Usina de Letras
Usina de Letras
182 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62273 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22539)

Discursos (3239)

Ensaios - (10381)

Erótico (13574)

Frases (50664)

Humor (20039)

Infantil (5454)

Infanto Juvenil (4778)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140816)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6206)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->o homem que só comprava sal -- 28/01/2010 - 10:44 (josé paulo pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O homem que só comprava sal

A casa abandonada caía aos pedaços. Mato cobrindo o terreiro, poças d’água no quintal, as portas quebradas, os batentes das janelas arrancados. As falhas no telhado permitiam goteiras que danificavam o piso. O fogão de lenha sem a chapa, o tanque sem a torneira, a pia da cozinha jogada num canto, sem a bacia. Há muito tempo que ninguém pisava naquele lugar.
A imagem que se via dali era linda: um lago esverdeado, muitos pesqueiros nas bordas, casas bonitas, coloridas, dando vida àquele lugar tão tranqüilo e aconchegante.
Zé Pedro chegou com uma mochila e muita arrogância, esbravejando que ali seria sua última morada.
Seu avô, Seu Germano, com quem muito pouco convivera, lhe dizia ser ali o melhor lugar do mundo. Estava decidido a fazer daquela casa abandonada e destruída o seu ninho.
- Não preciso mais nada. Aqui viverei como um rei. Tudo o que houver por perto será uma porção do meu império. Aqui serei poderoso e independente. Nunca mais vou à cidade e não quero mais ver gente. Não preciso fazer a barba, cortar a unha, escovar os dentes. As pessoas fazem isso a vida inteira e têm problemas. Isso não é solução. Tomo banho no rio, raspo a unha nas pedras, bochecho a boca com chás que daqui colherei. Não preciso roupa: farei meus trajes com fios de algodão que aqui plantarei. Farei sandálias com o couro dos bois que aqui criarei. Farei meu colchão de tabôas e minha cama de estrado de madeira que daqui cortarei.
Comerei frutas, terei horta, criarei galinhas, porcos, vacas, cabritos... Terei ovos, carnes, penas. Ah! Como é gostoso um travesseiro de penas! Farei bolo com o ovo e o trigo que plantarei. Adoçarei com a garapa da cana. O bagaço dou para a vaca. Farei rapadura, adoçarei o café tirado da minha roça e terei farinha de milho com o milho tirado do meu paiol, moído no moinho feito com pedra do meu quintal. Darei milho às galinhas, aos porcos, aos passarinhos que certamente estarão aqui cantando para alegrar as minhas manhãs e as minhas tardes. Terei leite, terei carne, terei gordura. Feijão, arroz, batata, cenoura, mandioca, é só plantar. Terei taquara para cercar minha hora onde terei alface, tomate, couve, repolho, cebola. Andando por aí vou achar muda de tantas outras verduras que farão minha horta farta. Terei hortelã, erva doce, marcelinha, erva cidreira, pacová. Não me faltarão remédios. Chifre de bode raspado é remédio para muitas doenças.
O esterco da vaca deixará minha terra produtiva. E a luz do sol? E a chuva? Na natureza tem de tudo!
Essa casa será recoberta com sapé. Taparei os buracos com argila. Trarei uma bica de água ali no quintal. É possível até que arranje uma tinta e pinte as paredes. Imagine essa parede vermelha parecendo coloral! Vou ter um pé de urucum e posso até cismar de pintar a parede de vermelho.
Ali no terreiro vou fazer um forno onde assarei meus quitutes, como meu avô me ensinou. Bolinho de milho, bolão de fubá. Assarei peixes. Quando fizer uma pamonha vou me lembrar do meu avô, ele adorava uma pamonhada.
Vou fazer doce de batata e de abóbora com garapa de cana. Não quero receita feita. Vou achar minha fórmula e será mais gostosa do que tudo o que eu já vi antes. Terei cravo, canela, manjericão, louro. Terei todos os temperos ali, ao meu alcance. Naquela árvore farei uma rede de tabôa que será pendurada por um cipó. Tem muito cipó naquele mato. Deitarei na rede e cantarei bem alto. Faço um surdo com madeira, imbira e couro de cabrito. Acharei guizos de cascavel e farei um chocalho. Farei flauta de bambu. Haverá concertos, com todos os passarinhos voando de alegria. As borboletas ficarão voando mansamente, colorindo o céu. As formigas farão fila, carregando suas folhas e pararão para ouvir. As vacas e os cavalos chegarão bem perto. Tenho certeza que na hora certa o boi dará um berro no acorde correto, parecendo uma tuba. Quero ver o cavalo relinchar num tom agudo, bem bonito.
Ah! Vida sossegada! Nunca mais quero ouvir falar em cidade. Não vou voltar à cidade para nada. Não terei o que comprar para viver bem nesse lugar. Vou dormir ouvindo cantigas dos sapos. Eles fazem uma verdadeira orquestra, lá no brejo. Os grilos, as cigarras, os tizius, os pintassilgos, cantarão bem alto, ensurdecendo esse recanto de roça.
Farei fogo com palha seca, usando um isqueiro de pedra. Assim faziam os índios e não foi por isso que eles foram dizimados. Terei água quente no inverno. No verão vou dormir com as janelas abertas, aproveitando o vento da noite. Vou poder ver as estrelas brilhando no céu. Na cidade ninguém vê estrelas, ofuscadas pela luz dos postes.
Vou viver aqui todos os dias de minha vida sem nunca mais precisar de cidade.
- Cê não vai conseguir.
- Quem é você, garoto?
- Eu sou eu, ué.
- De onde você é?
- Sou daqui.
- O que você faz?
- Faço tudo, brinco, pesco, caço passarinho, nado no rio, como frutas.
- E o que você vai ser na vida?
- Quando crescer vou para a cidade, estudar.
- Não faça isso, garoto, cidade não presta. Lá só tem violência, trânsito ruim, novelas, fuxicos, políticos mentirosos, gente invejosa. Cidade não presta.
- Mas viver na roça é muito cansativo. O trabalho é muito e o lucro é pouco.
- Porque lucro, se você tiver tudo para viver?
- Mas não tem tudo, a gente sempre precisa de alguma coisa.
- Não precisa e eu vou provar isso a você, vivendo aqui sem comprar nada.
- Não vai conseguir.
- Garoto chato, fica me contestando, atazanando minha vida!
Na cidade a vida é difícil. Se paga para viver. Imposto, condomínio, pedágio, gorjeta para guardador de carro, estacionamento. Para comer uma banana tem que gastar dinheiro. Tem que brigar com o patrão para aumentar o salário. Brigando o patrão manda embora e não há mais dinheiro. Sem dinheiro vem o conflito. Com o conflito vem a raiva, a briga, a separação, a saudade.
- Não dá. Vou viver aqui para sempre.
- Cê não consegue.
- Não consigo é viver com poluição, ruído excessivo, poeira, alimentos estragados, adoçantes, temperos enlatados, sucos sem gosto de nada e, ainda mais, dando câncer.
- Cê tem cinema, televisão, rádio...
- Cinema só passa filme de ação onde o mais bonito é Schwarzenegger, com seus absurdos; televisão só tem novela, violência e besteiras de dona de casa sem ter o que fazer; rádio só toca música encomendada. Não quero mais. Eu mesmo vou cantar as músicas que já conheço e não quero outra.
-Tem roupa bonita, sapatos...
- Que roupa bonita? As mais bonitas mostram tudo o que a mulher teria que esconder! E não adianta, quando vai se acostumando, alguém diz que aquela roupa é cafona e ninguém usa mais. Nova prestação para pagar, mais hora extra e as roupas novas, cada vez mais sem qualidade, umas porcarias que não agüentam três lavadas.
- E os automóveis?
- Só servem para encher as ruas atravancando o trânsito. Os ônibus lotados, não tem metrô! Ninguém consegue cumprir horário. E anda de carro o dia inteiro e, depois, já cansado, vai andar na rua para não engordar. No dia seguinte enche a cara de cerveja e sanduíche com gorduras. Ai vai ao médico e toma remédio para o colesterol e o médico manda-o ir para a roça para descansar. Pois aqui estou! Pronto.
- E se ficar doente?
- Fico doente na cidade com tudo de ruim que lá tem. Aqui não fico doente.
- Mas, se ficar, morre.
- Garoto chato!
- Essa terra foi descoberta há muitos anos. Tanta gente aqui viveu, morreu, foi embora, voltou. O povo está sempre à procura de viver melhor. Ilude-se com a cidade. Na cidade se aborrece. Hoje todo mundo é neurótico. É uma competição desalmada, onde só o que se procura é ser mais que os outros. Há muita ganância e ninguém tem sossego. Não se conversa mais com o vizinho. Os amigos são só para alguns momentos. Ninguém mais gosta do amigo, de verdade. Até os parentes se afastam, não se vêem mais. Os vizinhos não se cumprimentam, são como estranhos. Você vive perto de todo mundo e sozinho. Pois vou ficar sozinho aqui, bem longe.
- Cê fala porque já está tudo pronto. Alguém já derrubou as matas, fez casas, estradas, roças, a represa. Queria ver você aqui quando não tinha nada e o trabalho era duro, de sol a sol, sem férias nem domingos. O trabalhador da roça era descalço, com o pé na boca das cobras e nos espinhos. As ferramentas eram pesadas, foices, machados, enxadas, e o braço do roceiro para puxar tudo isso. O homem do campo nem sabia o que era progresso. Não sabia o que era um trator, uma serra elétrica, um motor. Ele sim vivia isolado, não por vontade, mas por falta de opção. Construiu esse vale, deixou tudo bonito e quis ir à cidade, onde há mais conforto, onde se vive melhor. Se tem violência é porque o homem criou e se o homem quiser arruma de novo. Queria ver você falando isso tudo se fosse analfabeto como eram os homens da roça. Queria ver você forte assim se tivesse os vermes das crianças da roça. Queria ver você recusar o conforto se nunca tivesse desfrutado dele.
- Garoto chato! Quem é você, garoto?
-Eu sou eu, ué. Sou a roça, sou a raiz, sou a consciência, sou o grito pedindo aquilo que você acha que tem.

-Aqui eu sou Benedito
Lá no norte Severino
Sou igual a qualquer outro
Sou valente, sou menino
Moro na casa de palha
E namoro a Mariazinha
Que cuida e bem cuidado
Do terreiro e da cozinha

Que sofre esperando o Dito
Que trabalha sem parar
E quando chega cansado
Nem consegue namorar
Vai dormir, a amanhã cedo
Tudo começa de novo
E não tem ninguém que grite
Pela glória desse povo

E agora chega você
Todo frajola e garboso
Pensando que é tudo fácil
Que é só provar do gozo
Quem sabe até nem consegue
Tirar leite de uma vaca
Não sabe fincar um pau
Não sabe bater estaca

Nunca fez calo na mão
Nunca dormiu num roçado
Nunca puxou um facão
Nunca empurrou um arado
Pois saiba que aqui na roça
É terra pra muito macho
E quem não tem competência
É melhor ficar embaixo

- Garoto atrevido! Veja como fala!

Pois estou chegando agora
E aqui venho pra ficar
E se você é a raiz
Então eu vou explicar
Também sou filho da terra
Só que nasci na cidade
Meu vô, meu pai, minha gente
Quando tinham vossa idade

Construíram isso tudo
Com alegria e bondade
E depois de tudo pronto
Foram embora pra cidade
Pensando em curtir a vida
E ter mais facilidade
Até foi bom por um tempo
Mas como tudo na vida

Tem a hora da chegada
E a hora da partida
Se aqui foi ruim no começo
A cidade está no fim
Isso agora é o recomeço
E seja um amigo pra mim

-Sou amigo, lhe recebo
Pode vir e se sentar
Aqui viveremos juntos
Com as coisas do lugar

Tem bastante, tem fartura
Mas não tem tudo, lhe digo
E lhe faço um desafio
Pra provar que sou amigo

Pra comprar o que lhe falta
Eu mesmo vou à cidade
E lhe trago a encomenda
Essa preciosidade

Que não tem aqui na roça
E nem tem como fabricar
Pois não tem matéria prima
Não adianta procurar

Não cai na água da chuva
Não nasce, não tem raiz
Não sai no leite da vaca
Nem por decreto de juiz

E se aceita o desafio
Está na hora, é decisão
Me prove que estou errado
Que eu lhe estendo e aperto a mão

Mas, se não puder provar
Reconheça que é errado
Ser prepotente e falante
Ser com a vida debochado

Achando que sabe tudo
Se sentindo autoridade
Desdenhando e parecendo
Gente boba da cidade

Meu amigo, está na hora
De pagar a sua aposta
Pois, até vaca precisa,
Embora seja animal
E você não faz comida...
Você precisa de sal.

- Caramba, garoto esperto!
(sagacidade de um lobo)
Acabou me convencendo
Estou com cara de bobo
Preciso ir à cidade
Irei, não tenho rancor
Agora entendo, na vida
É preciso muito amor

Respeitar o ser humano
Na fazenda ou na cidade
Pois, ninguém vive sozinho
Só agora reconheço
Pago a aposta, estendo a mão
É o castigo que mereço

E nesse abraço apertado
Que agora lhe dou, eu juro
Que sei o por quê da vida
E sei enxergar no futuro

Que somos a mesma pessoa
Que agora nos encontramos
Se vivemos os conflitos
Era por que nos amamos

E agora, em nossa vida
Até por obrigação
Viveremos a harmonia
Saberemos dar a mão

Enxotaremos dessa vida
Tudo aquilo que for mal
Pois ninguém é soberano
Se precisa comprar sal
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui