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Contos-->A mulher do ventre livre -- 10/02/2010 - 09:07 (josé paulo pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A Mulher do ventre livre

De repente uma cena comum se enche de significados tornando-se objeto de meditação, ou mais que isso, de interpretações e posicionamentos que pareciam desnecessários por estarem compilados num limbo de realidade.
Estavam três senhoras negras, muito distintas, bem vestidas, com comportamento sóbrio, sentadas numa poltrona de uma casa humilde, mas digna, limpa e bem arrumada quando alguém conversando com uma velhinha, provavelmente a mãe dessas senhoras, soube que ela havia nascido em 1886. Fez então um comentário interrogativo:- “Então a senhora nasceu no tempo da escravidão?” Nesse momento uma das filhas levantou-se em uma atitude defensiva e forte e apontando com o dedo em riste, afirma: Não senhor, minha mãe nasceu no “ventre livre”.
Jamais havia alguém da época atual pensado no significado de uma pessoa nascer escrava ou no “ventre livre”.
Dona Juventina era adolescente no início do século. Dos três irmãos, uma menina e dois rapazes, não poderia esperar companhia. O mais velho, Benedito, morreu picado de cobra. O segundo, Juvenal, sumiu pelo mundo após a alforria, indo pelas bandas do Rio de Janeiro. Só uma vez teve notícias de que ele se casara e morava num morro perto do Catumbi. Nunca mais soube do irmão. A menor, Josefina, era deficiente mental e vivia num orfanato, sem nenhuma perspectiva. Seus pais, já velhos, morreram antes da passagem do século.
Dona Juventina era muito prestimosa. Arranjou emprego em uma família abastada da cidade, cuidando das crianças e da limpeza da casa. Nem por isso deixou de aprender a lidar na cozinha, lembrando-se dos quitutes existentes na Fazenda onde fora criada. Também logo se interessou em aprendera a ler.
O ambiente de trabalho era agradável. Ela se relacionava bem com as filhas da casa, embora não tivesse desaparecido completamente aquela sensação de escrava. Ela julgava ser assim mesmo, como que “entendendo o seu lugar”.
Passava longo tempo meditando sobre seu futuro. Achava que poderia evoluir, ter uma família, ter conforto, ter cidadania. As dificuldades eram inúmeras. Já mocinha, mal sabia escrever enquanto as moças da sua idade tinham mestres escolhidos. As outras alforriadas como ela, coitadas, continuavam analfabetas e no trabalho duro, pouco diferenciado de quando eram escravas.
As famílias que se formavam após a abolição eram muito pobres e sem nenhuma perspectiva de melhorarem aquela situação social, pois nada recebiam de apoio. Não havia escola e nem atendimento médico e os empregos eram para braçais. Trabalhavam em cafezais e conseguiam construir uma tapera sem água, sem luz, de pau-a –pique e sapé. Os que iam às cidades faziam barracões de zinco em favelas.
Mas a idéia de que sua vida ia dar certo era uma obsessão para Dona Juventina.
Era, por instinto, bondosa. Percebia que ganharia a confiança das pessoas à medida que demonstrasse eficiência. Com pouco tempo os patrões viam nela uma pessoa formidável: educada, limpa, atenciosa e, sobretudo, competente, conseguindo desenvolver todas as tarefas que lhe eram destinadas e, mais ainda, aprendendo novidades e aplicando-as à rotina da casa.
Fazia bordados, quitutes maravilhosos, aprendia músicas novas que cantava com as meninas. Muito religiosa, sabia todos os cânticos da igreja.
Nos fins de semana não perdia uma missa. Sua voz era destacada nos cânticos e nas respostas feitas em Latim. Ela procurava saber o significado de cada frase, tornando a missa mais interessante. A patroa admirava aquela capacidade. Mas Dona Juventina lia muito e conversava com o padre de quem era também muito querida.
Numa festa da igreja foi abordada por um rapaz que dizia ser o estafeta da cidade, passando freqüentemente em frente a sua casa, e sempre olhando em busca de um sinal que representasse o consentimento para uma amizade. Ela disse que já o conhecia e que, por diversas vezes, já o vira na igreja. Ficou sabendo que ele era neto de escravos, tendo nascido em São José do Barreiro e era filho de um homem branco, capataz da fazenda onde sua família vivia. Sua mãe fora alforriada e decidira morar na cidade, trabalhando em casa de família. Era um mulato bonito, alegre e bem seguro de sua vida. Naturalmente que nasceu um namoro. Entendiam-se bem, nascendo, pouco a pouco uma afeição. A mãe do Isidoro já era bem idosa e doente, dificultando qualquer mudança de vida. Tinha que ser cuidada por ele, que era filho único. O pai, capataz de fazenda, nunca mais foi visto.
Quando a mãe faleceu ele ficou um tanto perdido, não sabendo como cuidar da vida. Isso precipitou o casamento, contando com a aprovação dos patrões que foram seus padrinhos e até fizeram uma festinha íntima, só para os familiares. Foi morar na casa do noivo, conseguindo arrumá-la, tornando-a uma residência bastante agradável.
Por algum tempo continuou trabalhando com os antigos patrões. Depois resolveu fazer quitutes para vender, conseguindo logo boa freguesia, entregando-os de casa em casa, num aumento constante da produção. À noite o marido a ajudava no preparo das massas. Virou quituteira conhecida e famosa. Com isso conseguiu,cada vez mais,ver realizado seu sonho de ter uma vida livre e decente.
Teve três filhos, educados com esmero.
Conceição e Maria foram para um convento e se tornaram freiras. Abigail se formou professora, era casada, com três filhos, muito amigos e queridos pela vó Juventina.
A família de Dona Juventina foi exemplar trabalhadora, todos conseguiam cativar as pessoas com as quais conviviam. Isidoro se aposentou e, por muito tempo, cuidou de seus netos, tornando-se um vovô carinhoso. Tinha um enorme orgulho de ter duas filhas freiras. Achava que isso era um destaque em sua vida, inclusive achando que assim contribuía para a religiosidade de todos. Isidoro era hipertenso, acabando com um derrame cerebral que lhe tirou a vida.
Quando ficou bem velhinha Dona Juventina recebia os cuidados de sua neta, também professora e que cuidava da vó com todo carinho, dando-lhe toda a dignidade que sempre fora apregoada por ela.
Dona Juventina foi uma vencedora. Buscou a cidadania a vida inteira, conseguindo-a, e a transferiu para a família, tornando-os todos dignos e respeitados.
Provavelmente tudo começou por ela ter nascido no “Ventre Livre”. Não foi escrava, quando teria sido usurpada dos mais comezinhos direitos, sendo quase improvável se imaginar hoje uma situação assim, de escravo. Completo absurdo.
É verdade que todos os escravos foram libertados legalmente, mas não de fato. Ainda hoje o negro vê tudo mais difícil porque sua história não lhe deu a cidadania de que necessitava e que Dona Juventina, como poucas outras, conquistou.
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