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Contos-->UMA VIDA COM MUITO AMOR -- 17/11/2009 - 17:20 (Divina de Jesus Scarpim) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Eu estou doente de Mentira. Não, não é que eu esteja inventando uma doença, ou que diga estar doente sem realmente sentir nada... Estou doente de MENTIRA, a mentira é que é a minha doença. Explicar melhor? Bem, é que comecei a mentir há muitos anos e minha vida toda foi se construindo com mentiras até que tudo foi acabando e agora nem mesmo a mentira consegue ser alguma coisa importante pra mim. Sinto dores pelo corpo todo, estou com as mãos praticamente paralisadas e os dedos retorcidos como garras disformes. Não consigo caminhar dez metros sem sentir dores e travar totalmente a coluna. Caminho com o corpo torto, arqueada para a frente e um pouco virada para a esquerda, não tenho mais a mínima possibilidade de me pôr em linha reta, nem deitada nem em pé. Acho que tudo isso foi causado pela mentira, ela foi minando meu corpo. Cada vez que eu mentia algum veneno se guardava na minha carne até que o acúmulo me tornou esse ser retorcido e triste.

Como começou? Primeiro foi com a escolha do homem com quem me casei. Escolhi-o porque quando o conheci ele já estava na faculdade e teria um futuro melhor do que outros rapazes que eu poderia ter namorado. Então fingi que o amava, fiz tudo tão bem feito que ele se apaixonou por mim e nós nos casamos. Nunca senti nada por ele, mas sabia fazer e dizer coisas que conseguiam que ele não só acreditasse no meu amor como também me amasse. Me casei virgem mas às escondidas procurei me informar muito sobre sexo, o suficiente para saber que tinha que gostar, então gostei, ou melhor, fingi que gostei. Com o tempo a gente aperfeiçoa tudo na vida, inclusive a farsa, eu fingi sempre e tão bem que a nossa vida sexual pareceu sempre maravilhosa para ele, tínhamos até, coisa extremamente rara, orgasmos ao mesmo tempo... Pra falar a verdade eu nem sei o que é esse tal orgasmo.

Sempre fiz coisas para que as pessoas acreditassem em mim, e fui muito boa nisso, na verdade posso afirmar que muitas mulheres realmente apaixonadas pelo seu marido não conseguem ser tão boas com ele como eu fui. Graças a esse casamento estável eu pude ter uma vida muito confortável financeiramente, cuidei de uma casa que pôde ser bonita e grande, tive coisas boas como roupas e boa comida e até pude me dar ao luxo de ter uma ou outra jóia porque meu marido me presenteava com anéis e colares nas datas especiais. Só precisei mentir pra ter toda a segurança de que precisava, e fui sempre muito boa nisso, cada vez melhor.

Quando ele quis ter filhos eu fui soberba! Disse que o amava muito, que queria muito um filho mas tinha um pouco de medo de um filho nos separar. Ele me fez muitos agrados para me convencer de que o filho só nos uniria mais. Engravidei. Odiei cada dia da gravidez mas fui, na aparência, a mulher grávida mais feliz da face da terra, só me deixava ver sorrindo, acariciava minha barriga enorme o tempo todo, na frente das pessoas, principalmente do meu marido, conversava com o neném que estava lá dentro e dizia o quanto o amava e como estava feliz com a sua vinda. Fui perfeita, tão perfeita que até hoje vejo pessoas da minha família e da família do meu marido me usando como exemplo de uma gravidez iluminada.

Consegui controlar quase tudo, mas meu corpo não obedeceu e eu não tive dilatação, tive que fazer uma cesariana, o que eu gostei muito mas nunca disse a ninguém ter gostado, sempre disse que queria parto normal mas não era verdade, eu morria de medo da dor, acho que meu corpo se fechou por isso. Consegui até chorar um pouquinho lamentando não ter podido ter o parto da forma que a natureza manda, mas fui consolada por todos e deixei esse assunto para ser dito apenas quando coubesse lamentar minha cesária. Saí do hospital sorrindo e radiante, carregando com muito cuidado o Arthur. Eu de verdade não senti nenhum apego, tinha mesmo é curiosidade sobre aquele serzinho avermelhado e feio que saiu de dentro de mim, mas, como aconteceu a meu marido, tenho certeza de que até hoje, se fosse vivo, o Arthur diria que foi um filho ao qual nunca faltou amor, principalmente de mãe. Sempre fiz e falei tudo o que a mãe mais amorosa do mundo faria e falaria. Com muito cálculo, planejamento cuidadoso e uma paciência a toda prova, eu não deixei nada a desejar a ninguém. Dois anos depois, por insistência do marido, tive a Lúcia. Foi a mesma história, meu corpo se trancou e fiz cesariana, lamentei novamente para todos como se realmente preferisse a outra forma, tratei a criança, desde o primeiro momento da gravidez até sempre como sendo a coisa mais importante do mundo pra mim. Pode perguntar à Lúcia, ela vai dizer que teve a melhor das mães, que fui perfeita até mesmo ao não permitir que ela se sentisse menos amada quando o Arthur adoeceu. Cuidei do Arthur sem descuidar da Lúcia e sem descuidar do Fernando, as pessoas admiravam a forma como eu conseguia dividir meu amor em três partes e ainda ter amor de sobra para apoiar o restante da família, minha sogra, por exemplo, que tinha no Arthur o primeiro neto e estava muito velhinha quando ele adoeceu. Todos se preocuparam muito com ela, eu fiquei horas e horas ao seu lado e disse muitas coisas nas quais nunca acreditei e com tal convicção que ela conseguiu forças para comparecer ao enterro do neto. Tenho provas do que estou dizendo, muitos cartões de pêsames estão citando minha dedicação e minha capacidade de amar. É irônico, muito irônico, eu que nunca amei ninguém na verdade, nem mesmo meus pais, fui capaz de demonstrar um amor além da conta na visão de todo um grupo de parentes e amigos...

Fizemos vinte e oito anos de casados e eu ainda conseguia demonstrar para todo mundo, inclusive pra ele, que amava meu marido como no primeiro dia. Teve uma festa muito bonita e - eu tenho o filme lá em casa pra provar - muitos foram os discursos emocionados elogiando minha capacidade de dar amor à minha família. A Lúcia chegou a chorar quando agradeceu a Deus por ter saído de uma mulher com um coração tão grande como o meu, eu chorei. Aliás, essa foi talvez a minha principal aliada: minha capacidade de chorar onde e quando eu decidisse que pegava bem chorar. Chorei no dia do meu casamento, até saí com uma lágrima em uma das fotos da igreja, aquela foto ficou muito boa, eu realmente estou parecendo uma noiva apaixonada e feliz. Chorei nos dias em que as crianças nasceram e tentei não chorar mais em um nascimento do que em outro, pra ninguém pensar que eu pudesse amar um filho mais do que o outro. Chorei por semanas inteiras quando o Arthur morreu e chorei quase sempre que o Fernando ou as crianças me faziam alguma surpresa ou me davam algum presente especial.

Agora a Lúcia está casada e mora no sul, o Fernando morreu há dois anos e eu estou sozinha em casa. Não tenho mais pra quem fingir a não ser quando a Lúcia telefona ou quando vem pra cá com a família, daí continuo perfeita. Ela vai, como aconteceu com o irmão e o pai, morrer tendo a certeza de que sua mãe a amou como poucas mães conseguem amar os seus filhos.

Será que isso é tão ruim assim? Mesmo mentindo eu fiz cada um deles feliz, não fiz? Por que eu tinha que sofrer agora com tantas dores? Me sacrifiquei a vida inteira para que nunca ninguém soubesse o quanto eu desprezo o mundo e as pessoas. Dei, mesmo sem ter nem uma migalha para dar, muito mais amor em meus atos e em minhas palavras do que teria podido dar talvez se realmente tivesse algum dia sentido esse amor. Será que mereço mesmo algum castigo? Não, não acredito que exista isso de castigo, sempre fui boa, mesmo sendo má. Não é melhor isso do que ter sido fraca e frágil, carente e sofredora como foi minha mãe, que era boa, tão boa que acreditava em todo mundo, até mesmo no amor que eu dizia sentir por ela quando a acariciava no pescoço sentindo uma vontade enorme de quebrá-lo.
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