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Contos-->PEDRO GOBÁ / Ezequiel Freire -- 20/10/2009 - 12:31 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




















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PEDRO GOBÁ

( Ezequiel Freire )


Maio, nas fazendas , é um mês de azáfama.
Colheram-se as roças; empaiolou-se o mantimento. Topetadas até as cumieiras, garantem as tulhas um ano de fartura. Malhou-se feijão; bateu-se o arroz; quebrou-se o milho; arrancaram-se as túberas de toda a casta. Vêm chegando do mato-dentro as derradeiras carradas. Chiam desesperadamente os grandes carros circundados por alta esteira de taquara entrançada que boja com a pressão da carga. Pausadamente, entra pelo terreiro a longa fila de bois, cangados aos pares, parelhos no pêlo e no porte. Os da guia , retacos, dorso recurvo, pescoço alongado, focinho abeirando a terra, esticam as tiradeiras, vergando os canzis, ao esforço da tração. Corpulentos, possantes, pampas de amarelo e branco, cabeça ao ar, entrechocando as armações luzidias, marcham pesadamente os do couce, em passo processional e atitude de resistência, escorando, no cangote pelado pelo diuturno atrito da canga, o peso enorme da carrada.
De pé sobre o cabeçalho, seguro por uma das mãos a um fueiro, com a outra, brande o carreiro alentado e retinto uma comprida aguilhada, em cuja extremidade chocalha entre argolas a roseta de ferro, de puas mais temíveis ao couro bovino do que o ferrão da motuca.

- Eia, Lavrado! Fasta, Barroso ! Carrega, Damasco!

E, obediente ao comando, a dextra boiada contornea a linha das senzalas, marcando o lento passo ao monótono chiar do carro.
Por todo o largo terreiro uma grande alacridade barulha entre a criação doméstica, ao desabar da carga, à beira do paiol. Acodem avoando as aves : grasnam os palmípedes, gritam as galinholas, grugulam os perus; enquanto teimosamente grunhem a leitoada miúda, torvelinhante em derredor do monte, fariscando por entre o milho os tenros mogangos alaranjados tão doces ao dente do bácoro guloso.
De bodoque em punho um rio-branco traquinas, de cor de braúna, mantém o respeito entre a bicharia ruidosa, arredando a pelotadas certeiras os insofridos e os brigões.
Toda a fazenda ostenta um aspecto de abundância e fartura. O mantimento anda a rodo. Cavalos de estimação, pêlo luzidio, garupa redonda, relincham impacientes no cercado. Nédia e forte aguarda a boiada o rude labor dos meses da colheita.
Tudo está pronto para o início da safra. Os cafezais prometem. O ano passado fora de falha; neste a carga é de vergar.
De ponta a ponta do terreiro, indo e vindo, abstraidamente, o fazendeiro calcula : - “20 contos, pelo menos, líquidos, sejam para reformar a minha gente, 12 peças de lei, molecotes de 15 a 25 anos, na flor da idade, cerne puro. Mais duas safras desta, e mando ao diabo a hipoteca e o Banco”.
Entrementes, na alpendrada das senzalas, a um canto, os taquareiros se ativam; e ao longo dos balaústres, em rumas simétricas, se alinham as sururucas, os balaios de alqueires, as peneiras rasas de abanar.
No cafezal :
Está limpa e ciscada a terra para receber as bagas que transbordarem das peneiras com a pressurosa apanhação... porque em principio de colheita a tarefa é alta e o Maurício feitor aperta o serviço, a estralos de relho sobre o lombo nu da negrada, que escorre em suor , encrostado de poeira, alternadamente mordido, - de manhã, pelo frio orvalho que esborrifa das árvores, - alto dia pela soalheira que mordica a pele como a dentada cáustica da formiga-monjolo.
Os cafeeiros, vermelhos de frutos, deixam vergarem-se os galhos flexíveis. É uma carga enorme !

- “Desta vez tiro o pé do lodo”, continua meditando o fazendeiro, indo e vindo, abstraído, inteiramente alheio àquela grande alacridade que em derredor barulha por todo o vasto terreiro entre a criação doméstica...




Domingo, ao entardecer, o sino da fazenda tocou à forma geral.
Vieram depressa os moços, trotando; depois as negras, com as crias novas ao colo, arrastando pela mão um ou dois ingênuos seminus e magritos; por último, com trôpego passo, os sexagenários, alquebrados veteranos do eito, perrengada inválida e inútil.

- Salva ! manda o feitor.
-
- Vaássunscristo! bradam 50 míseros negros, num clamor uníssono, vibrante e merencórico, como uma imprecação à surda justiça de Deus, tantas vezes neste triste ermo bradada, sem que ninguém a exalce; nem tu, duro egoísmo do senhor de escravos; nem tu, meigo coração de esposa; nem vós, inconscientes e insensíveis ainda crianças que ides crescendo no espetáculo e nos exemplos desta dolorosa infâmia, que veio de vossos pais e que haveis de legar a vossos filhos!... Ninguém, ninguém te exalça, melancólico brado de angústia; e tu não irás mais alto nem mais longe do que vão o mugido dos bois e o ladrar dos cães; e te perderás, voz animal que tu és, entre as outra vozes da animalidade que te rodeia, no ar morto e sem ecos da Fazenda !

- Vaássunscristo !...

Em seguida, faz-se a distribuição anual da roupa : dois parelhos de algodão, japona de baeta, coberta de lã grosseira; porque o dono desta Fazenda é generoso ... outro fora, e dar-te-ia, pobre pária, para cobrir-te a nudez lutulenta – de manhã, o frio nevoeiro cortante dos eitos – alto dia, o sol que te mordiça a pele como a penugem cáustica da urtiga.
No dia seguinte tinha de dar-se princípio à colheta.
Para que a solenidade fosse completa distribuiu-se pelos negros aguardente e fumo, indo o Maurício com a canequinha de lata, ao longo da fila, dando a cada qual um gole, que o negro sorvia com a beatitude de um padre emborcando o cálice consagrado.

- “Agora, disse o Fazendeiro, indicando com o cabo do relho a melhor peça da fila : amanhã começa a apanhação; Gobá é o tarefeiro . No cafezal novo a tarefa , 10 alqueires. Cada alqueire que passar dos dez, - duzentos réis; cada alqueire que faltar, - uma dúzia de couro. Ouviram ?”


- “Si siô ! responde o eito num só grito com o automatismo dos entes em cujas almas a diuturnidade da escravidão sob o regime cru das senzalas obliterou a pouco e pouco, e de todo, o sentimento da personalidade.

Vergonhosamente, nesta pátria aviltada, a promiscuidade é a lei capital que regula as relações do amor entre a escravatura. Raro fazendeiro - ainda hoje ! - permite o casamento religioso aos seus negros. Como em certas hipóteses o moderno direto pátrio concede vantagens manumissórias aos cônjuges escravos, o fazendeiro, receioso dos efeitos, obsta à aparição da causa impedindo o sacramento, que - demais - ele considera como um luxo de dignidade supérfluo para a honra do preto.
Todavia, pois que é conveniente no próprio interesse da disciplina das senzalas, aparentar alguma moralidade, os nossos grandes proprietários rurais, alguns deles portadores de títulos de nobreza consentem (quando pessoalmente não promovem) o concubinato entre a escravatura.
Alguns levam a solicitude ao excesso de eles próprios designarem os nubentes e sacramentarem o conúbio, com a tranquila consciência de quem exerce dentro do seu latifúndio uma legítima função senhorial; outros deixam aos próprios interessados os cuidados da eleição.
Estes curiosos casamentos, nota simultaneamente cômica e torpe dos nossos costumes agrícolas, dão-se com a maior frequência na época da colheita do café ; e são , principalmente com referência às mulheres, determinados mais por um cálculo interesseiro do trabalho do que pelo intuito genésico ou pelos impulsos naturais da simpatia.
O que importa para interesse da Fazenda é “aparelhar-se a gente”, formando de um negro diligente e dextro com uma crioula morosa e inábil - uma entidade mixta, espécie de trabalhador andrógino cujos constituintes perfeitamente se equilibrem para o exercício desta suprema função agrícola - dar a tarefa marcada.
Fazendeiros há, de tanta sagacidade no arranjo destas delicadas equações da aritmética rural, que , possuindo no eito, entre peças de lei (do preço de 2 a 3 contos) e velhos perrengues ( herdados da fazenda paterna) apanhadores que tiram por dia até 16 alqueires nos cafezais carregados, quando outros nem à força de relho chegam a atingir 3 ou 4 balaios; - entretanto, por meio da referida organização conjugal sabiamente exploradas, conseguem obter o equilíbrio do eito , do que resultam napreciáveis vantagens.
Bem hajas, prole maldita de Cham , que nos libertas , a nós que no cimo do Ararat soubemos pela sizudez dos nossos avós bíblicos conter o riso ante a descompostura vínica do papai Noé; bem hajas, prole bendita , que amassa o nosso pão com o suor do rosto.





Tecla é a mulata mais bonita da fazenda. Sob os seus precoces treze anos borbulha o ardente sangue mestiço, inflando-lhes as veias que serpenteiam túmidas debaixo da pele acobreada, pubescente, de tons quentes como os do gerivá, verdoengo. - “Flor de cafeeiro”, deve ser colhida pelo melhor apanhador de todo o eito.
Pedro Gobá, de Olinda, veio num comboio escolhido a dedo, de gente de primeira ordem. Moço atlético, retinto, forte e dócil, é a melhor peça dentre toda a escravatura. Para tocar uma enchada, cantando uma cantilena triste, morro acima, num eito de mato bravo, ninguém como ele !
No manejo da foice, à roçada de um guaixumal de pasto velho, nem o Peroba o acompanha : e , entretanto era Peroba o melhor crioulo da redondeza, antes de aparecer o Gobá.
Naquele dia inicial da colheita, Tecla - a flor do cafeeiro, bonita e indolente na exuberante precocidade dos seus treze anos, foi escolhida por Gobá, o tarefeiro , rei da negrada.
Casou-os o Balbino, velho africano feiticeiro e manhoso, puxador do Terço, que exercia na fazenda um arremedo de funções sacerdotais.
Era ele quem paramentado com uma sobrepeliz por cima de uma batina de seda - feita de um dominó carnavalesco que lhe dera o senhor moço estudante em São Paulo - casava os parceiros, todos os anos , em véspera da colheita, no oratório da Fazenda, perante um Cristo envergonhado da sua impotência para aliviar a miséria da raça negra maldita, condenada pelo Padre Eterno da legenda bíblica a eternamente trabalhar em benefício nosso, dos que temos pais
fazendeiros e contamos por avós históricos - Sem e Jafet.
Tecla, confiada no esforço dedicado do marido, acompanhava-o entre os arruados dos cafeeiros, toda atenta a resguardar dos galhos secos o seu vestido de chita, por que se não rasgasse; e esquecida da tarefa , ia cantarolando, eito acima , a mesma toada triste da cantiga do marido.
Gobá excedia-se de diligência para colher a tarefa sua e da mulher.
Ao largar o serviço à noitinha , contou as chapas que o feitor lhe dera a cada balaio de café levado ao monte : eram 15 . Depois contou as da Tecla : eram 3. Faltavam duas para inteirar a tarefa da companheira : e o senhor bem lhes havia avisado :

- “O que faltar para 10 , uma dúzia de relho por alqueire ! ...”

À noite , na forma , recebiam-se as chapas da tarefa. Dois moleques, nas extremidades da fila , suspendiam ao ar tachos de taquaraseca em labaredas.
A negrura daquela mísera gente , ao clarão do fogo, mais negra ainda se tornava Cabisbaixos, mudos, iam entregando os discosinhos de Flandres, à proporção que o Maurício os tomava , passando-os depois , para verificação, ao feitor do terreiro. Sob o alpendre da casa, a família dos brancos assistia curiosa contagem :João Cassange , 10.Pedro Creoulo, 12.Nazário, 11.Tecla , 8.
E o Maurício , feitor prático , tomando o seu grande relho de couro trançado , intimou :Tecla fora de forma.
Era o primeiro castigo por falta de tarefa , crime imperdoável na alta justiça dos fazendeiros.
Tremendo, a mulata , “flor de cafeeiro”, mimosa no abrolhar dos seus treze anos, saiu para a frente da fila, quedou-se imóvel, erguendo os braços para que o relho vibrado a dois pulsos pudesse enlaçar-lhe num cíngulo de dor o torso flexível e esbelto de mestiça nova. Mas antes que a primeira relhada caisse sobre a carne trêmula daquela criança apenas revestida no busto pelo fino morim da sua camisa de noivado, Pedro Gobá interpõe-se , e se ajoelha . - Sinhô ! murmura comovido , com as mãos postas em súplica, voltado para a família dos brancos o rosto sempre risonho, agora crispado pelas contrações da angústia. Sinhô ! repete mais trêmulo ainda.

- Que é lá, negro ? brada o fazendeiro irado ante aquele ato de indisciplina.
-
- Sinhô , eu quero apanhar por minha mulher !
-
- Ah ! negro você conta histórias !...



Mas antes que ninguém tivesse tempo de mover-se , dominados todos pela surpresa daquela cena , Gobá , o Pernambucano de raça, altivo e nobre no íntimo da sua alma admirável , debalde abafada desde o berço pela dominação dos senhores; Gobá , a flor da escravatura, manso e bom , subitamente transformado em homem pelo irresistível impulso da nobreza inata , arranca da faca e crava-a no coração da mulher.
Depois , enquanto ela tomba inanimada, ele , placidamente, fitando com um ar de asco a família atônita dos brancos , placidamente crava a faca ainda rubra e quente no seu próprio coração.






Autor: Ezequiel Freire
Produção Visual: Carlos Cunha
















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