eterno. Palidez, alvura, tua pele é alva como é alvo o marfim, tuas espáduas me impressionam, parecem duas naves, dois navios que cruzam o Oceano de lençóis que nos cobrem insistentes... Navios: nunca pensei nisto, nunca pensei em navios, talvez fossem navios carregando escravas brancas traficadas de países estranhos e longínquos... A voz me parece longínqua, a voz me parece desaparecer em vozes escurecidas, se é que posso dizer assim destes ruídos que ouço, em paz inconstante... Pés vibrantes, eu sinto como se eles crescessem ávidos de espaço, minha audição se dilata, ouço os cães da rua, ouço todos os ruídos, um balançar erótico de camas alheias, nesta madrugada o ar se enche de sons de casais novos se enrodilhando em intermináveis interlúdios, eu ouço e posso sentir seus corpos suados como minhas mãos, como meus lábios secos de tanto ouvir, sedentos de tua alvura, de tua pele tão esfumaçada, posso sentir o toque de tuas mãos em minha fronte, posso sentir o gosto de seus cabelos frouxos e soltos no ar, ah posso sentir tua nuca eriçada com meus pequenos e sutis movimentos, tudo me toca e todos nos ouvimos...Como pode ser isto?? Como posso sentir você assim, como posso me sentir assim fora de mim, como se outro fosse? Pouco sei, eu entendo pouco de mim, sempre fui fugidio, mas agora me sinto fugindo de mim mesmo... Como se um acre buraco se abrisse e eu estivesse preste a ser tragado, sim!

--Papai???

--Sim, querida? Que faço aqui?

--Papai, achamos o senhor em casa...

--Quer dizer: Não estou em casa?

--Fernanda?...

--Bem, papai. O que o médico disse é que o senhor teve um pequeno derrame.

--Fernanda, não precisa ser tão incisiva!!!

--Deixe Eugênia... Que coisa, ela está me explicando!

--Pois é... Na hora H, sou sempre eu que resolvo... e assumo!

--Ora!...

--Por favor, meninas, seu pai não está em condição de ouvir brigas agora!

--Desculpe... Mas, papai, não se lembra de nada?

--Um buraco acre?

--Um o quê?

--Poderei sonhar querida?

--Não sei papai!!! Você está aqui conosco, é o que importa!

--Será mesmo? Será que importa a mim??

--Não seja tão ruim consigo mesmo, velho... Eu gosto de você, apesar de você não me suportar, eu sei...

--Não diga isto, filha, não fale assim...

--Não fale agora assim, meu velho, estamos aqui, lá fora tem um bando de gente...

--Verdade, amigos seus, a esposa do padeiro, o pessoal do serviço tem ligado...

--Tem ligado? Como assim?

--O senhor está aqui... há...

--Diga Eugênia!! Está bem, eu digo...

--Alguém vai me dizer ou preciso chamar algum enfermeiro?

--Dez dias, pai. Dez dias.

--Notaram alguma seqüela?

--Bem, pelo menos seu humor não mudou!

--Fernanda!

--Você que pensa, minha ave rara!

--...!

--Peguei você!

--Eugênia, vou sair ali, um pouquinho, já volto, está bem papai?

--Volte sempre... Será sempre bem-vinda...

--Papai, você está realmente bem?

--Quem sabe? O que posso fazer se fiquei dez dias fora do ar e volto como se nada tivesse acontecido???

--Não se lembra de nada mesmo?

Vácuo, tremor de luzes, vácuo, queda no vazio, peso de penas voláteis, luzes cegantes, luzes de sonho, rostos desconhecidos ou são meus rostos familiares que chegam em ondas a me cumprimentar por uma vida finalizada cheia de reveses mas finalmente, envolta no mistério da existência, enfim realizada no que tem de mais pleno, que é a luz plena de poder se saber completo, sereno, ávido pela partida, pronto para uma nova forma de vida ou para a serenidade do repouso inerente à natureza???

--Nada, minha querida... Nada. Só sei que amo você, amo sua irmã, como amava Irene, que eu desejo reencontrar, mais do que nunca. Que dizem os médicos?

--O de sempre, que é difícil prever o que vai acontecer, é difícil prever acontecimentos nesta área...

--Foi derrame?

--Não foi isquemia... Algo sangrou, eles não sabem bem o que, estavam esperando o senhor melhorar e acordar... Mas há o risco de novo sangramento...Daí...

--Entendo. Por que as lágrimas, Eugênia?

--Tudo dá errado nestas horas, eu estava nervosa e mandei meu marido

passear, ele é um galinha!

--Sempre lhe disse, saiba com quem andar, casou meio no impulso, a diferença entre vocês é grande, ele não tem sua garra e sua gana de viver, eu disse...

--Quando o senhor melhorar tem um lugarzinho para mim em sua casa?

--Será muito bom, mas eu estarei combalido, não quero atrapalhar um vulcãoem e rupção...

--Claro papai, nunca me atrapalhou, nunca mesmo, sempre me deu alento...!

--Não é o que fala sua irmã...

--Fernanda diz o que diz, mas não fala o que sente, ela é uma boba, não preste atenção...

--Devia ter prestado mais, minha jóia. Agora, neste limite, eu percebo o quanto falhei, o quanto deixei de trazer presença a vocês...Você me perdoa?

--Nada tenho a perdoar a você, pai!

--Mas eu fiz falta...

--Nunca nos faltou nada!

--A mim me faltou coragem, filha, coragem, mas pelo menos vocês se formaram e eu tive uma companheira maravilhosa. Sua mãe foi um raio de luz em uma vida ressequida, que foi a minha, saiba bem disto. Por isto eu te digo: Vá em frente e conte com o meu apoio, sempre que precisar e preste sempre atenção em seu coração, nunca deixe que seus melhores sentimentos se sufoquem, sempre preste atenção ao coração, foi o que não fiz, mas agora percebo, fiz de certo modo o que devia fazer e perdi tempo em fantasias nebulosas...

--A Outra?

--Sim... A Outra; A que eu deveria ter tido em hora, momento, tempo e dias diferentes; não nesta vida, querida, em outras, se é que existem outras formas de viver. Agora, não me arrependo, vendo você aqui comigo, iluminada de paixão e vida, em seus vinte e três anos.

--Você gostou... Dela?

--Sim, Eugênia. Gostei.

--Finalmente admitiu.

--Sempre há uma hora. Mas agora, sei que o que senti foi ilusão, não existem paixões imortais, não existem mais estas coisas, existe nosso tempo e nosso momento no mundo, eu deixei de aproveitar uma hora mágica, mas surgiram outras mágicas e se eu pudesse fazer o trajeto inverso, estaria com vocês três, de novo, e para sempre e para todo o infinito...

Crescem os rumores. Posso ouvir as molas se soltando, minhas juntas se esvaem, estou solto como um pião no mundo, vejo o que se passa em torno,como pode ser? Sinto o mundo debaixo dos pés, ou melhor, de que pés se não os sinto? Que será que eu sinto? Estes momentos são de absoluta descoberta. Estrondosa descoberta: sou eu mesmo ou é minha alma que se adensa em pontos que jamais saberia dizer se são os pontos de meu corpo ou é meu corpo esvaecido que se adensa em partículas de minha alma leve que já prepara alvoreceres mais lindos, serei eu, que sempre fui de uma intolerância, ou será por outra influência que me torno a cada minuto que passa melhor, mais feliz, mais descansado, porque finalmente sinto que minhas falhas, meus fracassos, meus medos, minha vida, nada é importante diante do que se avizinha cada vez mais, que é o Último Minuto??

--Vou chamar a Fernanda, acho que você tem muita coisa a conversar.

--Acho que sim.

--Volto depois, está bem? Vai ficar bem?

--Tudo vai ficar bem, Eugênia.

--Certeza?

--Certeza absoluta.

Será este o final? Esta alvura, esta sensação agradável de abandono, esta sensação de flutuação indizível, para onde vou se permaneço preso em mim mesmo e percebo ainda que tenho silêncios presentes em mim que não me respondem, talvez seqüelas, talvez imobilidades forçadas, só posso ouvir uns sibilos de luz, cheiros de sombra, ruídos de cor longínqua, será este o final? Será este o Último Minuto?

--Papai?

--Fernanda...

--O senhor está bem?

--Não sei, minha filha. Sei que é corajosa, mas algo está acontecendo. Por favor, fique aqui. Sua irmã acha que deve acreditar que eu irei morar com ela em minha casa. Sinto que não será bem assim, Fernanda.

--Diz isto para me atacar de novo...

--De jeito nenhum, querida. Se aconteceu algo nestes dez dias que eu estive aqui, foi algo bom. Espero que me perdoe, por tudo que eu exigi de você, por minha frieza estúpida com você, por minhas falhas, sempre fui um homem complicado e sua mãe e vocês duas me trouxeram o raio que me guiou. Agora, minha Fernanda, é o momento em que devemos nos separar...

--Sente algo?

--Apenas ouça minha querida, eu sempre estarei com você, dentro de você, em sua mais linda lembrança, pelo menos espero que reconheça que fui o que fui, mas fiz o que pude...

--Não se esforce, por favor, papai... Vou chamar um médico, você está pálido!

--Você não entende querida? Temos um tempo aqui. O meu está se esgotando e acho que voltei para dar uma última mirada, pelo menos em você, minha querida, tão bonita, tão altiva, tão auto-suficiente, tão frágil, tão esbelta, tão forte, tão fraca, minha filha...! Odeio ser considerado um traste, prefiro que seja assim, afinal vivi feliz à minha maneira... Nada foi importante, se tive algo que posso levar daqui são seus olhos, que são os de sua mãe, como você se parece com ela!

--Sempre me diz isto!

--A realidade é esta, minha querida!

--Papai, você não vai nos deixar... Vai?...

--Temo que sim. Apenas não deixe de se alimentar de amor, que é o alimento que me faltou, mas que tive em sua mãe. Isto eu posso dizer, tive o privilégio de viver ao lado de uma estrela de primeira grandeza, e não me arrependo de ter vivido à sua sombra, iluminado por seu sorriso sereno e cativante. Cada uma de vocês duas têm algo de nós a lembrar. Por favor...

--Papai?

Último minuto. Que posso falar? Nada posso falar. Nem dizer, apenas olhar brilhos que se esmaecem, rostos familiares que esfumaçam, lembranças que vêm à tona.

--Jacob!

--Hein?

--Vem jantar. Já tomou banho?

--Não, mamãe!!!

--Puxa vida, quando vai realmente levar a sério que tem de se lavar??? É o terceiro dia que fica se banho!!!! Vai feder!!!

--Puxa vida, mamãe!!!

--Cheio de cracas!! Vergonha!

--Querido?

--Irene?

--Estou bem, querido?

--Linda como nunca...

--Mentiroso!! Estou horrível!!!

--Por que, Irene?

--Esta doença. Por que não vou logo???

--Papai???

A Outra agora revela sua face. Sua face esgazeada, fria, a Outra finalmente desvela sua mão em um rosto já inerte, a Outra é deste mas é de outro momento, que mundo maravilhoso este. Agora já não há Outra, é tudo uma coisa só. É um minuto que passou, é um século de luzes, é uma eternidade divina.


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