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Contos-->Pai, deixa eu ir ao seu serviço?! -- 23/04/2001 - 13:48 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
- Onde você trabalha, pai?
- Numa transportadora, Marcelo.
- E o que você faz lá?
Aos nove anos eu nunca iria entender o que meu pai fazia numa transportadora de São Paulo, por mais que ele explicasse. Falava para os meus coleguinhas que ele era motorista. Desbravava o país em seu caminhão amarelo, rompendo fronteiras, conhecendo lugares, ultrapassando outros veículos, banhando-se em cachoeiras encantadoras, conhecendo gente de toda espécie, ganhando o pão de cada dia... Não sabia ao certo o que era o trabalho. Apenas tinha consciência de que meu pai saía bem cedo e só voltava quando o céu estava muito escuro. De vez em quando me trazia umas balas e chicletes ou bonecos de papel -–que depois de algum tempo fui entender que eram brindes que ele ganhava por lá. Aliás não posso deixar de falar da Páscoa e do Natal, ocasiões em que papai nos trazia ovos de chocolate e gelatina de morango. Naquela época a validade não era impressa nas embalagens, mas hoje suponho que estivessem vencidas. Quando estava um pouco maior pedi encarecidamente que meu pai me levasse ao seu trabalho.

- Calma, filho! Papai anda muito cheio de trabalho. Quando as coisas estiverem mais calmas, te levo.

Imaginei que o velho Tião estivesse cheio de entregas a fazer, pois o final do ano se aproximava e era justamente esta a época em que ele chegava mais tarde. Também era nessa época que eu percebia minha mãe mais nervosa. Ficava esperando meu pai na sala, depois da novela e quando a programação das emissoras estava prestes a se encerrar era despertada pelo rangido da velha porta de madeira se abrindo. Meu pai vinha com um pacote de papel todo amassado sob o braço cansado.
- Oi, Maria! – cumprimentava-a.
- Isso são horas, Tião? Vai jantar?
Meu pobre pai depositava seu pacote sobre a toalha xadrez da mesa redonda, abria a geladeira e pegava o garrafão de água. Tomava dois copos e se sentava à mesa. Trocava algumas poucas palavras com mamãe e servia-se de arroz requentado e de ovos fritos mal passados. Brincava com o garfo enquanto mastigava lentamente o jantar. Esperava mamãe terminar de arrumar sua marmita e ia para a sala, assistir o telejornal. De vez em quando comentava alguma notícia, indignando-se com o pronunciamento de um político ou com a derrota do seu time. Mamãe não opinava. Sequer prestava atenção no apresentador. Passava a maior parte do tempo cochilando no sofá. Não esperava papai ir para a cama, passava no meu quarto e nos cobria. Quase sempre nos beijava levemente a cabeça e nos dizia boa noite. A velha Maria tinha de estar em pé às cinco, para mais uma jornada que só se encerraria por volta da meia noite. Sua diversão eram as missas de Domingo e as visitas à Tia Rosa, sua irmã mais velha. Tia Rosa se casara com um comerciante português chamado Miguel. Tinha uma vida bem melhor que a de mamãe, mas sempre parecia estar infeliz. Papai quase nunca ia conosco, preferia ficar em casa vendo TV ou ir ao bar do Malaquias bebericar com amigos da vila. Bebia pouco, mais para passar o tempo do que qualquer outra coisa. Quando se alterava um pouco mais ia direto para a cama e passava as tardes dormindo. Mamãe reclamava de seu ronco, mas no fundo achava engraçado papai esparramado na velha cama, todo vestido e desarrumado. Era um casal comum, como tantos outros de sua geração.
- Amanhã vou levar o Marcelo ao trabalho – ouvi meu pai comentando com mamãe.
Quase não me detive. Tive vontade de entrar correndo em nossa pequena cozinha e abraçar as pernas longas do meu velho pai. Sorri sozinho e me senti orgulhoso, especialmente porque meus irmãos mais novos não teriam o mesmo gostinho que eu. Nem iriam acreditar! Eu no colo de papai flutuando e sonhando na cabine larga.
- Que horas vocês vão? – perguntou mamãe.
- Na hora de sempre...

Isso significava que teria de acordar muito cedo, tomar um banho rápido, esperar mamãe colocar uma roupa e tomar um café apressado. Mas não teria problema. Aliás, se dependesse exclusivamente da minha vontade, nem dormiria. Só ficaria imaginando como seria cada minuto desde que deixássemos nossa velha casa branca até a hora de voltar do trabalho de papai. Depois esperaria minha mãe se levantar e ir para o rústico banheiro do corredor. Sentiria o cheiro do café forte que seria coado lentamente na caneca de alumínio e escutaria o barulho da porta da geladeira sendo aberta. Mamãe costumava passar muita margarina no pão e esquentá-lo no forno de seu fogão velho de quatro bocas. Vivia sonhando com um fogão novo, azul e que tivesse um forno enorme, para cozinhar seus bolos de cenoura e fubá. Mas o orçamento sempre estava apertado e não lhe permitia este luxo. Como ela ficava muito brava quando eu me levantava sozinho, esperaria que me despertasse como sempre, puxando levemente o lençol estampado e sussurrando meu nome para não acordar meus irmãos. Levou muito tempo, mas os braços de Orfeu me envolveram, enfim.
Saímos naquele Sábado quando o Sol ainda ameaçava despontar no horizonte. Seguimos pela rua de terra batida umedecida pelo sereno da madrugada. Ao chegarmos na avenida, papai ainda teve tempo de comprar um maço de cigarros na padaria do “seu” Osmar. Para não ficar com as moedas, pegou algumas balas de frutas e colocou-as no bolso fundo da calça de tergal. Prometeu me dar todas elas depois que almoçássemos, por volta do meio-dia. Quando o ônibus despontou na curva do supermercado, meu pai atirou a bituca do cigarro em direção à boca de lobo e me pegou no colo, dando-me um leve beijo no cabelo engomado. Ao subirmos ele cumprimentou o motorista – um crioulo gordo com um bigode denso, cujos pêlos grossos invadiam sua boca grande, enquanto falava.
- Como é que é, Tião? Levando o herdeiro pra batalha? – saudou o motorista.
Papai balançou a cabeça afirmativamente e atravessou a roleta até me acomodar em um dos bancos duros. Fique aí quietinho! – recomendou. Pagou a passagem e trocou algumas poucas palavras com o cobrador – rapazote magro que tinha uma feição cansada, sonolenta. Colocou-me em seu colo aconchegante e recostou o corpo próximo à janela. Enquanto o velho ônibus seguia pelas estreitas ruas e avenidas do bairro eu ficava fissurado pelas imagens externas que insistiam em se revezar. Eram cartazes, fachadas, pessoas, carros potentes, outros nem tanto... Um mundo mágico e dinâmico se apresentava lá fora me deslumbrando, ativando minha noção de tempo e espaço. Meu pai também vislumbrava as ruas, mas com um olhar diferente. Parecia não estar enxergando nada do que se movia ou do que estava estático do outro lado da janela. Talvez estivesse cansado daquela paisagem urbana, repetitiva e inacabada. De vez em quando cochilava e seu corpo se tornava arredio e incontrolável, especialmente quando o ônibus passava por buracos ou fazia curvas acentuadas. Ao entrarmos na avenida principal que seguia para a Barra Funda, avistei pela primeira vez mais de perto os arranha-céus do centro da cidade. De longe pareciam todos iguais, mas, conforme iam se aproximando, começavam a tomar forma, cores e tamanhos muito diferentes. O velho Tião continuava com seu olhar perdido no além, de vez em quando olhando para mim e querendo dizer algo que nunca saía de seus lábios rasos. Àquela altura da vida papai tinha 43 anos, mas as faces magras denunciavam um envelhecimento precoce. Veio de Mirassol com 14 anos, acompanhado de meus avós e de seus quatro irmãos. O primeiro emprego que conseguiu foi na feira livre, vendendo verduras e legumes. Casou-se muito cedo com minha mãe, que era sua vizinha na Lapa. Houve um tempo em que andou metido em jogatina e quase perdeu o pouco que tinha. Sorte a dele de contar com a força e incentivo de mamãe para não entregar o pouco que restara nas mãos dos credores. Foi justamente nessa época que mamãe começou a trabalhar fora. Fazia faxinas em alguns apartamentos da Pompéia e Perdizes, e ajudou-o a se livrar aos poucos das grandes dívidas. Mas o velho Tião nunca se conformara com o fato de a mulher ter que trabalhar. Aquilo o consumia ao extremo, e de vez em quando discutiam acirradamente sobre isso. Mamãe sempre argumentava que trabalhava para que não faltasse nada para mim e meus irmãos. Só que isso era rebatido com acusações infundadas de que ela não queria cuidar da casa e das crianças. Enfim, nunca chegavam a um acordo. Talvez fosse nisso que papai pensava no percurso para a transportadora. Descemos na Praça do Correio. Já eram 7 e meia, e a perua que levava os funcionários do Centro para a Móoca ainda não tinha chegado. Foi o tempo de papai se dirigir a uma banca de jornal. Acendeu mais um Continental e deu uma olhadela nas manchetes dos jornais pendurados na banca. Soltou um palavrão qualquer ao ler uma delas. Enquanto isso eu vislumbrava o topo dos arranha-céus mais altos. Um deles me chamou mais a atenção. O prédio era rosado e suas janelas pareciam mais largas do que as dos demais edifícios. Não havia ninguém nas varandas, o que causava uma certa estranheza. Quem mora lá, papai? – perguntei. Meu pai se limitou a dizer que aquele era um prédio comercial, e que ninguém morava lá. Não entendi, mas decidi não fazer mais nenhuma pergunta. A Kombi branca chegou precisamente as quinze para as oito. Meu pai reconheceu três amigos na pequena multidão da praça, que se encaminhavam apressadamente em direção à perua.
- Joaquim! – gritou meu pai.
Um deles então se virou para nós e abriu um largo sorriso. Retribuiu o cumprimento e apertou a mão de meu pai. Depois passou a mão pesada na minha cabeça pequena e disparou a me fazer perguntas. Enquanto caminhávamos fazia um esforço danado para entender o que o amigo de papai falava. Só sei que ia intercalando as questões e respondendo-as por conta própria. Parecia ser meio elétrico, o Joaquim. Nem sei como podia ter amizade com meu pai, tão discreto e introspectivo. Enfim entramos na perua que caía aos pedaços.
- Bom dia, moçada! Mas que cara de sono é essa, garoto? – perguntou-me o motorista.

Enquanto desfilávamos pelas avenidas largas todos falavam muito, e ao mesmo tempo. O assunto predominante era a próxima eleição. Um dos homens defendia ardorosamente um candidato, enquanto os demais insistiam em acusá-lo de ladrão e mentiroso. Uma senhora, que já estava acomodada quando entramos, era a que menos debatia. De vez em quando me olhava e sorria timidamente para mim. Algum tempo depois abriu sua bolsa velha e tirou de lá uma bala de canela, para me oferecer. Recusei. Papai disparou um daqueles seu olhares de reprovação e então estendi a mão e peguei a bala da mulher. Ela sorriu de contentamento e meu pai a agradeceu por mim. No fundo sabia que eu seria incapaz de abrir a boca perto de tantos estranhos. Já se acostumara. Sempre comentava com os amigos que eu falava pouco, mas que era um bom menino. Durante o caminho as conversas continuavam acirradas e estrondosas e, por ser muito pequeno, não pude acompanhar o que se passava do outro lado da janela. O balanço da Kombi me fez adormecer no colo esguio do velho Tião, que se limitou a ficar coçando minha cabeça. Ao chegarmos à firma despertei rapidamente. Confesso que me decepcionei com a primeira imagem que vi. Era um pequeno pátio com dois caminhões enormes estacionados lado a lado. Um homem cabeludo trazia uma prancheta na mão e parecia conferir alguns papéis. Parecia dar algumas instruções para o motorista, um velho baixinho que usava um óculos de grau com lentes bastante espessas. O motorista ouvia atentamente e, de vez em quando, respondia em voz baixa seu interlocutor. Papai correu para um pequeno vestiário arrastando a mim numa das mãos e uma sacola colorida na outra. Acomodamo-nos num banco de madeira e meu pai começou a se trocar. Vestiu o macacão azul surrado e as botas pretas, que estavam num dos armários.
- Vou levar você para ficar com a tia Rita, lá no escritório. Vê se a obedece e se fica quietinho, garotão!
Já no escritório fui apresentado à Rita, uma moça de traços muito fortes e pele morena. Tinha uma pinta grande na face e me recebeu com um sorriso bastante espontâneo. Então você é o Marcelinho? – perguntou sorridente. Tenho certeza de que você vai gostar daqui.
Meu pai me deu um beijo na testa e saiu em disparada para o pátio. Pensei que depois fosse me chamar para dar uma volta em seu grande caminhão, mas o fato é que ele era mecânico e uma espécie de faz tudo da firma. Tinha então que ficar ali naquela minúscula sala olhando para o nada e sendo paparicado por aquela mulher estranha. Depois que meu pai saiu ela me trouxe uma xícara de café com leite e alguns biscoitos doces. Tive vontade de molhar os biscoitos no leite – como fazia em casa – mas fiquei com vergonha. Tomei uns goles largos e belisquei os biscoitos. Olhei para a parede branca e avistei um calendário com a imagem de Cristo, num gesto de bênção aos que o olhavam. No outro extremo, três pequenos quadros que acomodavam diplomas ou certificados. De repente cruzei com o olhar da Rita, que perguntou-me se eu gostava de pintar. Respondi com a cabeça afirmativamente. Ela então pegou um maço de folhas brancas, um lápis preto de ponta grossa e um estojo com canetas coloridas. Trouxe de casa! – afirmou. Sabia que fariam falta. Comecei a me simpatizar com a moça. Aos poucos fui me aproximando e lhe fazendo perguntas. Quis saber o que meu pai fazia ali e quando voltaria. Perguntei-lhe também se tinha namorado.
- Por que? Por acaso quer namorar comigo? – sorriu. Não, ainda não tenho. Mas quem sabe quando você crescer...

Passadas uma hora e meia o telefone tocou e Rita enfim parou de conversar comigo. Enquanto ela falava ao telefone eu terminei mais um desenho. Abri uma brecha na porta que dava para o pátio para ver se avistava meu pai. Aquele mesmo homem cabeludo que vi quando cheguei falava aos berros com ele. Sustentava firmemente que ele não fazia nada direito e que, se continuasse assim, ia logo para o olho da rua. Papai ouvia sem esboçar nenhuma reação. Limitava-se a balançar a cabeça e a pedir desculpas. Esfregava as mãos calejadas numa estopa branca, tirando algumas manchas de graxa. Como o homem não parasse de gritar, meu pai foi-se afastando de costas e pedindo calma, argumentando que consertaria ainda na parte da manhã o gerador enguiçado. Neste momento avistou-me no escritório. Abaixou a cabeça grisalha. Senti uma compaixão enorme do velho Tião, não maior do que a vontade de esmurrar a barriga rechonchuda daquele brutamontes que havia o ofendido. Contudo, meus pensamentos foram interrompidos pela chegada de um reluzente carro vermelho. Quem o conduzia era um homem branco, muito gordo e careca. A fisionomia do inquisidor do meu pai mudou completamente. Ele se aproximou do carro e esperou o motorista sair para sussurrar algumas palavras. Estava sorridente e solícito, e falava sem parar. Naquele momento Rita se aproximou e pediu para que eu fechasse a porta. Contou-me que aquele era o Sr. Tomazzio, um dos donos da empresa. Segundo ela, não costumava aparecer por lá aos sábados, e que para ele estar ali era porque devia ter algo importante para fazer. Recomendou-me que ficasse bem quieto até que ele fosse embora. Quando ele entrou intempestivamente Rita e eu nos assustamos e ele foi logo perguntando quem eu era. Rita justificou rapidamente a minha presença e disse que eu estava me comportando muito bem.
- Já falei que não quero molecada aqui estragando material de escritório...
Sentou na mesa principal e desatou a rebuscar algo nas gavetas. Perguntou para a Rita onde estavam as notas do cliente de Goiânia, que ele tinha certeza ter deixado sobre a mesa na Sexta-feira. A moça entregou-lhe as notas, pois as tinha guardado para que não houvesse o risco de elas se perderem.
- Vai dar um volta, garoto! – ordenou-me. E cuidado para não ser atropelado. Depois eu falo com seu pai.
Saí o mais rápido que pude, empunhando alguns biscoitos que recolhi do prato raso. Olhei para o pátio e não vi meu pai. Fiquei com medo de sair o procurando e resolvi ficar sentado próximo à entrada do escritório.
- Senta aqui, minha princesa! Estava morrendo de saudade de você.
- Calma, Sr. Tomazzio. Pode vir alguém.
- Que é isso, querida. Você sabe muito bem que ninguém se atreveria a vir para cá. Tira essa blusinha que eu quero chupar esses seus peitinhos.
Quis olhar pela janela estreita o que os dois estavam fazendo, mas fui surpreendido pelo meu pai, que mandou que o acompanhasse naquele momento. Anda! Sai daí, moleque! – ordenou baixinho. Demorou bem uma hora até o Tomazzio deixar o escritório. Ao sair, ainda recomendou ao troglodita cabeludo que falasse ao meu pai para não trazer mais crianças para a transportadora, porque poderia ser perigoso. Quando voltei à sala vi a Rita datilografando e fazendo algumas anotações. Estava meio sem graça, até porque parecia que todos os outros funcionários sabiam do caso que mantinha com o patrão. Mas não deixou de ser gentil e benevolente. Recolheu suas coisas e me puxou pelo braço. Vamos à padaria comprar uns chocolates? – convidou-me. Adoro chocolates. Fomos até o galpão onde estava meu pai, para pedir autorização. Depois que nos dirigimos à saída alguns dos peões sorriam e faziam alguns comentários sobre a Rita. Meu pai se levantou e ficou nos olhando até que passássemos pela portaria. Ao voltarmos, meu pai já tinha feito o conserto e se preparava para voltar ao vestiário. Pediu para que eu lhe acompanhasse. Enquanto tomava um banho rápido, foi comentando o trabalho que teve para arrumar o gerador. Tentou também amenizar o episódio do cabeludo, dizendo que ele falava daquela maneira com todo mundo. É assim mesmo, ele só quer que tudo funcione direitinho para que o Sr. Tomazzio não caia matando nele – argumentou. Ouvi atentamente mas não deixei de odiar o cabeludo. Meu pai era um homem magnífico, que jamais desejou o mal de alguém e não merecia aquele tratamento. Pensei comigo mesmo que, quando crescesse, desbancaria o poderio do cabeludo e do Tomazzio, que ainda por cima se aproveitava da Rita, aquela moça tão bondosa. Meu pobre pai, hoje não mais presente, sempre recomendou que eu estudasse bastante para que não passasse pelas humilhações que teve de passar. Atravessei a infância pensando em como me tornar dono de transportadora para acabar com os cabeludos e tomazzios da vida, mas as condições de vida que tive não me permitiram crescer o tanto que meu pai sonhava para mim, especialmente depois que ele partiu. Tive de assumir a casa e a família, mas sempre com muito orgulho e dedicação. Está certo que trabalho num escritório e que meu futuro não é assim tão obscuro. Mas quando tiver meus filhos quero que eles tenham orgulho de freqüentar o meu trabalho e que possam assistir a cenas mais alegres do que as que presenciei na infância.


P.S.: parte integrante do livro "A Comédia da Vida S/A"
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