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Contos-->A ESCRAVA ISAURA / Bernardo Guimarães ( obra completa ) -- 03/10/2009 - 10:06 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




















Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites





A ESCRAVA ISAURA

( Bernardo Guimarães )


Capítulo 1

Era nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II.
No fértil e opulento município de Campos de Goitacases, à margem
do Paraíba, a pouca distância da vila de Campos, havia uma linda
e magnífica fazenda.
Era um edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso,
situado em aprazível vargedo ao sopé de elevadas colinas cobertas
de mata em parte devastada pelo machado do lavrador. Longe em
derredor a natureza ostentava‑se ainda em toda a sua primitiva e selvática
rudeza; mas por perto, em torno da deliciosa vivenda, a mão do
homem tinha convertido a bronca selva, que cobria o solo, em jardins e
pomares deleitosos, em gramais e pingues pastagens, sombreadas aqui
e acolá por gameleiras gigantescas, perobas, cedros e copaíbas, que
atestavam o vigor da antiga floresta. Quase não se via aí muro, cerca,
nem valado; jardim, horta, pomar, pastagens, e plantios circunvizinhos
eram divididos por viçosas e verdejantes sebes de bambus, piteiras,
espinheiros e gravatás, que davam ao todo o aspecto do mais aprazível e
delicioso vergel.
A casa apresentava a frente às colinas. Entrava‑se nela por um
lindo alpendre todo enredado de flores trepadeiras, ao qual subia‑se por
uma escada de cantaria de seis a sete degraus. Os fundos eram ocupados
por outros edifícios acessórios, senzalas, pátios, currais e celeiros, por
trás dos quais se estendia o jardim, a horta, e um imenso pomar, que ia
perder‑se na barranca do grande rio.
Era por uma linda e calmosa tarde de outubro. O Sol não era
ainda posto, e parecia boiar no horizonte suspenso sobre rolos de espuma
de cores cambiantes orlados de fêveras de ouro. A viração saturada de
balsâmicos eflúvios se espreguiçava ao longo das ribanceiras
acordando apenas frouxos rumores pela copa dos arvoredos, e fazendo
farfalhar de leve o tope dos coqueiros, que miravam‑se garbosos nas
lúcidas e tranqüilas águas da ribeira.
Corria um belo tempo; a vegetação reanimada por moderadas
chuvas ostentava‑se fresca, viçosa e luxuriante; a água do rio ainda não
turvada pelas grandes enchentes, rolando com majestosa lentidão, refletia
em toda a pureza os esplêndidos coloridos do horizonte, e o nítido
verdor das selvosas ribanceiras. As aves, dando repouso ás asas
fatigadas do contínuo voejar pelos pomares, prados e balsedos vizinhos,
começavam a preludiar seus cantos vespertinos.
O clarão do Sol poente por tal sorte abraseava as vidraças do
edifício, que esse parecia estar sendo devorado pelas chamas de um
incêndio interior. Entretanto, quer no interior, quer em derredor, reinava
fundo silêncio, e perfeita tranqüilidade. Bois truculentos, e médias novilhas
deitadas pelo gramal, ruminavam tranqüilamente à sombra de
altos troncos. As aves domésticas grazinavam em tomo da casa, balavam
as ovelhas, e mugiam algumas vacas, que vinham por si mesmas procurando
os currais; mas não se ouvia, nem se divisava voz nem figura
humana. Parecia que ali não se achava morador algum. Somente as
vidraças arregaçadas de um grande salão da frente e os batentes da
porta da entrada, abertos de par em par, denunciavam que nem todos
os habitantes daquela suntuosa propriedade se achavam ausentes.
A favor desse quase silêncio harmonioso da natureza ouvia‑se
distintamente o arpejo de um piano casando‑se a uma voz de mulher, voz
melodiosa, suave, apaixonada, e do timbre o mais puro e fresco
que se pode imaginar.
Posto que um tanto abafado, o canto tinha uma vibração sonora,
ampla e volumosa, que revelava excelente e vigorosa organização vocal.
O tom velado e melancólico da cantiga parecia gemido sufocado de
uma alma solitária e sofredora.
Era essa a única voz que quebrava o silêncio da vasta e tranqüila
vivenda. Por fora tudo parecia escutá‑la em místico e profundo recolhimento.
As coplas, que cantava, diziam assim:

Desd`o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como semente lançada
Em terra de maldição,
A vida passo chorando
Minha triste condição.

Os meus braços estão presos,
A ninguém posso abraçar,
Nem meus lábios, nem meus olhos
Não podem de amor falar;
Deu‑me Deus um coração
Somente para penar.

Ao ar livre das campinas
Seu perfume exala a flor;
Canta a aura em liberdade
Do bosque o alado cantor;
Só para a pobre cativa
Não há canções, nem amor.

Cala‑te, pobre cativa;
Teus queixumes crimes são;
E uma afronta esse canto,
Que exprime tua aflição.
A vida não te pertence,
Não é teu teu coração.

As notas sentidas e maviosas daquele cantar escapando pelas
janelas abertas e ecoando ao longe em derredor, dão vontade de conhecer
a sereia que tão lindamente canta. Se não é sereia, somente um anjo
pode cantar assim.
Subamos os degraus, que conduzem ao alpendre, todo engrinaldado
de viçosos festões e lindas flores, que serve de vestíbulo ao edifício.
Entremos sem cerimônia. Logo à direita do corredor encontramos
aberta uma larga porta, que dá entrada à sala de recepção, vasta e
luxuosamente mobiliada. Acha‑se ali sozinha e sentada ao piano uma
bela e nobre figura de moça. As linhas do perfil desenham‑se
distintamente entre o ébano da caixa do piano, e as bastas madeixas ainda
mais negras do que ele. São tão puras e suaves essas linhas, que fascinam
os olhos, enlevam a mente, e paralisam toda análise. A tez é como
o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma
nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor‑de‑rosa
desmaiada. O colo donoso e do mais puro lavor sustenta com graça
inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados
se despenham caracolando pelos ombros em espessos e luzidios rolos, e
como franjas negras escondiam quase completamente o dorso da
cadeira, a que se achava recostada. Na fronte calma e lisa como mármore
polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di‑la‑íeis misteriosa
lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração.
Tinha a face voltada para as janelas, e o olhar vago pairavalhe pelo espaço.
Os encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza,
e diremos quase pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinária
azul‑clara desenhava‑lhe perfeitamente com encantadora simplicidade o
porte esbelto e a cintura delicada, e desdobrando‑se‑lhe em roda amplas
ondulações parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia
a cantora como Vênus nascendo da espuma do mar, ou como um
anjo surgindo dentre brumas vaporosas. Uma pequena cruz de azeviche
presa ao pescoço por uma fita preta constituía o seu único ornamento.
Apenas terminado o canto, a moça ficou um momento a cismar
com os dedos sobre o teclado como escutando os derradeiros ecos da
sua canção.
Entretanto abre‑se sutilmente a cortina de cassa de uma das portas
interiores, e uma nova personagem penetra no salão. Era também uma
formosa dama ainda no viço da mocidade, bonita, bem feita e elegante.
A riqueza e o primoroso esmero do trajar, o porte altivo e senhoril,
certo balanceio afetado e langoroso dos movimentos davam‑lhe esse ar
pretensioso, que acompanha toda moça bonita e rica, ainda mesmo
quando está sozinha. Mas com todo esse luxo e donaire de grande senhora
nem por isso sua grande beleza deixava de ficar algum tanto
eclipsada em presença das formas puras e corretas, da nobre singeleza,
e dos tão naturais e modestos ademanes da cantora. Todavia Malvina
era linda, encantadora mesmo, e posto que vaidosa de sua formosura e
alta posição, transluzia‑lhe nos grandes e meigos olhos azuis toda a
nativa bondade de seu coração.
Malvina aproximou‑se de manso e sem ser pressentida para junto
da cantora, colocando‑se por detrás dela esperou que terminasse a
última copia.

- Isaura!... disse ela pousando de leve a delicada mãozinha sobre
o ombro da cantora.

- Ah! é a senhora?! - respondeu Isaura voltando‑se sobressaltada.

- Não sabia que estava aí me escutando.

- Pois que tem isso?.., continua a cantar... tens a voz tão bonita!...
mas eu antes quisera que cantasses outra coisa; por que é que você gosta
tanto dessa cantiga tão triste, que você aprendeu não sei onde?...

- Gosto dela, porque acho‑a bonita e porque... ah! não devo falar...

- Fala, Isaura. Já não te disse que nada me deves esconder, e nada
recear de mim?...

- Porque me faz lembrar de minha mãe, que eu não conheci,
coitada!... Mas se a senhora não gosta dessa cantiga, não a cantarei mais.

- Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar que és
maltratada, que és uma escrava infeliz, vítima de senhores bárbaros e
cruéis. Entretanto passas aqui uma vida que faria inveja a muita gente
livre. Gozas da estima de teus senhores. Deram‑te uma educação, como
não tiveram muitas ricas e ilustres damas que eu conheço. És formosa,
e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só
gota de sangue africano. Bem sabes quanto minha boa sogra antes de
expirar te recomendava a mim e a meu marido. Hei de respeitar sempre
as recomendações daquela santa mulher, e tu bem vês, sou mais tua
amiga do que tua senhora. Oh! não; não cabe em tua boca essa cantiga
lastimosa, que tanto gostas de cantar. - Não quero, - continuou em
tom de branda repreensão, - não quero que a cantes mais, ouviste,
Isaura?... se não, fecho‑te o meu piano.

- Mas, senhora, apesar de tudo isso, que sou eu mais do que
uma simples escrava? Essa educação, que me deram, e essa beleza, que
tanto me gabam, de que me servem?... são trastes de luxo colocados na
senzala do africano. A senzala nem por isso deixa de ser o que é: uma
senzala.

- Queixas‑te da tua sorte, Isaura?...

- Eu não, senhora; não tenho motivo... o que quero dizer com
isto é que, apesar de todos esses dotes e vantagens, que me atribuem,
sei conhecer o meu lugar.

- Anda lá; já sei o que te amofina; a tua cantiga bem o diz. Bonita
como és, não podes deixar de ter algum namorado.

- Eu, senhora!... por quem é, não pense nisso.

- Tu mesma; pois que tem isso?... não te vexes; pois é alguma
coisa do outro mundo? Vamos já, confessa; tens um amante, e é por
isso que lamentas não teres nascido livre para poder amar aquele que te
agradou, e a quem caíste em graça, não é assim?...

- Perdoe‑me, sinhá Malvina; - replicou a escrava com um cândido
sorriso. - Está muito enganada; estou tão longe de pensar nisso!

- Qual longe!... não me enganas, minha rapariguinha!... tu amas,
e és mui linda e bem prendada para te inclinares a um escravo; só se
fosse um escravo, como tu és, o que duvido que haja no mundo. Uma
menina como tu, bem pode conquistar o amor de algum guapo mocetão,
e eis aí a causa da choradeira de tua canção. Mas não te aflijas,
minha Isaura; eu te protesto que amanhã mesmo terás a tua liberdade;
deixa Leôncio chegar; é uma vergonha que uma rapariga como tu se
veja ainda na condição de escrava.

- Deixe‑se disso, senhora; eu não penso em amores e muito menos
em liberdade; às vezes fico triste à toa, sem motivo nenhum...

- Não importa. Sou eu quem quero que sejas livre, e hás de sê‑lo.

Neste ponto a conversação foi cortada por um tropel de cavaleiros,
que chegavam e apeavam‑se á porta da fazenda.
Malvina e Isaura correram à janela a ver quem eram.



Capitulo 2

Os cavaleiros, que acabavam de apear‑se, eram dois belos e ele‑
gantes mancebos, que chegavam da vila de Campos. Do modo familiar,
por que foram entrando, logo se depreendia que era gente de casa.
De feito um era Leôncio, marido de Malvina; e outro Henrique,
irmão da mesma.
Antes de irmos adiante forçoso nos é travar conhecimento mais
íntimo com os dois jovens cavaleiros.
Leôncio era filho único do rico e magnífico comendador Almeida,
proprietário da bela e suntuosa fazenda em que nos achamos. O comendador,
já bastante idoso e cheio de enfermidades depois do casamento de seu filho,
que tivera lugar um ano antes da época em que começa esta história,
havia‑lhe abandonado a administração e usufruto da fazenda, e vivia na
corte, onde procurava alivio ou distração aos achaques que o atormentavam.
Leôncio achara desde a infância nas larguezas e facilidades de seus
pais amplos meios de corromper o coração e extraviar a inteligência.
Mau aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado, andou de
colégio em colégio, e passou como gato por brasas por cima de todos
os preparatórios, cujos exames todavia sempre salvara à sombra do patronato.
Os mestres não se atreviam a dar ao nobre e munífico comendador o desgosto
de ver seu filho reprovado. Matriculado na escola de medicina logo no primeiro
ano enjoou‑se daquela disciplina, e como seus pais não sabiam contrariá‑lo,
foi‑se para Olinda a fim de freqüentar o curso jurídico. Ali depois de ter dissipado
não pequena porção da fortuna paterna na satisfação de todos os seus vícios
e loucas fantasias, tomou tédio também aos estudos jurídicos, e ficou
entendendo que só na Europa poderia desenvolver dignamente a sua inteligência,
e saciar a sua sede de saber, em puros e abundantes mananciais. Assim
escreveu ao pai, que deu‑lhe crédito e o enviou a Paris, donde esperava
vê‑lo voltar feito um novo Humboldt. Instalado naquele vasto pandemônio
do luxo e dos prazeres, Leóncio raras vezes, e só por desfastio, ia ouvir
as eloqüentes preleções dos exímios professores da época, e nem tampouco
era visto nos museus, institutos e bibliotecas. Em compensação
era assíduo frequentador do Jardim Mabile, assim como de todos os
cafés e teatros mais em voga, e tomara‑se um dos mais afamados e
elegantes leões dos bulevares. No fim de alguns anos, ora de residência
em Paris, ora de giros recreativos pelas águas e pelas principais capitais
da Europa, tinha ele tão copiosa e desapiedadamente sangrado a bolsa
paterna, que o comendador a despeito de toda a sua condescendência
e ternura para com seu único e querido filho, viu‑se na necessidade de
revocá‑lo à sombra dos pátrios lares a fim de evitar uma completa ruína.
Mas, mesmo assim, para não magoá‑lo colhendo‑lhe súbita e rudemente
as rédeas na carreira dos desvarios e dissipações, assentou de
atraí‑lo suavemente acenando‑lhe com a perspectiva de um rico e
vantajosíssimo casamento.
Leôncio pegou na isca e voltou à pátria um perfeito dândi, gentil e
elegante como ninguém, trazendo de suas viagens, em vez de conhecimentos
e experiência, enorme dose de fatuidade e petulância e um tão
perfeito traquejo da alta sociedade, que o tomaríeis por um príncipe.
Mas o pior era que, se trazia o cérebro vazio, voltava com a alma
corrompida e o coração estragado por hábitos de devassidão e libertinagem.
Alguns bons e generosos instintos, de que o dotara a natureza,
haviam‑se apagado em seu coração ao roçar de péssimas doutrinas
confirmadas por exemplos ainda piores.
De volta da Europa, Leóncio contava vinte e cinco anos. O pai
advertiu‑lhe com palavras insinuantes e jeitosas, que já era tempo de
empregar‑se em alguma coisa, de abraçar alguma carreira; que já se
tinha aproveitado da bolsa paterna mais do que era preciso para sua
educação, e que era mister ir aprendendo se não a aumentar, ao menos
a conservar uma fortuna, à testa da qual teria de achar‑se mais tarde ou
mais cedo. Depois de muita hesitação, Leôncio optou enfim pela
carreira do comércio que lhe pareceu ser a mais independente e segura de
todas; mas as suas idéias largas e audaciosas a este respeito aterraram o
bom do comendador. O comércio de importação e exportação de
gêneros, mesmo em larga escala, o próprio tráfego de africanos, lhe
pareciam especulações degradantes e impróprias de sua alta posição
e esmerada educação. O negócio de balcão e a retalho, esse inspirava‑lhe asco
e compaixão. Só lhe convinham as altas especulações cambiais,
as operações bancárias e transações em que jogasse com avultados capitais.
Só assim poderia duplicar em pouco tempo a fortuna patema. Com o
que tinha observado na Bolsa de Paris e em outras praças européias,
presumia‑se com habilitação bastante para dirigir as operações do mais
importante estabelecimento bancário, ou as mais grandiosas empresas
industriais.
O pai porém não se animou a confiar sua fortuna aos azares
especulativos daquele financeiro em botão, e que até ali só tinha dado provas
de grande talento para consumir, em pouco tempo e em pura
perda, somas consideráveis. Resolveu portanto a não tocar‑lhe mais
naquele assunto, esperando que o mancebo criasse mais algum juízo.
Vendo que seu pai esquecia‑se completamente dos planos de
criar-lhe um pecúlio próprio, Leôncio olhou para o casamento como o meio
suave e natural de adquirir fortuna, como a única carreira que se lhe
oferecia para ter dinheiro a esbanjar a seu bel‑prazer.
Malvina, a formosa filha de um riquíssimo negociante da corte,
amigo do comendador, já estava destinada a Leôncio por comum
acordo e aquiescência dos pais de ambos. A família do comendador foi
à corte; os moços viram‑se, amaram‑se e casaram; foi coisa de poucos
dias. Pouco tempo depois de seu casamento Leôncio passou pelo
desgosto de perder sua mãe por um golpe inesperado. Esta boa e
respeitável senhora não tinha sido muito feliz nas relações da vida íntima com
seu marido, que, como homem de coração árido e frio, desconhecia as
santas e puras delícias da afeição conjugal, e com suas libertinagens e
devassidões dilacerava cotidianamente o coração de sua esposa. Para
cúmulo de males linha ela perdido ainda na infância todos os seus filhos,
ficando‑lhe só Leôncio. Lastimava‑se principalmente por não ter-lhe
deixado o céu ao menos uma filha, que lhe servisse de companhia e
consolação em sua desolada velhice. Quis entretanto a sorte deparar‑lhe
em sua própria casa uma tal ou qual compensação a seus infortúnios
em uma frágil criatura, que veio de alguma sorte encher o vácuo que
sentia em seu bondoso e terno coração, e tornar menos triste e solitário
o lar, em que passava os dias tão monótonos e enfadonhos.
Havia nascido em casa uma escravinha, que desde o berço atraiu
por sua graça, gentileza e vivacidade toda a atenção e solicitude da boa
velha.
Isaura era filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a
mucama favorita e a criada fiel da esposa do comendador. Este, que
como homem libidinoso e sem escrúpulos olhava as escravas como um
serralho à sua disposição, lançou olhos cobiçosos e ardentes de lascívia
sobre a gentil mucama. Por muito tempo resistiu ela ás suas brutais
solicitações; mas por fim teve de ceder às ameaças e violências. Tão
torpe e bárbaro procedimento não pôde por muito tempo ficar oculto
aos olhos de sua virtuosa esposa, que com isso concebeu mortal desgosto.
Acabrunhado por ela das mais violentas e amargas exprobrações, o
comendador não ousou mais empregar a violência contra a pobre
escrava, e nem tampouco conseguiu jamais por outro qualquer meio
superar a invencível repugnância que lhe inspirava. Enfureceu‑se com
tanta resistência, e deliberou em seu coração perverso vingar‑se da
maneira a mais bárbara e ignóbil, acabrunhando‑a de trabalhos e castigos.
Exilou‑a da sala, onde apenas desempenhava levianos e delicados
serviços, para a senzala e os fragueiros trabalhos da roça, recomendando
bem ao feitor que não lhe poupasse serviço nem castigo. O feitor,
porém, que era um bom português ainda no vigor dos anos, e que não
tinha as entranhas tão empedernidas como o seu patrão, seduzido pelos
encantos da mulata, em vez de trabalho e surras, só lhe dava carícias e
presentes, de maneira que daí a algum tempo a mulata deu à luz da
vida a gentil escravinha, de que falamos. Este fato veio exacerbar ainda
mais a sanha do comendador contra a mísera escrava. Expeliu com
impropérios e ameaças o bom e fiel feitor, e sujeitou a mulata a tão
rudes trabalhos e tão cruel tratamento, que em breve a precipitou no
túmulo, antes que pudesse acabar de criar sua tenra e mimosa filhinha.
Eis aí debaixo de que tristes auspícios nasceu a linda e infeliz
Isaura. Todavia, como para indenizá‑la de tamanha desventura, uma santa
mulher, um anjo de bondade, curvou‑se sobre o berço da pobre criança
e veio ampará‑la à sombra de suas asas caridosas. A mulher do comendador
considerou aquela tenra e formosa cria como um mimo, que o
céu lhe enviava para consolá‑la das angústias e dissabores, que
tragava em conseqüência dos torpes desmandos de seu devasso marido.
Levantou ao céu os olhos banhados em lágrimas, e jurou pela alma da
infeliz mulata encarregar‑se do futuro de Isaura. criá‑la e educá‑la,
como se fosse uma filha.
Assim o cumpriu com o mais religioso escrúpulo. À medida que a
menina foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi‑lhe ela
mesma ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde
procurou‑lhe também mestres de música, de dança, de italiano, de
francês, de desenho, comprou‑lhe livros, e empenhou‑se enfim em dar à
menina a mais esmerada e fina educação, como o faria para com uma filha
querida. Isaura, por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suas
graças e atrativos corporais, como pelos rápidos progressos de sua viva
e robusta inteligência, foi muito além das mais exageradas esperanças
da excelente velha, a qual em vista de tão felizes e brilhantes resultados,
cada vez mais se comprazia em lapidar e polir aquela jóia, que ela dizia
ser a pérola entrançada em seus cabelos brancos. - O céu não quis
dar‑me uma filha de minhas entranhas, - costumava ela dizer, - mas
em compensação deu‑me uma filha de minha alma.
O que porém mais era de admirar na interessante menina, é que
aquela predileção e extremosa solicitude de que era objeto, não a tornava
impertinente, vaidosa ou arrogante nem mesmo para com seus
parceiros de cativeiro. O mimo, com que era tratada, em nada lhe alterava
a natural bondade e candura do coração. Era sempre alegre e boa
com os escravos, dócil e submissa com os senhores.
O comendador não gostava nada do singular capricho de sua
esposa para com a mulatinha, capricho que qualificava de caduquice.

- Forte loucura! - costumava exclamar com acento de comiseração.

- Está ai se esmerando em criar uma formidável tafulona, que lá
pelo tempo adiante há de lhe dar água pela barba. As velhas, umas dão
para rezar, outras para ralhar desde a manhã até à noite, outras para
lavar cachorrinhos ou para criar pintos; esta deu para criar mulatinhas
princesas. É um divertimento um pouco mais dispendioso na verdade;
mas.., que lhe faça bom proveito; ao menos enquanto se entretém por
lá com o seu embeleco, poupa‑me uma boa dúzia de impertinentes e
rabugentos sermões... Lá se avenha!...

Poucos dias depois do casamento de Leôncio, o comendador, com
toda a família, inclusive os dois novos desposados, transportou‑se de
novo para a fazenda de Campos. Foi então que o comendador entregou
a seu filho toda a administração e usufruto daquela propriedade,
com toda a escravatura e mais acessórios nela existentes, declarando‑lhe
que achando‑se já bastante velho, enfermo e cansado, queria passar
tranqüilamente o resto de seus dias livre de afazeres e preocupações,
para o que bastavam‑lhe com sobejidão as rendas que para si
reservava. Feita em vida esta magnífica dotação a seu filho, retirou‑se para a
corte. Sua esposa porém preferiu ficar em companhia do filho, o que foi
muito do gosto e aprovação do marido.
Malvina, que apesar da sua vaidade aristocrática tinha alma cândida
e boa, e um coração bem formado, não pôde deixar de conceber logo
desde o principio o mais vivo interesse e terna afeição pela cativa Isaura.
Era esta com efeito de índole tão bondosa e fagueira, tão dócil, modesta e submissa,
que apesar de sua grande beleza e incontestáveis dotes de espírito, conquistava
logo ao primeiro encontro a benevolência de todos.
Isaura tornou‑se imediatamente, não direi a mucama favorita, mas
a fiel companheira, a amiga de Malvina que, afeita aos prazeres
e passatempos da corte, muito folgou de encontrar tão boa e amável
companhia na solidão que ia habitar.

- Por que razão não libertam esta menina? - dizia ela um dia à
sua sogra. - Uma tão boa e interessante criatura não nasceu para ser escrava.

- Tem razão, minha filha, - respondeu bondosamente a velha;
- mas que quer você?... não tenho ânimo de soltar este passarinho
que o céu me deu para me consolar e tornar mais suportáveis as
pesadas e compridas horas da velhice.

E também libertá‑la para quê? Ela aqui é livre, mais livre do
que eu mesma, coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nem
forças para gozar da liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? e
se ela transviar‑se por aí, e nunca mais acertar com a porta da gaiola?... Não,
não, minha filha; enquanto eu for viva, quero tê‑la sempre bem
pertinho de mim, quero que seja minha, e minha só. Você há de estar
dizendo lá consigo - forte egoísmo de velha! - mas também eu já
poucos dias terei de vida; o sacrifício não será grande. Por minha morte
ficará livre, e eu terei o cuidado de deixar‑lhe um bom legado.
De feito, a boa velha tentou por diversas vezes escrever seu
testamento a fim de garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida
pupila; mas o comendador, auxiliado por seu filho com delongas
e fúteis pretextos, conseguia ir sempre adiando a satisfação do louvável e
santo desejo de sua esposa, até o dia em que, fulminada por um ataque
de paralisia geral, ela sucumbiu em poucas horas sem ter tido um só
momento de lucidez e reanimação para expressar sua última vontade.
Malvina jurou sobre o cadáver de sua sogra continuar para com a
infeliz escrava a mesma proteção e solicitude que a defunta lhe havia
prodigalizado. Isaura pranteou por muito tempo a morte daquela que
havia sido para ela mãe desvelada e carinhosa; e continuou a ser escrava
não já de uma boa e virtuosa senhora, mas de senhores caprichosos,
devassos e cruéis.



Capitulo 3

Falta‑nos ainda conhecer mais de perto a Henrique, o cunhado de
Leôncio. Era ele um elegante e bonito rapaz de vinte anos, frívolo, estouvado
e vaidoso, como são quase sempre todos os jovens, mormente
quando lhes coube a ventura de terem nascido de um pai rico. Não
obstante esses ligeiros senões, tinha bom coração e bastante dignidade e
nobreza de alma. Era estudante de medicina, e como estava‑se em
férias, Leôncio o convidara a vir visitar a irmã e passar alguns dias em sua
fazenda.
Os dois mancebos chegavam de Campos, onde Leôncio desde a
véspera linha ido ao encontro do cunhado.
Só depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e breves
estadas fizera na casa paterna, começou a prestar atenção à extrema
beleza e às graças incomparáveis de Isaura. Posto que lhe coubesse em
sorte uma linda e excelente mulher, ele não se havia casado por amor,
sentimento esse a que seu coração até ali parecia absolutamente
estranho. Casara‑se por especulação, e como sua mulher era moça e bonita,
sentira apenas por ela paixão, que se ceva no gozo dos prazeres
sensuais, e com eles se extingue. Estava reservado à infeliz Isaura fazer
vibrar profunda e violentamente naquele coração as fibras que
ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da devassidão.
Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia
crescendo na razão direta dos sérios e poderosos obstáculos que
encontrava, obstáculos a que não estava afeito, e que em vão se esforçava
para superar. Mas nem por isso desistia de sua tresloucada empresa, porque em
fim de contas, - pensava ele, - Isaura era propriedade sua, e quando
nenhum outro meio fosse eficaz, restava‑lhe o emprego da violência.
Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal
devassidão do comendador.
Pelo caminho, como sua mente andava sempre cheia da imagem
de Isaura, Leôncio conversara longamente com seu cunhado a respeito
dela, exaltando‑lhe a beleza, e deixando transluzir com revoltante cinismo
as lascivas intenções que abrigava no coração. Esta conversação
não agradava muito a Henrique, que às vezes corava de pejo e de
indignação por sua irmã, mas não deixou de excitar‑lhe viva curiosidade
de conhecer uma escrava de tão extraordinária beleza.
No dia seguinte ao da chegada dos mancebos às oito horas da
manhã, Isaura, que acabava de espanejar os móveis e arranjar o salão,
achava‑se sentada junto a uma janela e entrelinha‑se a bordar, à espera
que seus senhores se levantassem para servir‑lhes o café. Leôncio e
Henrique não tardaram em aparecer, e parando à porta do salão
puseram‑se a contemplar Isaura, que sem se aperceber da presença
deles continuava a bordar distraidamente.
- Então, que te parece? segredava Leôncio a seu cunhado. -
Uma escrava desta ordem não é um tesouro inapreciável? Quem não
diria que uma andaluza de Cádiz, ou uma napolitana?...

- Não é nada disso; mas é coisa melhor, respondeu Henrique
maravilhado; é uma perfeita brasileira.

- Qual brasileira! é superior a tudo quanto há. Aqueles encantos
e aquelas dezessete primaveras em uma moça livre, teriam feito virar o
juízo a muita gente boa. Tua irmã pretende com instância, que eu a
liberte, alegando que essa era a vontade de minha defunta mãe; mas
nem tão tolo sou eu, que me desfaça assim sem mais nem menos de
uma jóia tão preciosa. Se minha mãe teve o capricho de criá‑la com
todo o mimo e de dar‑lhe uma primorosa educação, não foi decerto
para abandoná‑la ao mundo, não achas?... Também meu pai parece
que cedeu às instâncias do pai dela, que é um pobre galego, que por ai
anda, e que pretende libertá‑la; mas o velho pede por ela tão
exorbitante soma, que julgo nada dever recear por esse lado. Vê lá,
Henrique, se há nada que pague uma escrava assim?...

- É com efeito encantadora - replicou o moço, - se estivesse
no serralho do sultão, seria sua odalisca favorita. Mas devo notar‑te,
Leôncio, - continuou, cravando no cunhado um olhar cheio de
maliciosa penetração, - como teu amigo e como irmão de tua mulher,
que o teres em tua sala e ao lado de minha irmã uma escrava tão
linda e tão bem tratada não deixa de ser inconveniente e talvez
perigoso para a tranqüilidade doméstica...

- Bravo! - atalhou Leôncio, galhofando, - para a idade que
tens, já estás um moralista de polpa!... mas não te dê isso cuidado, meu
menino; tua irmã não tem dessas veleidades, e é ela mesma quem mais
gosta de que Isaura seja vista e admirada por todos. E tem razão; Isaura
é como um traste de luxo, que deve estar sempre exposto no salão.
Querias que eu mandasse para a cozinha os meus espelhos de Veneza?...

Malvina, que vinha do interior da casa, risonha, fresca e alegre
como uma manhã de abril, veio interromper‑lhes a conversação.

- Bom dia, senhores preguiçosos! - disse ela com voz argentina
e festiva como o trino da andorinha. - Até que enfim sempre se levantaram!

- Estás hoje muito alegre, minha querida, - retorquiu‑lhe sor‑
rindo o marido; - viste algum passarinho verde de bico dourado?...

- Não vi, mas hei de ver; estou alegre mesmo, e quero que hoje
aqui em casa seja um dia de festa para todos. Isto depende de ti, Leôncio,
e estava aflita por te ver de pé; quero dizer‑te uma coisa; já devia
tê‑la dito ontem, mas o prazer de ver este ingrato de irmão, que há
tanto tempo não vejo, me fez esquecer...

- Mas o que é?... fala, Malvina.

- Não te lembras de uma promessa, que sempre me fazes,
promessa sagrada, que há muito tempo devia ter sido cumprida?... hoje
quero absolutamente, exijo, o seu cumprimento.

- Deveras?.., mas que promessa?... não me lembro.

- Ah! como te fazes de esquecido!... não te lembras, que me
prometeste dar liberdade a...

- Ah! já sei, já sei; - atalhou Leôncio com impaciência. - Mas
tratar disso aqui agora? em presença dela?... que necessidade há
de que nos ouça?

- E que mal faz isso? mas seja como quiseres, - replicou a moça
tomando a mão de Leôncio e levando‑o para o interior da casa; -
vamos cá para dentro. Henrique, espera aí um momento, enquanto eu
vou mandar preparar‑nos o café.

Só depois da chegada de Malvina, Isaura deu pela presença dos
dois mancebos, que a certa distância a contemplavam cochichando a
respeito dela. Também pouco ouviu ela e nada compreendeu do rápido
diálogo que tivera lugar entre Malvina e seu marido. Apenas estes se
retiraram ela também se levantou e ia sair, mas Henrique, que ficara só,
a deteve com um gesto.

- Que me quer, senhor? - disse ela baixando os olhos com humildade.

- Espera ai, menina; tenho alguma coisa a dizer‑te, - replicou o
moço, e sem dizer mais nada colocou‑se diante dela devorando‑a com
os olhos, e como extático contemplando‑lhe a maravilhosa beleza.
Henrique sentia‑se acanhado diante daquela nobre figura radiante de beleza,
e de angélica serenidade. Por seu lado Isaura também olhava para o
moço, atônita e tolhida, esperando em vão que lhe dissesse o que
queria. Por fim Henrique, afoito, e estouvado como era, lembrando‑se que
Isaura, a despeito de toda a sua formosura, não passava de uma
escrava, entendeu que fazia um ridículo papel, deixando‑se ali ficar diante
dela em muda e extática contemplação, e chegando‑se a ela com todo
o desembaraço e petulância travou‑lhe da mão, e...

- Mulatinha, disse, - tu não fazes idéia de quanto és feiticeira.
Minha irmã tem razão; é pena que uma menina assim tão linda não seja
mais que uma escrava. Se tivesses nascido livre, serias incontestavelmente
a rainha dos salões.

- Está bem, senhor, está bem! replicou Isaura soltando‑se da mão
de Henrique; se é só isso o que tinha a dizer‑me, deixe‑me ir embora.

- Espera ainda um pouco; não sejas assim má; eu não te quero
fazer mal algum. Oh! quanto eu daria para obter a tua liberdade, se
com ela pudesse obter também o teu amor!... És muito mimosa e muito
linda para ficares por muito tempo no cativeiro; alguém impreterivelmente
virá arrancar‑te dele, e se hás de cair nas mãos de algum desconhecido,
que não saberá dar‑te o devido apreço, seja eu, minha Isaura, seja o irmão
de tua senhora, que de escrava te haja de fazer uma princesa...

- Ah! senhor Henrique! retorquiu a menina com enfado; - o
senhor não se peja de dirigir esses galanteios a uma escrava de sua
irmã? isso não lhe fica bem; há por aí tanta moça bonita, a quem o
senhor pode fazer a corte...

- Não; ainda não vi nenhuma que te iguale, Isaura, eu te juro.
Olha, Isaura; ninguém mais do que eu está nas circunstâncias de
conseguir a tua liberdade; sou capaz de obrigar Leôncio a te libertar,
porque, se me não engano, já lhe adivinhei os planos e as intenções, e
protesto‑te que hei de burlá‑los todos; é uma infâmia em que não posso
consentir. Além da liberdade terás tudo o que desejares, sedas, jóias,
carros, escravos para te servirem, e acharás em mim um amante
extremoso, que sempre te há de querer, e nunca te trocará por quanta
moça há por esse mundo, por bonita e rica que seja, porque tu só
vales mais que todas elas juntas.

- Meu Deus! - exclamou Isaura com um ligeiro tom de mofa; -
tanta grandeza me aterra; isso faria virar‑me o juízo. Nada, meu senhor;
guarde suas grandezas para quem melhor as merecer; eu por ora estou
contente com a minha sorte.

- Isaura!... para que tanta crueldade!... escuta, - disse o moço
lançando o braço ao pescoço de Isaura.

- Senhor Henrique! - gritou ela esquivando‑se ao abraço, -
por quem é, deixe‑me em paz!

- Por piedade, Isaura! - insistiu o rapaz continuando a querer
abraçá‑la; - oh!... não fales tão alto!... um beijo... um beijo só, e já te
deixo...

- Se o senhor continua, eu grito mais alto. Não posso aqui trabalhar
um momento, que não me venham perturbar com declarações que
não devo escutar...

- Oh! como está altaneira! - exclamou Henrique, já um tanto
agastado com tanta resistência. - Não lhe falta nada!... tem até os ares
desdenhosos de uma grande senhora!... não te arrufes assim, minha
princesa...

- Arre lá, senhor! - bradou a escrava já no auge da impaciência.
- Já não bastava o senhor Leôncio!... agora vem o senhor também...

- Como?... que estás dizendo?... também Leôncio?... oh!... oh!
bem o coração me estava adivinhando!... que infâmia!... mas decerto tu
o escutas com menos impaciência, não é assim?

- Tanto como escuto ao senhor.

- Não duvido Isaura; a lealdade, que deves a tua senhora, que
tanto te estima, não te permite que dês ouvidos àquele perverso. Mas
comigo o caso é diferente; que motivo há para seres cruel assim?

- Eu cruel para com meus senhores!!! Ora, senhor, pelo amor de
Deus!... Não esteja assim a escarnecer de uma pobre cativa.

- Não! não escarneço... Isaura!... escuta, - exclamava Henrique
forcejando para abraçá‑la e furtar‑lhe um beijo.

- Bravo!... bravíssimo! - retumbou pelo salão uma voz acompanhada
de sardônica e estrepitosa gargalhada.

Henrique voltou‑se sobressaltado. Toda a sua amorosa exaltação
tinha‑se‑lhe gelado de súbito no âmago do coração.
Leôncio estava em pé no meio da porta, de braços cruzados e
olhando para ele com sorriso do mais insultante escárnio.

- Bravo! muito bem, senhor meu cunhado! - continuou Leôncio
no mesmo tom de mofa. - Está pondo em prática belissimamente as
suas lições de moral!... requestando‑me as escravas!... está galante!...
sabe respeitar divinamente a casa de sua irmã!...

- Ah! maldito importuno! murmurou Henrique, trincando os
dentes de cólera, e seu primeiro impulso foi investir de punho fechado, e
responder com cachações aos insolentes sarcasmos do cunhado.

Refletindo porém um momento, sentiu que lhe seria mais vantajoso
empregar contra o seu agressor a mesma arma de que se servira contra ele, o
sarcasmo, que as circunstâncias lhe permitiam vibrar de modo vitorioso
e decisivo. Acalmou‑se, pois, e com sorriso de soberano desdém:

- Ah! perdão, meu cunhado! - disse ele não sabia que a
peregrina jóia do seu salão lhe merecesse tanto cuidado, que o levasse
a ponto de andá‑la espionando; creio que tem mais zelo por ela do que
mesmo pelo respeito que se deve à sua casa e à sua mulher. Pobre de
minha irmã!... é bem simples, e admira que, há mais tempo, não tenha
conhecido o belo marido que possui!...

- O que estás dizendo, rapaz? - bradou Leôncio com gesto
ameaçador; - repete; que estás dizendo?

- O mesmo que o senhor acaba de ouvir, - redargüiu Henrique
com firmeza, - e fique certo que o seu indigno procedimento não há
de ficar por muito tempo oculto à minha irmã.

- Qual procedimento!? tu deliras, Henrique?...

- Faça‑se de esquerdo!... pensa que não sei tudo?... enfim.
adeus, senhor Leôncio: eu me retiro, porque seria altamente
inconveniente, indigno e ridículo da minha parte estar a disputar com
o senhor por amor de uma escrava.

- Espera, Henrique... escuta...

- Não, não; não tenho negócio nenhum com o senhor. Adeus! -
disse e retirou‑se precipitadamente.

Leôncio sentiu‑se esmagado, e arrependeu‑se mil e uma vezes de
ter provocado tão imprudentemente aquele leviano e estouvado rapaz.
Ignorava que seu cunhado estivesse ao fato da paixão que sentia por
Isaura, e dos esforços que empregava para vencer‑lhe a isenção e lograr
seus favores. verdade que lhe havia falado sem muito rebuço a esse
respeito; mas algumas palavras ditas entre rapazes, em tom de mera
chocarrice, não constituíam base suficiente para que sobre ela Henrique
pudesse articular uma acusação contra ele em face de sua mulher.
Decerto a rapariga lhe havia revelado alguma coisa, e isto o fazia espumar
de despeito e raiva contra um e outra. Bem pouco lhe importava a
perturbação da paz doméstica, o que o enfurecia era o perigo em que
se colocara de ver desconcertados os seus perversos desígnios sobre a
gentil escrava.

- Maldição! - rugia ele lá consigo. - Aquele maluco é bem ca‑
paz de desconcertar todos os meus planos. Se sabe alguma coisa, como
parece, não porá dúvida em levar tudo aos ouvidos de Malvina...

Leôncio ficou por alguns momentos em pé, imóvel, sombrio,
carrancudo, com o espírito entregue à cruel inquietação que o fustigava.
Depois, pairando as vistas em derredor, deu com os olhos em Isaura, a
qual, desde que Leôncio se apresentara, corrida, trêmula e anelante,
fora sumir‑se em um canto da sala; dali presenciara em silenciosa ansiedade
a altercação dos dois moços, como corça mal ferida escutando o
rugir de dois tigres, que disputaram entre si o direito de devorá‑la. Por
seu lado também se arrependia do intimo d`alma, e raivava contra si
mesma pela indiscreta e louca revelação, que em um assomo de
impaciência deixara escapar dos seus lábios. Sua imprudência ia ser
causa da mais deplorável discórdia no seio daquela família, discórdia,
de que por fim de contas ela viria a ser a principal vítima. A desavença
entre os dois mancebos era como o choque de duas nuvens, que se encontram
e continuam a pairar tranqüilamente no céu; mas o raio desprendido de
seu seio teria de vir certeiro sobre a fronte da infeliz cativa.



Capítulo 4

- Ah! estás ainda ai?... fizeste bem, - disse Leôncio mal avistou
Isaura, que trêmula e confusa não ousara sair do cantinho, a que se
abrigara, e onde fazia mil votos ao céu para que seu senhor não a visse,
nem se lembrasse dela naquele momento. - Isaura, continuou ele,
- pelo que vejo, andas bem adiantada em amores!... estavas a ouvir
finezas daquele rapazola...

- Tanto como ouço as suas, meu senhor, por não ter outro remédio.
Uma escrava, que ousasse olhar com amor para seus senhores, merecia
ser severamente castigada.

- Mas tu disseste alguma coisa àquele estouvado, Isaura?...

- Eu?! - respondeu a escrava perturbando‑se; - eu, nada que
possa ofender nem ao senhor nem a ele...

- Pesa bem as tuas palavras, Isaura; olha, não procures
enganar‑me. Nada lhe disseste a meu respeito?

- Nada.

- Juras?

- Juro, - balbuciou Isaura.

- Ah! Isaura, Isaura!... tem cuidado. Se até aqui tenho sofrido
com paciência as tuas repulsas e desdéns, não estou disposto a suportar
que em minha casa, e quase em minha presença, estejas a escutar
galanteios de quem quer que seja, e muito menos revelar o que aqui se
passa. Se não queres o meu amor, evita ao menos de incorrer no meu
ódio.

- Perdão, senhor, que culpa tenho eu de andarem a perseguir‑me?

- Tens alguma razão; estou vendo que me verei forçado a
desterrar‑te desta casa, e a esconder‑te em algum canto, onde não sejas
tão vista e cobiçada...

- Para quê, senhor...

- Basta; não te posso ouvir agora, Isaura. Não convém que nos
encontrem aqui conversando a sós. Em outra ocasião te escutarei. -
preciso estorvar que aquele estonteado vã intrigar‑me com Malvina -
murmurava Leôncio retirando‑se. - Ah! cão! maldita a hora em que te
trouxe à minha casa!

- Permita Deus que tal ocasião nunca chegue! - exclamou
tristemente dentro da alma a rapariga, vendo seu senhor retirar‑se.

Ela via com angústia e mortal desassossego as continuas e cada vez mais
encarniçadas solicitações de Leôncio, e não atinava com um meio de
opor‑lhes um paradeiro. Resolvida a resistir até à morte, lembrava‑se da
sorte de sua infeliz mãe, cuja triste história bem conhecia, pois a tinha
ouvido, segredada a medo e misteriosamente, da boca de alguns velhos
escravos da casa, e o futuro se lhe antolhava carregado das mais negras
e sinistras cores. Revelar tudo a Malvina era o único meio, que se lhe
apresentava ao espírito, para pôr termo às ousadias do seu marido, e atalhar
futuras desgraças. Mas Isaura amava muito sua jovem senhora para ousar dar
semelhante passo, que iria derramar‑lhe no seio um pego de desgostos
e amarguras, quebrando‑lhe para sempre a risonha e doce ilusão em
que vivia.
Preferia antes morrer como sua mãe, vitima das mais cruéis
sevícias, do que ir por suas mãos lançar uma nuvem sinistra no céu até ali
tão sereno e bonançoso de sua querida senhora.
O pai de Isaura, o único ente no mundo, que à exceção de Malvina
se interessava por ela, pobre e simples jornaleiro, não se achava
em estado de poder protegê‑la contra as perseguições e violências de
que se achava ameaçada. Em tão cruel situação Isaura não sabia senão
chorar em segredo a sua desventura, e implorar ao céu, do qual somente
podia esperar remédio a seus males.
Bem se compreende pois agora aquele acento tão dorido, tão
repassado de angústia, com que cantava a sua canção favorita. Malvina
enganava‑se atribuindo sua tristeza a alguma paixão amorosa. Isaura
conservava ainda o coração no mais puro estado de isenção. Com
quanto mais dó não a teria lastimado sua boa e sensível senhora, se
pudesse adivinhar a verdadeira causa dos pesares que o ralavam.




Capítulo 5

Isaura despertando de suas pungentes e amargas preocupações.
tomou seu balainho de costura e ia deixar o salão, resolvida a sumir‑se
no mais escondido recanto da casa, ou amoitar‑se em algum
esconderijo do pomar. Esperava assim esquivar‑se à repetição de cenas
indecentes e vergonhosas, como essas por que acabava de passar. Apenas
dera os primeiros passos foi detida por uma extravagante e grotesca
figura, que penetrando no salão veio postar‑se diante de seus olhos.
Era um monstrengo afetando formas humanas, um homúnculo em
tudo mal construído, de cabeça enorme, tronco raquítico, pernas curtas
e arqueadas para fora, cabeludo como um urso, e feio como um mono.
Era como um desses truões disformes, que formavam parte indispensável
do séquito de um grande rei da Média Idade, para divertimento
dele e de seus cortesões. A natureza esquecera de lhe formar o
pescoço, e a cabeça disforme nascia‑lhe de dentro de uma formidável
corcova, que a resguardava quase como um capuz. Bem reparado todavia, o
rosto não era muito irregular, nem repugnante, e exprimia muita
cordura, submissão e bonomia.
Isaura teria soltado um grito de pavor, se há muito não estivesse
familiarizada com aquela estranha figura, pois era ele, sem mais nem
menos, o senhor Belchior, fiel e excelente ilhéu, que há muitos anos
exercia naquela fazenda mui digna e conscienciosamente, apesar de sua
deformidade e idiotismo, o cargo de jardineiro. Parece que as flores,
que são o símbolo natural de tudo quanto é belo, puro e delicado,
deviam ter um cultor menos disforme e repulsivo. Mas quis a sorte ou o
capricho do dono da casa estabelecer aquele contraste, talvez para fazer
sobressair a beleza de umas à custa da fealdade do outro.
Belchior tinha em uma das mãos o vasto chapéu de palha, que
arrastava pelo chão, e com a outra empunhava. não um ramalhete, mas
um enorme feixe de flores de todas as qualidades, à sombra das quais
procurava eclipsar sua desgraciosa e extravagante figura. Parecia um
desses vasos de louça, de formas fantásticas e grotescas, que se enchem
de flores para enfeitar bufetes e aparadores.

- Valha‑me Deus! - pensou Isaura ao dar com os olhos no jardineiro.
- Que sorte é a minha! ainda mais este!... este ao menos é de
todos o mais suportável: os outros me amofinam, e atormentam: este as
vezes me faz rir.

- Muito bem aparecido, senhor Belchior! então, o que deseja?

- Senhora Isaura, eu... eu... vinha..., - resmungou embaraçado
o jardineiro.

- Senhora!... eu senhora!... também o senhor pretende caçoar
comigo, senhor Belchior?...

Eu caçoar com a senhora!... não sou capaz... minha língua seja
comida de bichos, se eu faltar com o respeito devido à senhora... Vinha
trazer‑lhe estas froles, se bem que a senhora mesma é uma frol...

- Arre lá, senhor Belchior!... sempre a dar‑me de senhora!... se
continua por essa forma, ficamos mal, e não aceito as suas froles... Eu
sou Isaura, escrava da senhora D. Malvina; ouviu, senhor Belchior!

- Embora lá isso; e soverana cá deste coração, e eu, menina,
dou‑me por feliz se puder beijar‑te os pés. Olha, Isaura...

- Ainda bem! Agora sim; trate‑me desse modo.

- Olha, Isaura, eu sou um pobre jardineiro, lá isso é verdade; mas
sei trabalhar, e não hás de achar vazio o meu mealheiro, onde já tenho
mais de meio mil cruzados. Se me quiseres, como eu te quero,
arranjote a liberdade, e caso‑me contigo, que também não és para andar
aí assim como escrava de ninguém.

- Muito obrigada pelos seus bons desejos; mas perde seu tempo,
senhor Belchior. Meus senhores não me libertam por dinheiro nenhum.

- Ah! deveras!... que malbados!... ter assim no catibeiro a rainha
da Jermosura!... mas não importa, Isaura; terei mais gosto em ser escravo
de uma escrava como tu, do que em ser senhor dos senhores de
cem mil cativos. Isaura!... não fazes idéia de como te quero. Quando
vou molhar as minhas froles, estou a lembrar‑me de ti com uma soidade!...
Deveras! ora viu‑se que amor!...

- Isaura! - continuou Belchior, curvando os joelhos, - tem piedade
deste teu infeliz cativo...

- Levante‑se, levante‑se, - interrompeu Isaura com impaciência.
- Seria bonito que meus senhores viessem aqui encontrá‑lo fazendo
esses papéis!... que estou‑lhe dizendo?... ei‑los aí!... ah! senhor Belchior!

De feito, de um lado Leôncio, e de outro Henrique e Malvina, os
estavam observando.
Henrique, tendo‑se retirado do salão, despeitado e furioso contra
seu cunhado, assomado e leviano como era, foi encontrar a irmã na
sala de jantar, onde se achava preparando o café e ali em presença dela
não hesitou em desabafar sua cólera, soltando palavras imprudentes,
que lançaram no espírito da moça o germe da desconfiança e da
inquietação.

- Este teu marido, Malvina, não passa de um miserável patife
- disse bufando de raiva.

- Que estás dizendo, Henrique?!... que te fez ele?... - perguntou
a moça, espantada com aquele rompante.

- Tenho pena de ti, minha irmã... se soubesses... que
infâmia!...

- Estás doido, Henrique!... o que há então?

- Permita Deus que nunca o saibas!... que vilania!...

- O que houve então, Henrique?... fala, explica‑te por quem és,
- exclamou Malvina, pálida e ofegante no cúmulo da aflição.

- Oh! que tens?... não te aflijas assim, minha irmã, - respondeu
Henrique, já arrependido das loucas palavras que havia soltado. Tarde
compreendeu que fazia um triste e deplorável papel, servindo de
mensageiro da discórdia e da desconfiança entre dois esposos, que até ali
viviam na mais perfeita harmonia e tranquilidade. Tarde e em
vão procurou atenuar o terrível efeito de sua fatal indiscrição.

- Não te inquietes, Malvina, continuou ele procurando sorrir‑se;
- teu marido é um formidável turrão, eis aí tudo; não vás pensar que
nos queremos bater em duelo.

- Não; mas vieste espumando de raiva, com os olhos em fogo, e
com um ar...

- Qual!... pois não me conheces?... sempre fui assim; por - dá
cá aquela palha - pego fogo, mas também é fogo de palha.

- Mas pregaste‑me um susto!...

- Coitada!... toma isto, - disse‑lhe Henrique, oferecendo‑lhe
uma xícara de café, é a melhor coisa que há para aplacar sustos e
ataques de nervos.

Malvina procurou acalmar‑se, mas as palavras do irmão tinham‑lhe
penetrado no âmago do coração, como a dentada de uma víbora, aí
deixando o veneno da desconfiança.
O aparecimento de Leôncio, que vinha do salão, pôs termo a este
incidente. Os três tomaram café à pressa e sem trocarem palavras; estavam
já ressabiados uns com outros, olhavam‑se com desconfiança, e de
um momento para outro a discórdia insinuara‑se no seio daquela
pequena família, ainda há pouco tão feliz, unânime e tranqüila. Tomado o
café retiraram‑se, mas todos por um impulso instintivo, dirigiram seus
passos para o salão, Henrique e Malvina de braços dados pelo grande
corredor da entrada, e Leôncio sozinho por compartimentos interiores,
que comunicavam com o salão. Era ali com efeito que se achava o
pomo fatal, mas inocente, que devia servir de instrumento da
desunião e descalabro daquela nascente família.
Chegaram ainda a tempo de presenciar o final da cena ridícula,
que Belchior representava aos pés de Isaura. Leôncio, porém, que os
espiava através das sanefas entreabertas de uma alcova, não avistava
Henrique e Malvina, que haviam parado no corredor junto à porta da
entrada.

- Oh! oh! - exclamou ele no momento em que Belchior prostrava‑se
aos pés de Isaura. Creio que tenho dentro de casa um ídolo,
diante do qual todos vêm ajoelhar‑se e render adorações!... até o meu
jardineiro!... Olá, senhor Belchior, está bonito!... Continue com a farsa,
que não está má... mas para tratar dessa flor não precisamos de seus
cuidados, não; tem entendido, senhor Belchior!...

- Perdão, senhor meu, - balbuciou o jardineiro erguendo‑se
trêmulo e confuso; - eu vinha trazer estas froles para os basos da sala...

- E apresentá‑las de joelhos!... essa é galante!... Se continua
nesse papel de galã, declaro‑lhe que o ponho pela porta fora com dois
pontapés nessa corcova.

Corrido, confuso e azoinado, Belchior, cambaleando e esbarrando
pelas cadeiras, lá se foi às cegas em busca da porta da rua.

- Isaura! ó minha Isaura! - exclamou Leôncio saindo da alcova,
avançando com os braços abertos para a rapariga, e dando à voz até ali
áspera e rude, a mais suave e tema inflexão.

Um ai agudo e pungente, que ecoou pelo salão, o faz parar mudo,
gélido e petrificado. Tinha avistado no meio da porta Malvina, que, pálida
e desfalecida, ocultava a fronte no ombro de seu irmão, que a
amparava nos braços.

- Ah! meu irmão! - exclamou ela voltando de seu delíquio, -
agora compreendo tudo que ainda há pouco me dizias.

E com uma das mãos comprimindo o coração, que parecia querer‑lhe
estalar de dor, e com a outra escondendo no lenço as lágrimas, que
dos formosos olhos lhe brotavam aos pares, correu a encerrar‑se em
seu aposento.
Leôncio desconcertado pelo terrível contratempo, de que acabava
de ser vítima, ficou largo tempo a passear, frenético e agitado, de um a
outro lado, ao longo do salão, furioso contra o cunhado, a cuja
impertinente leviandade atribuía as fatais ocorrências daquela manhã,
que ameaçavam burlar todos os seus planos sobre Isaura, e excogitando
meios de safar‑se das dificuldades em que se via empenhado.
Isaura, tendo resistido em menos de uma hora, a três abordagens
consecutivas, dirigidas contra o seu pudor e isenção, aturdida, cheia de
susto, confusão e vergonha, correu a esconder‑se entre os laranjais
como lebre medrosa, que ouve ladrarem pelos prados os galgos
encarniçados a seguirem‑lhe a pista.
Henrique altamente indignado contra o cunhado não lhe queria ver
a cara; tomou sua espingarda e saiu disposto a passar o dia inteiro
passarinhando pelos matos, e a retirar‑se impreterivelmente para a corte
ao romper do dia seguinte.
Os escravos ficaram pasmos, quando à hora do almoço Leôncio
achou‑se sozinho à mesa. Leôncio mandou chamar Malvina, mas esta,
pretextando uma indisposição, não quis sair de seu quarto. Seu primeiro
movimento foi um ímpeto de cólera brutal; esteve a ponto de atirar
toalha, pratos, talheres e tudo pelos ares, e ir esbofetear o desassisado e
insolente rapaz, que em má hora viera à sua casa para perturbar a
tranqüilidade do seu viver doméstico. Mas conteve‑se a tempo, e
acalmando‑se entendeu que melhor era não se dar por achado, e encarar
com ares da maior indiferença e mesmo de desdém, os arrufos da
esposa, e o mau humor do cunhado. Estava bem persuadido que lhe
seria difícil, se não impossível, dissimular mais aos olhos da esposa
o seu torpe procedimento; incapaz, porém, de retratar‑se e implorar
perdão, resolveu amparar‑se da tempestade, que ia despenhar‑se sobre
sua cabeça, com o escudo da mais cínica indiferença. Inspiravam‑lhe
este alvitre o orgulho, e o mau conceito em que tinha todas as mulheres,
nas quais não reconhecia pundonor nem dignidade.
Depois do almoço Leôncio montou a cavalo, percorreu as roças e
cafezais, coisa que bem raras vezes fazia, e ao descambar do Sol voltou
para casa, jantou com o maior sossego e apetite, e depois foi para o
salão, onde, repoltreando‑se em macio e fresco sofá, pôs‑se a fumar
tranqüilamente o seu havana.
Nesse comenos chega Henrique de suas excursões venatórias, e
depois de procurar em vão a irmã por todos os cantos da casa, vai
enfim encontrá‑la encerrada em seu quarto de dormir desfigurada,
pálida, e com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar.

- Por onde andaste, Henrique?... estava aflita por te ver,
- exclamou a moça ao avistar o irmão. - Que má moda é essa de deixar a
gente assim sozinha!...

- Sozinha?!... pois até aqui não vivias sem mim na companhia de
teu belo marido?...

- Não me fales nesse homem... eu andava iludida; agora vejo
que andava pior do que sozinha, na companhia de um perverso.

- Ainda bem que presenciaste com teus próprios olhos o que eu
não tinha ânimo de dizer‑te. Mas, vamos! que pretendes fazer?...

- O que pretendo?... vais ver neste mesmo instante... Onde está
ele?... viste‑o por ai?...
Se me não engano, vi‑o no salão; havia lá um vulto sobre um sofá.

- Pois bem, Henrique, acompanha‑me até lá.

- Por que razão não vais só? poupa‑me o desgosto de encarar
aquele homem...

- Não, não; é preciso que vás comigo; estava à tua espera
mesmo para esse fim. Preciso de uma pessoa que me ampare e me
alente. Agora até tenho medo dele.

- Ah! compreendo; queres que eu seja teu guarda‑costas, para
poderes descompor a teu jeito aquele birbante. Pois bem; presto‑me de
boa vontade, e veremos se o patife tem o atrevimento de te desrespeitar.
Vamos!




Capítulo 6

- Senhor Leôncio, - disse Malvina com voz alterada
aproximando‑se do sofá, em que se achava o marido, - desejo dizer‑lhe
duas palavras, se isso não o incomoda.

- Estou sempre às tuas ordens, querida Malvina, - respondeu
levantando‑se lesto e risonho, e como quem nenhum reparo fizera no
tom cerimonioso com que Malvina o tratava. - Que me queres?...

- Quero dizer‑lhe, - exclamou a moça em tom severo, e fazendo
vãos esforços para dar ao seu lindo e mavioso semblante um ar feroz,
- quero dizer‑lhe que o senhor me insulta e me atraiçoa em sua casa,
da maneira a mais indigna e desleal...

- Santo Deus!... que estás aí a dizer, minha querida?...
explica‑te melhor, que não compreendo nem uma palavra do que dizes...

- Debalde, que o senhor se finge surpreendido; bem sabe a
causa do meu desgosto. Eu já devia ter pressentido esse seu
vergonhoso procedimento; há muito que o senhor não é o mesmo para
comigo, e me trata com tal frieza e indiferença...

- Oh! meu coração, pois querias que durasse eternamente a
lua‑de‑mel?... isso seria horrivelmente monótono e prosaico.

- Ainda escarneces, infame! - bradou a moça, e desta vez as
faces se lhe afoguearam de extraordinário rubor, e fuzilaram‑lhe nos
olhos lampejos de cólera terrível.

- Oh! não te exasperes assim, Malvina; estou gracejando - disse
Leôncio procurando tomar‑lhe a mão.

- Boa ocasião para gracejos!... deixe‑me, senhor!... que infâmia!...
que vergonha para nós ambos!...

- Mas enfim não te explicarás?

- Não tenho que explicar; o senhor bem me entende. Só tenho
que exigir...

- Pois exige, Malvina.

- Dê um destino qualquer a essa escrava, a cujos pés o senhor
costuma vilmente prostrar‑se: liberte‑a, venda‑a, faça o que quiser. Ou
eu ou ela havemos de abandonar para sempre esta casa; e isto hoje
mesmo. Escolha entre nos.

- Hoje?!

- E já!

- És muito exigente e injusta para comigo, Malvina, - disse Leôncio
depois de um momento de pasmo e hesitação. - Bem sabes que
é meu desejo libertar Isaura; mas acaso depende isso de mim somente?
é a meu pai que compete fazer o que de mim exiges.

- Que miserável desculpa, senhor! seu pai já lhe entregou
escravos e fazenda, e dará por bem feito tudo quanto o senhor fizer. Mas se
acaso o senhor a prefere a mim...

- Malvina!... não digas tal blasfêmia!...

- Blasfêmia!... quem sabe!... mas enfim dê um destino qualquer a
essa rapariga, se não quer expelir‑me para sempre de sua casa. Quanto
a mim, não a quero mais nem um momento em meu serviço; é bonita
demais para mucama.

- O que lhe dizia eu, senhor Leôncio? acudiu Henrique, que já
cansado e envergonhado do papel de mudo guarda‑costas, entendeu
que devia intervir também na querela. - Está vendo?.. eis aí o fruto
que se colhe desses belos trastes de luxo, que quer por força ter em seu
salão...

- Esses trastes não seriam tão perigosos, se não existissem vis
mexeriqueiros, que não hesitam em perturbar o sossego da casa dos
outros para conseguir seus fins perversos...

- Alto lá, senhor!... para impedir que o senhor não transportasse
o seu traste de luxo do salão para a alcova, percebe?... o escândalo
cedo ou tarde seria notório, e nenhum dever tenho eu de ver de braços
cruzados minha irmã indignamente ultrajada.

- Senhor Henrique! bradou Leôncio avançando para ele, hirto de
cólera e com gesto ameaçador.

- Basta, senhores - gritou Malvina interpondo‑se aos dois
mancebos. - Toda a disputa por tal motivo é inútil e vergonhosa
para nós todos. Eu já disse a Leôncio o que tinha de dizer; ele que se
decida; faça o que entender. Se quiser ser homem de brio e pundonor,
ainda é tempo. Se não, deixe‑me, que eu o entregarei ao desprezo que
merece.

- Oh! Malvina! estou pronto a fazer todo o possível para te
tranqüilizar e contentar: mas deves saber que não posso satisfazer o teu
desejo sem primeiro entender‑me com meu pai, que está na corte. É
preciso mais que saibas, que meu pai nenhuma vontade tem de libertar
Isaura, tanto assim, que para se ver livre das importunações do pai dela,
que também quer a todo custo libertá‑la, exigiu uma soma por tal forma
exorbitante, que é quase impossível o pobre homem arranjá‑la.

- O de casa!... dá licença? - bradou neste momento com voz
forte e sonora uma pessoa, que vinha subindo a escada do alpendre.

- Quem quer que é, pode entrar, - gritou Leôncio dando graças
ao céu, que tão a propósito mandava‑lhe uma visita para interromper
aquela importuna e detestável questão e livrá‑lo dos apuros em que se
via entalado.

Entretanto, como se verá, não tinha muito de que congratular‑se. O
visitante era Miguel, o antigo feitor da fazenda, o pai de Isaura, que
havia sido outrora grosseiramente despedido pelo pai de Leôncio.
Este, que ainda o não conhecia, recebeu‑o com afabilidade.

- Queira sentar‑se, - disse‑lhe, - e dizer‑nos o motivo por que
nos faz a honra de procurar,

- Obrigado! - disse o recém‑chegado, depois de cumprimentar
respeitosamente Henrique e Malvina. - V. S.a sem dúvida é o senhor
Leôncio?...

- Para o servir.

- Muito bem!... é com V. S.ª que tenho de tratar na falta do
senhor seu pai. O meu negócio é simples, e julgo que o posso declarar
em presença aqui do senhor e da senhora, que me parecem ser pessoas
de casa.

- Sem dúvida! entre nós não há segredo, nem reservas.

- Eis aqui ao que vim, senhor meu, - disse Miguel, tirando da
algibeira de seu largo sobretudo uma carteira, que apresentou a
Leôncio; - faça o favor de abrir esta carteira; aqui encontrará V. S.ª a
quantia exigida pelo senhor seu pai, para a liberdade de uma escrava desta
casa por nome Isaura.

Leôncio enfiou, e tomando maquinalmente a carteira, ficou alguns
instantes com os olhos pregados no teto.

- Pelo que vejo, - disse por fim, - o senhor deve ser o pai...
aquele que dizem ser o pai da dita escrava. ‑ é o senhor. ‑ não me
lembra o nome..

- Miguel, um criado de V. S.a

- É verdade; o senhor Miguel. Folgo muito que tenha arranjado
meios de libertar a menina; ela bem merece esse sacrifício.

Enquanto Leôncio abre a carteira, e conta e reconta mui
pausadamente nota por nota o dinheiro, mais para ganhar tempo a
refletir sobre o que deveria fazer naquelas conjunturas, do que para verificar
se estava exata a soma, aproveitemo‑nos do ensejo para contemplar a
figura do bom e honrado português, pai da nossa heroína, de quem ainda não
nos ocupamos senão de passagem.
Era um homem de mais de cinqüenta anos; em sua fisionomia nobre
e alerta transpirava a franqueza, a bonomia, e a lealdade.
Trajava pobremente, mas com muito alinho e limpeza, e por suas
maneiras e conversação, conhecia‑se que aquele homem não viera ao
Brasil, como quase todos os seus patrícios, dominado pela ganância de
riquezas. Tinha o trato e a linguagem de um homem polido, e de
acurada educação. De feito Miguel era filho de uma nobre e honrada
família de miguelistas, que havia emigrado para o Brasil. Seus
pais, vítimas de perseguições políticas, morreram sem ter nada que legar
ao filho, que deixaram na idade de dezoito a vinte anos. Sozinho, sem
meios e sem proteção, viu‑se forçado a viver do trabalho de seus
braços, metendo‑se a jardineiro e horticultor, mister este, que
como filho de lavrador, robusto, ativo e inteligente, desempenhava
com suma perícia e perfeição.
O pai de Leôncio, tendo tido ocasião de conhecê‑lo, e apreciando
o seu merecimento, o engajou para feitor de sua fazenda com vantajosas
condições. Ali serviu muitos anos sempre mui respeitado e querido
de todos, até que aconteceu‑lhe a fatal, mas muito desculpável fraqueza,
que sabemos, e em consequência da qual foi grosseiramente despedido
por seu patrão. Miguel concebeu amargo ressentimento e mágoa
profunda, não tanto por si, como por amor das duas infelizes criaturas,
que não podia proteger contra a sanha de um senhor perverso e brutal.
Mas forçoso lhe foi resignar‑se. Não lhe faltava serviço nem acolhimento
pelas fazendas vizinhas. Conhecedores de seu mérito, os lavradores em
redor o aceitariam de braços abertos; a dificuldade estava na escolha.
Optou pelo mais vizinho, para ficar o mais perto possível de sua querida
filhinha.
Como o comendador quase sempre achava‑se na corte ou em
Campos, Miguel tinha muita ocasião e facilidade de ir ver a menina, à
qual cada vez ia criando mais entranhado afeto. A esposa do comendador,
na ausência deste, dava ao português franca entrada em sua casa,
e facilitava‑lhe os meios de ver e afagar a filhinha, com o que vivia ele
mui consolado e contente. De feito o céu tinha dado à sua filha na
pessoa de sua senhora uma segunda mãe tão boa e desvelada, como
poderia ser a primeira, e que mais do que esta lhe podia servir de
amparo e proteção. A morte inesperada daquela virtuosa senhora veio
despedaçar‑lhe o coração, quebrando‑lhe todas as suas lisonjeiras esperanças.
Muito pode o amor paterno em uma alma nobre e sensível!...
Miguel, sobrepujando todo o ódio, repugnância e asco, que lhe inspirava a
pessoa do comendador, não hesitou em ir humilhar‑se diante dele,
importuná‑lo com suas súplicas, rogar‑lhe com as lágrimas nos olhos, que
abrisse preço à liberdade de Isaura.

- Não há dinheiro que a pague; há de ser sempre minha, -
respondia com orgulhoso cinismo o inexorável senhor ao infeliz e aflito
pai.

Um dia enfim para se ver livre das importunações e súplicas de
Miguel, disse‑lhe com mau modo:

- Homem de Deus, traga‑me dentro de um ano dez contos de
réis, e lhe entrego livre a sua filha e... deixe‑me por caridade. Se não
vier nesse prazo, perca as esperanças.

- Dez contos de réis! é soma demasiado forte para mim.. ‑ mas
não importa!... ela vale muito mais do que isso. Senhor comendador,
vou fazer o impossível para trazer‑lhe essa soma dentro do prazo
marcado. Espero em Deus, que me há de ajudar.

O pobre homem, à força de trabalho e economia, impondo‑se
privações, vendendo todo o supérfluo, e limitando‑se ao que era
estritamente necessário, no fim do ano apenas tinha arranjado metade da
quantia exigida. Foi‑lhe mister recorrer à generosidade de seu
novo patrão, o qual, sabendo do santo e nobre fim a que se propunha seu
feitor, e do vexame e extorsão de que era vítima, não hesitou em
fornecer‑lhe a soma necessária, a título de empréstimo ou adiantamento de
salários.
Leôncio, que como seu pai julgava impossível que Miguel em um
ano pudesse arranjar tão considerável soma, ficou atônito e altamente
contrariado, quando este se apresentou para lha meter nas mãos.

- Dez contos, - disse por fim Leôncio acabando de contar o
dinheiro. - É justamente a soma exigida por meu pai. - Bem estólido
e avaro é este meu pai, murmurou ele consigo, - eu nem por cem
contos a daria. - Senhor Miguel, - continuou em voz alta,
entregando‑lhe a carteira, - guarde por ora o seu dinheiro; Isaura não
me pertence ainda; só meu pai pode dispor dela. Meu pai acha‑se na
corte, e não deixou‑me autorização alguma para tratar de semelhante
negócio. Arranje‑se com ele.

- Mas V. S.ª é seu filho e herdeiro único, e bem podia por si
mesmo...

- Alto lá, senhor Miguel! meu pai felizmente é vivo ainda, e não
me é permitido desde já dispor de seus bens, como minha herança.

- Embora, senhor; tenha a bondade de guardar esse dinheiro e
enviá‑lo ao senhor seu pai, rogando‑lhe da minha parte o favor de
cumprir a promessa que me fez de dar liberdade a Isaura mediante essa
quantia.

- Ainda pões dúvida, Leôncio?! - exclamou Malvina impaciente
e indignada com as tergiversações do marido. - Escreve, escreve
quanto antes a teu pai; não te podes esquivar sem desonra a cooperar
para a liberdade dessa rapariga.

Leôncio, subjugado pelo olhar imperioso da mulher, e pela força
das circunstâncias, que contra ele conspiravam, não pôde mais escusar‑se.
Pálido e pensativo, foi sentar‑se junto a uma mesa, onde havia papel
e tinta, e de pena em punho pôs‑se a meditar em atitude de quem ia
escrever. Malvina e Henrique, debruçados a uma janela, conversavam
entre si em voz baixa. Miguel, sentado a um canto na outra extremidade
da sala, esperava pacientemente, quando Isaura, que do quintal, onde
se achava escondida, o tinha visto chegar, entrando no salão sem ser
sentida, se lhe apresentou diante dos olhos. Entre pai e filha travou‑se a
meia voz o seguinte diálogo:

- Meu pai!... que novidade o traz aqui?... a modo que lhe estou
vendo um ar mais alegre que de costume.

- Calada! - murmurou Miguel, levando o dedo à boca e apontando
para Leôncio. - Trata‑se da tua liberdade.

- Deveras, meu pai!... mas como pôde arranjar isso?

- Ora como?!... a peso de ouro. Comprei‑te, minha filha, e em
breve vais ser minha.

- Ah! meu querido pai!... como vossemecê é bom para sua filha!...
se soubesse quantos hoje já me vieram oferecer a liberdade!...
mas por que preço! meu Deus!... nem me atrevo a lhe contar. Meu
coração adivinhava, continuou beijando com terna efusão as mãos de
Miguel; - eu não devia receber a liberdade senão das mãos daquele
que me deu a vida!...

- Sim, querida Isaura! - disse o velho apertando‑a contra o
coração. - O céu nos favoreceu, e em breve vais ser minha, minha só,
minha para sempre!...

- Mas ele consente?... perguntou Isaura apontando para Leôncio.

- O negócio não é com ele, é com seu pai, a quem agora escreve.

- Nesse caso tenho alguma esperança; mas se minha sorte depender
somente daquele homem, serei para sempre escrava.

- Arre! com mil diabos!... resmungou consigo Leôncio
levantando‑se, e dando sobre a mesa um furioso murro com o punho
fechado. - Não sei que volta hei de dar para desmanchar esta
inqualificável loucura de meu pai!

- Já escreveste, Leôncio? - perguntou Malvina voltando‑se para
dentro.

Antes que Leôncio pudesse responder a esta pergunta, um pajem,
entrando rapidamente pela sala, entrega‑lhe uma carta tarjada de preto.

- De luto!... meu Deus!... que será! - exclamou Leôncio, pálido
e trêmulo, abrindo a carta, e depois de a ter percorrido rapidamente
com os olhos lançou‑se sobre uma cadeira, soluçando e levando o
lenço aos olhos.

- Leôncio! Leôncio!... que tem?... exclamou Malvina pálida de
susto; e tomando a carta que Leôncio atirara sobre a mesa, começou a
ler com voz entrecortada:

"Leôncio, tenho a dar‑te uma dolorosa notícia, para a qual teu
coração não podia estar preparado. E um golpe, pelo qual todos
nós temos de passar inevitavelmente, e que deves suportar com
resignação. Teu pai já não existe; sucumbiu anteontem subitamente,
vítima de uma congestão cerebral..."

Malvina não pôde continuar; e nesse momento, esquecendo‑se das
injúrias e de tudo que lhe havia acontecido naquele nefasto dia, lançou‑se
sobre seu marido, e abraçando‑se com ele estreitamente, misturava suas
lágrimas com as dele.

- Ah! meu pai! meu pai!... tudo está perdido! - exclamou Isaura,
pendendo a linda e pura fronte sobre o peito de Miguel. - Já nenhuma
esperança nos resta!...

- Quem sabe, minha filha! - replicou gravemente o pai. - Não
desanimemos; grande é o poder de Deus!...




Capítulo 7

Na fazenda de Leôncio havia um grande salão toscamente construído,
sem forro nem soalho, destinado ao trabalho das escravas que se ocupavam
em fiar e tecer lã e algodão.
Os móveis deste lugar consistiam em tripeças, tamboretes, bancos,
rodas de fiar, dobadouras, e um grande tear colocado a um canto.
Ao longo do salão, defronte de largas janelas guarnecidas de
balaústres, que davam para um vasto pálio interior, via‑se postada uma
fila de fiandeiras. Eram de vinte a trinta negras, crioulas e mulatas, com
suas tenras crias ao colo ou pelo chão a brincarem em redor delas.
Umas conversavam, outras cantarolavam para encurtarem as longas
horas de seu fastidioso trabalho. Viam‑se ali caras de todas as
idades, cores e feitios, desde a velha africana, trombuda e macilenta, até
à roliça e luzidia crioula, desde a negra brunida como azeviche até à
mulata quase branca.
Entre estas últimas distinguia‑se uma rapariguinha, a mais
faceira e gentil que se pode imaginar nesse gênero. Esbelta e flexível de
corpo, tinha o rostinho mimoso, lábios um tanto grossos, mas bem
modelados, voluptuosos, úmidos, e vermelhos como boninas que acabam de
desabrochar em manhã de abril. Os olhos negros não eram muito grandes,
mas tinham uma viveza e travessura encantadoras. Os cabelos negros e
anelados podiam estar bem na cabeça da mais branca fidalga de
além‑mar. Ela porém os trazia curtos e mui bem frisados à maneira dos
homens. Isto longe de tirar‑lhe a graça, dava à sua fisionomia
zombeteira e espevitada um chispe original e encantador. Se não
fossem os brinquinhos de ouro, que lhe tremiam nas pequenas e bem
molduradas orelhas, e os túrgidos e ofegantes seios que como dois trêfegos
cabritinhos lhe pulavam por baixo de transparente camisa, tomá‑la‑íeis
por um rapazote maroto e petulante. Veremos em breve de que ralé era
esta criança, que tinha o bonito nome de Rosa.
No meio do sussurro das rodas, que giravam, das monótonas cantarolas
das fiandeiras, do compasso estrépito do tear, que trabalhava
incessantemente, dos guinchos e alaridos das crianças, quem prestasse
atento ouvido, escutaria a seguinte conversação, travada timidamente e
a meia voz em um grupo de fiandeiras, entre as quais se achava Rosa.

- Minhas camaradas, - dizia a suas vizinhas uma crioula idosa,
matreira e sabida em todos os mistérios da casa desde os tempos dos
senhores velhos, - agora que sinhô velho morreu, e que sinhá Malvina
foi‑se embora para a casa de seu pai dela, é que nós vamos ver o que e
rigor de cativeiro.

- Como assim, tia Joaquina?!...

- Como assim!... vocês verão. Vocês bem sabem, que sinhô velho
não era de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado - atrás de mim virá
quem bom me fará. - Este sinhô moço Leôncio... hum!... Deus queira
que me engane... quer‑me parecer que vai‑nos fazer ficar com saudade
do tempo de sinhô velho...

- Cruz! ave Maria!... não fala assim, tia Joaquina!... então é
melhor matar a gente de uma vez...

- Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui a
pouco nós tudo vai pra roça puxar enxada de sol a sol, ou pra o cafezal
apanhar café, e o pirai do feitor aí rente atrás de nós. Vocês verão. Ele
o que quer é café, e mais café, que é o que dá dinheiro.

- Também, a dizer a verdade, não sei o que será melhor, -
observou outra escrava, - se estar na roça trabalhando de enxada, ou
aqui pregada na roda, desde que amanhece até nove, dez horas da
noite. Quer‑me parecer que lã ao menos a gente fica mais à
vontade.

- Mais à vontade?!.., que esperança! - exclamou uma terceira.
- Antes, aqui, mil vezes! aqui ao menos a gente sempre está livre do
maldito feitor.

- Qual, minha gente! - ponderou a velha crioula - tudo é
cativeiro. Quem teve a desgraça de nascer cativo de um mau senhor,
dê por aqui, dê por acolá, há de penar sempre. Cativeiro é má sina; não
foi Deus que botou no mundo semelhante coisa, não; foi invenção do
diabo. Não vê o que aconteceu com a pobre Juliana, mãe de Isaura?

- Por falar nisso, - atalhou uma das fiandeiras, - o que fica
fazendo agora a Isaura?... enquanto sinhá Malvina estava aí, ela andava
de estadão na sala, agora...

- Agora fica fazendo as vezes de sinhá Malvina, - acudiu Rosa
com seu sorriso maligno e zombeteiro.

- Cala a boca, menina! - bradou com voz severa a velha crioula.
- Deixa dessas falas. Coitada da Isaura. Deus te livre a você de
estar na pele daquela pobrezinha! se vocês soubessem quanto penou a
pobre da mãe dela! ah! aquele sinhô velho foi um home judeu mesmo,
Deus te perdoe. Agora com Isaura e sinhô Leôncio a coisa vai tomando
o mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cor
desta Rosa mas inda mais bonita e mais bem feita...

Rosa deu um muxoxo, e fez um momo desdenhoso.

- Mas isso mesmo foi a perdição dela, coitada! - continuou a
crioula velha. - O ponto foi sinhô velho gostar dela... eu já contei a
vocês o que é que aconteceu. Juliana era uma rapariga de brio, e por
isso teve de penar, até morrer. Nesse tempo o feitor era esse siô Miguel,
que anda aí, e que é pai de Isaura. Isso é que era feitor bom!... todo
mundo queria ele bem, e tudo andava direito. Mas esse siô Francisco,
que ai anda agora, cruz nele!... é a pior peste que tem botado os pés
nesta casa. Mas, como ia dizendo, o siô Miguel gostava muito de
Juliana, e trabalhou, trabalhou até ajuntar dinheiro para forrar
ela. Mas nhonhô não esteve por isso, ficou muito zangado, e tocou o feitor
para fora.

Também Juliana pouco durou; pirai e serviço deu co`ela na cova
em pouco tempo. Picou aí a pobre menina ainda de mama, e se não
fosse sinhá velha, que era uma santa mulher, Deus sabe o que seria
dela!... também, coitada!... antes Deus a tivesse levado!...

- Por quê, tia Joaquina?...

- Porque está‑me parecendo, que ela vai ter a mesma sina da
mãe...

- E o que mais merece aquela impostora? - murmurou a
invejosa e malévola Rosa. - Pensa que por estar servindo na sala é
melhor do que as outras, e não faz caso de ninguém. Deu agora em
namorar os moços brancos, e como o pai diz que há de forrar ela, pensa
que e uma grande enhora. Pobre do senhor Miguel!... não tem onde cair
morto, e há de ter para forrar a filha!

- Que má língua é esta Rosa! - murmurou enfadada a velha
crioula, relanceando um olhar de repreensão sobre a mulata. - Que
mal te fez a pobre Isaura, aquela pomba sem fel, que com ser o que e,
bonita e civilizada como qualquer moça branca, não é capaz de fazer
pouco caso de ninguém?... Se você se pilhasse no lugar dela, pachola e
atrevida como és, havias de ser mil vezes pior.

Rosa mordeu os beiços de despeito, e ia responder com todo o
atrevimento e desgarre, que lhe era próprio, quando uma voz áspera e
atroadora, que, partindo da porta do salão, retumbou por todo ele, veio
pôr termo à conversação das fiandeiras.

- Silêncio! - bradava aquela voz. - Arre! que tagarelice!... pa‑
rece que aqui só se trabalha de língua!...

Um homem espadaúdo e quadrado, de barba espessa e negra, de
fisionomia dura e repulsiva, apresenta‑se à porta do salão, e
vai entrando. Era o feitor. Acompanhava‑o um mulato ainda novo, esbelto e
aperaltado, trajando uma bonita libré de pajem, e conduzindo uma roda de
fiar. Logo após eles entrou Isaura.
As escravas todas levantaram‑se e tomaram a bênção ao feitor.
Este mandou colocar a roda em um espaço desocupado, que infelizmente
para Isaura ficava ao pé de Rosa.

- Anda cá, rapariga; - disse o feitor voltando‑se para Isaura. -
De hoje em diante é aqui o teu lugar; esta roda te pertence, e tuas
parceiras que te dêem tarefa para hoje. Bem vejo que te não há de
agradar muito a mudança; mas que volta se lhe há de dar?... teu senhor
assim o quer. Anda lá; olha que isto não é piano, não; é acabar depressa
com a tarefa para pegar em outra. Pouca conversa e muito trabalhar...

Sem se mostrar contrariada nem humilhada com a nova ocupação,
que lhe davam, Isaura foi sentar‑se junto a roda, e pôs‑se a prepará‑la
para dar começo ao trabalho. Posto que criada na sala e empregada
quase sempre em trabalhos delicados, todavia era ela hábil em todo o
gênero de serviço doméstico: sabia fiar, tecer, lavar, engomar, e cozinhar
tão bem ou melhor do que qualquer outra. Foi pois colocar‑se
com toda a satisfação e desembaraço entre as suas parceiras; apenas
notava‑se no sorriso, que lhe adejava nos lábios, certa expressão de
melancólica resignação; mas isso era o reflexo das inquietações
e angústias, que lhe oprimiam o coração, que não desgosto por se ver
degradada do posto que ocupara toda sua vida junto de suas senhoras.
Cônscia de sua condição, Isaura procurava ser humilde como qualquer
outra escrava, porque a despeito de sua rara beleza e dos dotes de seu
espirito, os fumos da vaidade não lhe intumesciam o coração, nem
turvavam‑lhe a luz de seu natural bom senso. Não obstante porém toda
essa modéstia e humildade transiuzia‑lhe, mesmo a despeito dela, no
olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo,
proveniente talvez da consciência de sua superioridade, e ela sem o
querer sobressaía entre as outras, bela e donosa, pela correção e
nobreza dos traços fisionômicos e por certa distinção nos gestos
e ademanes. Ninguém diria que era uma escrava, que trabalhava entre as
companheiras, e a tomaria antes por uma senhora moça, que, por
desenfado, fiava entre as escravas. Parecia a garça‑real, alçando o
colo garboso e altaneiro, entre uma chusma de pássaros vulgares.
As outras escravas a contemplavam todas com certo interesse e
comiseração, porque de todas era querida, menos de Rosa, que lhe
tinha inveja e aversão mortal. Em duas palavras o leitor ficará inteirado
do motivo desta malevolência de Rosa. Não era só pura inveja; havia aí
alguma coisa de mais positivo, que convertia essa inveja em ódio mortal.
Rosa havia sido de há muito amásia de Leôncio, para quem fora fácil
conquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que, porém,
inclinou‑se a Isaura, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida.
A gentil mulatinha sentiu‑se cruelmente ferida em seu coração com esse
desdém, e como era maligna e vingativa, não podendo vingar‑se de seu senhor,
jurou descarregar todo o peso de seu rancor sobre a pessoa de sua infeliz rival.

- Um raio que te parta, maldito! - Má lepra te consuma, coisa
ruim! - Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! - Estas e
outras pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra o
feitor, apenas este voltou‑lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado
entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios.
abominado mais do que o senhor cruel, que o muniu do azorrague
desapiedado para açoitá‑los e acabrunhá‑los de trabalhos. É assim que
o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar‑se
contra o algoz, que a executa.

Como já dissemos, coube em sorte a Isaura sentar‑se perto de
Rosa. Esta assestou logo contra sua infeliz companheira a sua bateria de
ditérios e remoques sarcásticos e irritantes.

- Tenho bastante pena de você, Isaura. disse Rosa para dar começo
às operações.

- Deveras! - respondeu Isaura, disposta a opor às provocações
de Rosa toda a sua natural brandura e paciência. Pois por quê, Rosa?...

- Pois não é duro mudar‑se da sala para a senzala, trocar o sofá
de damasco por esse cepo, o piano e a almofada de cetim por essa
roda? Por que te enxotaram de lá, Isaura?

- Ninguém me enxotou, Rosa; você bem sabe. Sinhá Malvina
foi‑se embora em companhia de seu irmão para a casa do pai dela.
Portanto nada tenho que fazer na sala, e é por isso que venho aqui
trabalhar com vocês.

- E por que é que ela não te levou, você, que era o ai‑jesus
dela?... Ah! Isaura, você cuida que me embaça, mas está muito
enganada; eu sei de tudo. Você estava ficando muito aperaltada, e
por isso veio aqui para conhecer o seu lugar

- Como és maliciosa! - replicou Isaura sorrindo tristemente, mas
sem se alterar; pensas então que eu andava muito contente e cheia de
mim por estar lá na sala no meio dos brancos?... como te enganas!... se
me não perseguires com a tua má língua, como principias a fazer, creio
que hei de ficar mais satisfeita e sossegada aqui.

- Nessa não creio eu; como é que você pode ficar satisfeita aqui,
se não acha moços para namorar?

- Rosa, que mal te fiz eu, para estares assim a amofinar‑me com
essas falas?...

- Olhe a sinhá, não se zangue!... perdão, dona Isaura; eu pensei
que a senhora tinha esquecido os seus melindres lá no salão.

- Podes dizer o que quiseres, Rosa; mas eu bem sei, que na sala
ou na cozinha eu não sou mais do que uma escrava como tu. Também
deves‑te lembrar, que se hoje te achas aqui, amanhã sabe Deus onde
estarás. Trabalhemos, que é nossa obrigação. deixemos dessas
conversas que não têm graça nenhuma.

Neste momento ouvem‑se as badaladas de uma sineta; eram três
para quatro horas da tarde; a sineta chamava os escravos a jantar. As
escravas suspendem seus trabalhos e levantam‑se; Isaura porém
não se move, e continua a fiar.

- Então? - diz‑lhe Rosa com o seu ar escarninho, - você não
ouve, Isaura? são horas; vamos ao feijão.

- Não, Rosa; deixem‑me ficar aqui; não tenho fome nenhuma.
Fico adiantando minha tarefa, que principiei muito tarde.

- Tem razão; também uma rapariga civilizada e mimosa como
você não deve comer do caldeirão dos escravos. Quer que te mande
um caldinho, um chocolate?...

- Cala essa boca, tagarela! - bradou a crioula velha, que parecia
ser a priora daquele rancho de fiandeiras. - Forte lingüinha de
víbora!... deixa a outra sossegar. Vamos, minha gente.

As escravas retiraram‑se todas do salão, ficando só Isaura,
entregue ao seu trabalho e mais ainda às suas tristes e inquietadoras
reflexões. O fio se estendia como que maquinalmente entre seus dedos
mimosos, enquanto o pezinho nu e delicado, abandonando o tamanquinho de
marroquim, pousava sobre o pedal da roda, a que dava automático
impulso. A fronte lhe pendia para um lado como açucena esmorecida, e
as pálpebras meio cerradas eram como véus melancólicos, que
encobriam um pego insondável de tristura e desconforto. Estava
deslumbrante de beleza naquela encantadora e singela atitude.

- Ah! meu Deus! - pensava ela; nem aqui posso achar um
pouco de sossego!... em toda parte juraram martirizar‑me!... Na sala, os
brancos me perseguem e armam mil intrigas e enredos para me
atormentarem. Aqui, onde entre minhas parceiras, que parecem me
querer bem, esperava ficar mais tranqüila, há uma, que por inveja, ou
seja lá pelo que for, me olha de revés e só trata de achincalhar‑me.
Meu Deus! meu Deus!... já que tive a desgraça de nascer cativa, não era
melhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil das
negras, do que ter recebido do céu estes dotes, que só servem para
amargurar‑me a existência?

Isaura não teve muito tempo para dar larga expansão às suas
angustiosas reflexões. Ouviu rumor na porta, e levantando os olhos viu
que alguém se encaminhava para ela.

- Ai! meu Deus! - murmurou consigo. - Aí temos nova
importunação! nem ao menos me deixam ficar sozinha um instante.

Quem entrava era, sem mais nem menos, o pajem André, que já
vimos em companhia do feitor, e que mui ancho, empertigado e
petulante se foi colocar defronte de Isaura.

- Boa tarde, linda Isaura. Então, como vai essa flor? - saudou o
pachola do pajem com toda a faceirice.

- Bem, respondeu secamente Isaura.

- Estás mudada?... tens razão, mas é preciso ir‑se acomodando
com este novo modo de vida. Deveras que para quem estava
acostumada lá na sala, no meio de sedas e flores e águas‑de‑cheiro, há
de ser bem triste ficar aqui metida entre estas paredes enfumaçadas
que só tresandam a sarro de pito e morrão de candeia.

- Também tu, André, vens por tua vez aproveitar‑te da ocasião
para me atirar lama na cara?...

- Não, não, Isaura; Deus me livre de te ofender; pelo contrário,
dói‑me deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta
corja de negras beiçudas e catinguentas uma rapariga como tu, que só
merece pisar em tapetes e deitar em colchões de damasco. Esse senhor
Leôncio tem mesmo um coração de fera.

- E que te importa isso? eu estou bem satisfeita aqui.

- Qual!... não acredito; não é aqui teu lugar. Mas também por
outra banda estimo bem isso.

- Por quê?

- Porque, enfim, Isaura, a falar‑te a verdade, gosto muito de você,
e aqui ao menos podemos conversar mais em liberdade...

- Deveras!... declaro‑te desde já que não estou disposta a ouvir
tuas liberdades.

- Ah! é assim! - exclamou André todo enfunado com este
brusco desengano. - Então a senhora quer só ouvir as finezas dos
moços bonitos lá na sala!... pois olha, minha camarada, isso nem sempre
pode ser, e cá da nossa laia não és capaz de encontrar rapaz de
melhor figura do que este seu criado. Ando sempre engravatado,
enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado, e o que mais e, -
acrescentou batendo com a mão na algibeira, - com as algibeiras
sempre a tinir. A Rosa, que também é uma rapariguinha bem bonita,
bebe os ares por mim; mas coitada!... o que é ela ao pé de você?...
Enfim, Isaura, se você soubesse quanto bem te quero, não havias de
fazer tão pouco caso de mim. Se tu quisesses, olha... escuta.

E dizendo isto o maroto do pajem, avizinhando‑se de Isaura,
foi‑lhe lançando desembaraçadamente o braço em torno do colo, como quem
queria falar‑lhe em segredo, ou talvez furtar‑lhe um beijo.

- Alto lá! - exclamou Isaura repelindo‑o com enfado. - Está
ficando bastante adiantado e atrevido. Retire‑se daqui, se não irei dizer
tudo ao senhor Leôncio.

- Oh! perdoa, Isaura; não há motivo para você se arrufar assim.
És muito má, para quem nunca te ofendeu, e te quer tanto bem. Mas
deixa estar, que o tempo há de te amaciar esse coraçãozinho de pedra.
Adeus; eu já me vou embora; mas olha lá, Isaura; pelo amor de Deus,
não vá dizer nada a ninguém. Deus me livre que sinhó moço saiba do
que aqui se passou; era capaz de me enforcar. O que vale, -
continuou André consigo e retirando‑se, - o que vale é que neste negócio
parece‑me que ele anda tão adiantado como eu.

Pobre Isaura! sempre e em toda parte esta contínua importunação
de senhores e de escravos, que não a deixam sossegar um só
momento! Como não devia viver aflito e atribulado aquele coração!
Dentro de casa contava ela quatro inimigos, cada qual mais porfiado em
roubar‑lhe a paz da alma, e torturar‑lhe o coração: três amantes,
Leôncio, Belchior, e André, e uma êmula terrível e desapiedada, Rosa. Fácil
lhe fora repelir as importunações e insolências dos escravos e criados;
mas que seria dela, quando viesse o senhor?!...
De feito, poucos instantes depois Leôncio, acompanhado pelo
feitor, entrava no salão das fiandeiras. Isaura, que um momento
suspendera o seu trabalho, e com o rosto escondido entre as mãos se
embevecia em amargas reflexões, não se apercebera da presença deles.

- Onde estão as raparigas que aqui costumam trabalhar?... perguntou
Leôncio ao feitor, ao entrar no salão.

- Foram jantar, senhor; mas não tardarão a voltar.

- Mas uma cá se deixou ficar... ah! é a Isaura... Ainda bem! -
refletiu consigo Leôncio, - a ocasião não pode ser mais favorável;
tentemos os últimos esforços para seduzir aquela empedernida criatura.
Logo que acabem de comer, - continuou ele dirigindo‑se ao feitor, -
leve‑as para a colheita do café. Há muito que eu pretendia recomendar‑lhe
isto e tenho‑me esquecido. Não as quero aqui mais nem um
instante; isto é um lugar de vadiação, em que perdem o tempo sem
proveito algum, em continuas palestras. Não faltam por aí tecidos de
algodão para se comprar.

Mal o feitor se retirou, Leôncio dirigiu‑se para junto de Isaura.

- Isaura! murmurou com voz meiga e comovida.

- Senhor! - respondeu a escrava erguendo‑se sobressaltada; de‑
pois murmurou tristemente dentro d`alma: - meu Deus! é ele!... é
chegada a hora do suplício.




Capítulo 8

Agora nos é indispensável abandonar por alguns instantes Isaura
em sua penível situação diante de seu dissoluto e bárbaro senhor para
informarmos o leitor sobre o que ocorrera no seio daquela pequena
família, e em que pé ficaram os negócios da casa, depois que a notícia
da morte do comendador, estalando como uma bomba no meio das
intrigas domésticas, veio dar‑lhes dolorosa diversão no momento em
que elas, refervendo no mais alto grau de ebulição, reclamavam
forçosamente um desenlace qualquer.
Aquela morte não podia senão prolongar tão melindrosa e deplorável
situação, pondo nas mãos de Leôncio toda a fortuna patema, e
desatando as últimas peias que ainda o tolhiam na expansão de seus
abomináveis instintos.
Leôncio e Malvina estiveram de nojo encerrados em casa por alguns
dias, durante os quais parece que deram tréguas aos arrufos e
despeitos recíprocos. Henrique, que queria absolutamente partir no dia
seguinte, cedendo enfim aos rogos e instâncias de Malvina, consentiu
em ficar‑lhe fazendo companhia durante os dias de nojo.

- Conforme for o procedimento de meu marido, disse‑lhe ela, -
iremos juntos. Se por estes dias não der liberdade e um destino qualquer
a Isaura, não ficarei mais nem um momento em sua casa.

Leôncio encerrado em seu quarto a ninguém falou, nem apareceu
durante alguns dias, e parecia mergulhado no mais inconsolável e profundo
pesar. Entretanto, não era assim. É verdade que Leôncio não
deixou de sofrer certo choque, certa surpresa, que não golpe doloroso,
com a noticia do falecimento de seu pai; mas no fundo d`alma, - força
é dizê‑lo, - passado o primeiro momento de abalo e consternação
chegou até a estimar aquele acontecimento, que tanto a propósito vinha
livrá‑lo dos apuros em que se achava enleado em face de Malvina
e de Miguel. Portanto, durante a sua reclusão, em vez de entregar‑se
à dor que lhe deveria causar tão sensível golpe, Leôncio, que por
maneira nenhuma podia resignar‑se a desfazer‑se de Isaura, só meditava
os meios de safar‑se das dificuldades, em que se achava envolvido,
e urdia planos para assegurar‑se da posse da gentil cativa. As dificuldades
eram grandes, e constituíam um nó, que poderia ser cortado, mas
nunca desatado. Leôncio havia reconhecido a promessa que seu pai fizera
a Miguel, de alforriar Isaura mediante a soma enorme de dez contos de réis.
Miguel tinha pronta essa quantia, e lha tinha vindo meter nas
mãos, reclamando a liberdade de sua filha. Leôncio reconhecia também,
e nem podia contestar, que sempre fora voto de sua falecida mãe deixar
livre Isaura por sua morte. Por outro lado Malvina, sabedora de sua
paixão e de seus sinistros intentos sobre a cativa, justamente irritada,
exigia com império a imediata alforria da mesma. Não restava ao
mancebo meio algum de se tirar decentemente de tantas dificuldades
senão libertando Isaura. Mas Leôncio não podia se conformar com
semelhante idéia. O violento e cego amor, que Isaura lhe havia inspirado,
o incitava a saltar por cima de todos os obstáculos, a arrostar todas as
leis do decoro e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua
meiga e carinhosa esposa, para obter a satisfação de seus frenéticos
desejos. Resolveu pois cortar o nó, usando de sua prepotência,
e protelando indefinidamente o cumprimento de seu dever, assentou de
afrontar com cínica indiferença e brutal sobranceria as justas exigências e
exprobrações de Malvina.
Quando esta, depois de deixar passar alguns dias em respeito à
dor de que julgava seu marido acabrunhado, lhe tocou naquele melindroso
negócio:

- Temos tempo, Malvina, - respondeu‑lhe o marido com toda a
calma. - É‑me preciso em primeiro lugar dar balanço e fazer o inventário
da casa de meu pai. Tenho de ir à corte arrecadar os seus papéis e
tomar conhecimento do estado de seus negócios. Na volta e com mais
vagar trataremos de Isaura.

Ao ouvir esta resposta o rosto de Malvina cobriu‑se de palidez
mortal; ela sentiu esfriar‑lhe o coração apertado entre as mãos geladas do
mais pungente dissabor, como se ali se esmoronasse de repente todo o
sonhado castelo de suas aventuras conjugais. Ela esperava que o
marido fulminado por tão doloroso golpe naqueles dias de amarga
meditação e abatimento, retraindo‑se no santuário da consciência,
reconhecesse seus erros e desvanos, implorasse o perdão deles, e se
propusesse a entrar nas sendas do dever e da honestidade. As frias
desculpas e fúteis evasivas do marido vieram submergi‑la de chofre
no mais amargo e profundo desalento.

- Como?! - exclamou ela com um acento que exprimia a um
tempo altiva indignação e o mais entranhado desgosto. - Pois ainda
hesitas em cumprir tão sagrado dever?... se tivesses alma, Leôncio,
terias considerado Isaura como tua irmã, pois bem sabes que tua mãe a
amava e idolatrava como a uma filha querida, e que era seu mais
ardente desejo libertá‑la por sua morte e deixar‑lhe um legado
considerável, que lhe assegurasse o futuro. Sabes também que teu pai
havia feito promessa solene ao pai de Isaura de dar‑lhe alforria pela
quantia de dez contos de réis, e Miguel já te veio pôr nas mãos essa
exorbitante quantia. Sabes tudo isto, e ainda vens com dúvidas e demoras!...
Oh! isto é muito!... não vejo motivo nenhum para demorar o cumprimento de
um dever de que há muito tempo já devias ter‑te desempenhado.

- Mas para que semelhante pressa?... não me dirás Malvina? -
replicou Leôncio com a maior brandura e tranqüilidade. - De que
proveito pode ser agora a liberdade para Isaura? porventura não
está ela aqui bem? é maltratada?... sofre alguma privação?... não
continua a ser considerada antes como uma filha da família, do que como
uma escrava? queres que desde já a soltemos à toa por esse mundo?...
assim decerto não cumpriremos o desejo de minha mãe, que tão solicita
se mostrava pela sorte futura de Isaura. Não, minha Malvina; não
devemos por ora entregar Isaura a si mesma. É preciso primeiro assegurar‑lhe
uma posição decente, honesta e digna de sua beleza e educação,
procurando‑lhe um bom marido, e isso não se arranja assim de um dia
para outro.

- Que miserável desculpa, meu amigo!... Isaura por ora não
precisa de marido para protegê‑la; tem o pai, que é homem muito de bem,
e acaba de dar provas de quanto adora sua filha. Entreguemo‑la ao
senhor Miguel, que ficará em muito boas mãos, e debaixo de muito boa
sombra.

- Pobre do senhor Miguel! - replicou Leôncio com sorriso
desdenhoso. - Terá bons desejos, não duvido; mas onde estão os meios,
de que dispõe, para fazer a felicidade de Isaura, principalmente agora
em que decerto empenhou os cabelos da cabeça para arranjar a alforria
da filha, se é que isso não proveio de esmolas, que lhe fizeram, como
me parece mais certo.

Por única resposta Malvina abanou tristemente a cabeça e suspirou.
Todavia quis ainda acreditar na sinceridade das palavras de seu marido,
fingiu‑se satisfeita e retirou‑se sem dar mostras de agastamento. Não
podia, porém, prolongar por mais tempo aquela situação para ela tão
humilhante, tão cheia de ansiedade e desgosto, e no outro dia insistiu
ainda com mais força sobre o mesmo objeto. Teve em resposta as
mesmas evasivas e moratórias. Leôncio afetava mesmo tratar desse
negócio com certa indiferença desdenhosa, como quem estava
definitivamente resolvido a fazer o que quisesse. Malvina desta vez não
pôde conter‑se, e rompeu com seu marido. Este, como já friamente
havia deliberado, aparou os raios da cólera feminina no escudo de uma
imprudência cínica e galhofeira, o que levou ao último grau de
exacerbação a cólera e o despeito de Malvina.
No outro dia Malvina, sem dar satisfação alguma a quem quer que
fosse, deixava precipitadamente a casa de Leôncio, e partia em companhia
de seu irmão Henrique a caminho do Rio de Janeiro, jurando no
auge da indignação nunca mais pôr os pés naquela casa, onde era tão
vilmente ultrajada, e varrer para sempre da lembrança a imagem de seu
desleal e devasso marido. No assomo do despeito não calculava se teria
forças bastantes para levar a efeito aqueles frenéticos juramentos,
inspirados pela febre do ciúme e da indignação; ignorava que nas
almas tenras e bondosas como a sua o ódio se desvanece muito mais
depressa do que o amor; e o amor, que Malvina consagrava a Leôncio, a
despeito de seus desmandos e devassidões, era muito mais forte do
que o seu ressentimento, por mais justo que este fosse.
Leôncio por seu lado, levando por diante o seu plano de opor aos
assomos da esposa a mais inerte e cínica indiferença, viu de braços
cruzados e sem fazer a minima observação, os preparativos daquela
rápida viagem, e recostado ao alpendre, fumando indolentemente o seu
charuto, assistiu à partida de sua mulher, como se fora o mais
indiferente dos hóspedes.
Entretanto, essa indiferença de Leôncio nada tinha de natural e
sincera; não que ele sentisse pesar algum pela brusca partida de sua
mulher; pelo contrário, era júbilo, que sentia com a realização daquela
caprichosa resolução de Malvina, que assim lhe abandonava o campo
inteiramente livre de embaraços, para prosseguir em seus nefandos
projetos sobre a infeliz Isaura. Com aquele fingido pouco‑caso, conseguia
disfarçar o prazer e satisfação, em que lhe transbordava o coração; e
como era aforismo adotado e sempre posto em prática por ele, posto
que em circunstâncias menos graves, - que contra as cóleras e
caprichos femininos não há arma mais poderosa do que muito
sangue‑frio e pouco‑caso, Malvina não pôde descobrir no fundo daquela
afetada indiferença o júbilo intenso em que nadava a alma de seu marido.
O que era feito porém da nobre e infeliz Isaura durante esses
longos dias de luto, de consternação, de ansiedade e dissabores?
Desde que ouviu a leitura da carta, em que se noticiava a morte do
comendador, Isaura perdeu todas as lisonjeiras esperanças que um momento
antes Miguel fizera desabrochar em seu coração. Transida de horror, compreendeu
que um destino implacável a entregava vítima indefesa entre as mãos de seu tenaz
e desalmado perseguidor. Sabedora da miseranda sorte de sua mãe, não encontrava
em sua imaginação abalada outro remédio a tão cruel situação senão resignar‑se e
preparar‑se para o mais atroz dos martírios. Um cruel desalento, um pavor
mortal apoderou‑se de seu espírito, e a infeliz, pálida, desfeita, e como
que alucinada, ora vagava à toa pelos campos, ora escondida nas mais
espessas moitas do pomar, ou nos mais sombrios recantos das alcovas,
passava horas e horas entre sustos e angústias, como a tímida lebre,
que vê pairando no céu a asa sinistra do gavião de garras sangrentas.
Quem poderia ampará‑la? onde poderia encontrar proteção contra as
tirânicas vontades de seu libertino e execrável senhor? Só duas pessoas
poderiam ter por ela comiseração e interesse; seu pai e Malvina. Seu
pai, obscuro e pobre feitor, não tendo ingresso em casa de Leôncio, e
só podendo comunicar‑se com ela a custo e furtivamente, em pouco ou
nada podia valer‑lhe. Malvina, que sempre a havia tratado com tanta
bondade e carinho, ai! a própria Malvina, depois da cena escandalosa
em que colhera seu marido, dirigindo a Isaura palavras enternecidas,
começou a olhá‑la com certa desconfiança e afastamento, terrível efeito
do ciúme, que torna injustas e rancorosas as almas ainda as mais cândidas
e benevolentes A senhora, com o correr dos dias, tornava‑se cada
vez menos tratável e benigna para com a escrava, que antes havia
tratado com carinho e intimidade quase fraternal.
Malvina era boa e confiante, e nunca teria duvidado da inocência
de Isaura, se não fosse Rosa, sua terrível êmula e figadal inimiga.
Depois do desaguisado, de que Isaura foi causa inocente, Rosa ficou sendo
a mucama ou criada da câmara de Malvina, e esta às vezes desabafava
em presença da maligna mulata os ciúmes e desgostos que lhe ferviam
e transvazavam do coração.

- Sinhá está‑se fiando muito naquela sonsa... - dizia‑lhe a
maliciosa rapariga. - Pois fique certa que não são de hoje esses namoricos;
há muito tempo que eu estou vendo essa impostora, que diante da
sinhá se faz toda simplória, andar‑se derretendo diante de sinhô moço.
Ela mesmo é que tem a culpa de ele andar assim com a cabeça virada.

Estes e outros quejandos enredos, que Rosa sabia habilmente
insinuar nos ouvidos de sua senhora, eram bastantes para desvairar
o espírito de uma cândida e inexperiente moça como Malvina, e foram
produzindo o resultado que desejava a perversa mulatinha.
Acabrunhada com aquele novo infortúnio, Isaura fez algumas
tentativas para achegar‑se de sua senhora, e saber o motivo por que lhe
retirava a afeição e confiança, que sempre lhe mostrara, e a fim de
poder manifestar sua inocência. Mas era recebida com tal frieza
e altivez, que a infeliz recuava espavorida para de novo ir mergulhar‑se mais
fundo ainda no pego de suas angústias e desalentos.
Todavia, enquanto Malvina se conservava em casa, era sempre
uma salvaguarda, uma sombra protetora, que amparava Isaura contra
as importunações e brutais tentativas de Leôncio. Por menor que fosse
o respeito, que lhe tinha o marido, ela não deixava de ser um poderoso
estorvo ao menos contra os atos de violência, que quisesse pôr em
prática para conseguir seus execrandos fins. Isaura ponderava isso tudo,
e é custoso fazer‑se idéia do estado de terror e desfalecimento em que
ficou aquela pobre alma quando viu partir sua senhora, deixando‑a
inteiramente ao desamparo, entregue sem defesa aos insanos e bárbaros
caprichos daquele que era seu senhor, amante e algoz ao mesmo tempo.
De feito, Leôncio mal viu sumir‑se a esposa por trás da última
colina, não podendo conter mais a expansão de seu satânico júbilo, tratou
logo de pôr o tempo em proveito, e pôs‑se a percorrer toda a casa em
procura de Isaura. Foi enfim dar com ela no escuro recanto de uma
alcova, estendida por terra, quase exânime, banhada em pranto e
arrancando do peito soluços convulsivos.
Poupemos ao leitor a narração da cena vergonhosa que aí se deu.
Contentemo‑nos com dizer que Leôncio esgotou todos os meios brandos
e suasivos ao seu alcance para convencer a rapariga que era do
interesse e dever dela render‑se a seus desejos. Fez as mais esplêndidas
promessas, e os mais solenes protestos; abaixou‑se até às mais humildes
súplicas, e arrastou‑se vilmente aos pés da escrava, de cuja boca não
ouviu senão palavras amargas, e terríveis exprobrações; e vendo enfim
que eram infrutíferos todos esses meios, retirou‑se cheio de cólera,
vomitando as mais tremendas ameaças.
Para dar a essas ameaças começo de execução, nesse mesmo dia
mandou pô‑la trabalhando entre as fiandeiras, onde a deixamos no capítulo
antecedente. Dali teria de ser levada para a roça, da roça para o tronco,
do tronco para o pelourinho, e deste certamente para o túmulo,
se teimasse em sua resistência às ordens de seu senhor.





Capítulo 9

Leôncio impaciente e com o coração ardendo nas chamas de uma
paixão febril e delirante não podia resignar‑se a adiar por mais tempo a
satisfação de seus libidinosos desejos. Vagando daqui para ali por toda a
casa como quem dava ordens para reformar o serviço doméstico, que
dai em diante ia correr todo por sua conta, não fazia mais do que espreitar
todos os movimentos de Isaura, procurando ocasião de achá‑la a
sós para insistir de novo e com mais força em suas abomináveis
pretensões. De uma janela viu as escravas fiandeiras atravessarem o
pátio para irem jantar, e notou a ausência de Isaura.

- Bom!... vai tudo às mil maravilhas, murmurou Leôncio com
satisfação; nesse momento passava‑lhe pela mente a feliz lembrança de
mandar o feitor levar as outras escravas para o cafezal, ficando ele
quase a sós com Isaura no meio daqueles vastos e desertos edifícios.

Dir‑me‑ão que, sendo Isaura uma escrava, Leôncio, para achar‑se a
sós com ela não precisava de semelhantes subterfúgios, e nada mais
tinha a fazer do que mandá‑la trazer à sua presença por bem ou por
mal. Decerto ele assim podia proceder, mas não sei que prestígio tem,
mesmo em uma escrava, a beleza unida à nobreza da alma, e à
superioridade da inteligência, que impõe respeito aos entes ainda
os mais perversos e corrompidos. Por isso Leôncio, a despeito de todo o
seu cinismo e obcecação, não podia eximir‑se de render no fundo
d`alma certa homenagem à beleza e virtudes daquela escrava excepcional,
e de tratá‑la com mais alguma delicadeza do que às outras.

- Isaura, - disse Leôncio, continuando o diálogo que deixamos
apenas encetado, - fica sabendo que agora a tua sorte está inteiramente entre
as minhas mãos.

- Sempre esteve, senhor, - respondeu humildemente Isaura.

- Agora mais que nunca. Meu pai é falecido, e não ignoras que
sou eu o seu único herdeiro. Malvina por motivos, que sem dúvida terás
adivinhado, acaba de abandonar‑me, e retirou‑se para a casa de seu
pai. Sou eu, pois, que hoje unicamente governo nesta casa, e disponho
do teu destino. Mas também, Isaura, de tua vontade unicamente
depende a tua felicidade ou a tua perdição.

- De minha vontade!... oh! não, senhor; minha sorte depende
unicamente da vontade de meu senhor.

- E eu bem desejo - replicou Leôncio com a mais terna inflexão
de voz, - com todas as forças de minha alma, tornar‑te a mais feliz das
criaturas; mas como, se me recusas obstinadamente a felicidade, que tu,
só tu me poderias dar?...

- Eu, senhor?! oh! por quem é, deixe a humilde escrava em seu
lugar; lembre‑se da senhora D. Malvina, que é tão formosa, tão boa, e
que tanto lhe quer bem. É em nome dela que lhe peço, meu senhor;
deixe de abaixar seus olhos para uma pobre cativa, que em tudo está
pronta para lhe obedecer, menos nisso, que o senhor exige...

- Escuta, Isaura; és muito criança, e não sabes dar ás coisas o
devido peso. Um dia, e talvez já tarde, te arrependerás de ter rejeitado
o meu amor.,

- Nunca! - exclamou Isaura. - Eu cometeria uma traição
infame para com minha senhora, se desse ouvidos às palavras amorosas
de meu senhor.

- Escrúpulos de criança!.., escuta ainda, Isaura. Minha mãe vendo
a tua linda figura e a viveza de teu espírito, - talvez por não ter filha
alguma, - desvelou‑se em dar‑te uma educação, como teria dado a
uma filha querida. Ela amava‑te extremosamente, e se não deu‑te a
liberdade foi com o receio de perder‑te; foi para conservar‑te sempre
junto de si. Se ela assim procedia por amor, como posso eu largar‑te de
mão, eu que te amo com outra sorte de amor muito mais ardente e
exaltado, um amor sem limites, um amor que me levará à loucura ou
ao suicídio, se não... mas que estou a dizer!... Meu pai, - Deus lhe
perdoe, - levado por uma sórdida avareza, queria vender tua liberdade
por um punhado de ouro, como se houvesse ouro no mundo que
valesse os inestimáveis encantos, de que os céus te dotaram.
Profanação!... eu repeliria, como quem repele um insulto, todo aquele
que ousasse vir oferecer‑me dinheiro pela tua liberdade. Livre és tu,
porque Deus não podia formar um ente tão perfeito para votá‑lo à
escravidão. Livre és tu, porque assim o queria minha mãe, e assim o quero
eu. Mas, Isaura, o meu amor por ti é imenso; eu não posso, eu não
devo abandonar‑te ao mundo. Eu morreria de dor, se me visse forçado a
largar mão da jóia inestimável, que o céu parece ter‑me destinado, e
que eu há tanto tempo rodeio dos mais ardentes anelos de minha
alma...

- Perdão, senhor; eu não posso compreendé‑lo; diz‑me que sou
livre, e não permite que eu vá para onde quiser, e nem ao menos que
eu disponha livremente de meu coração?!

- Isaura, se o quiseres, não serás somente livre; serás a senhora,
a deusa desta casa. Tuas ordens, quaisquer que sejam, os teus menores
caprichos serão pontualmente cumpridos; e eu, melhor do que faria o
mais terno e o mais leal dos amantes, te cercarei de todos os cuidados e
carinhos, de todas as adorações, que sabe inspirar o mais ardente e
inextinguível amor. Malvina me abandona!... tanto melhor! em que
dependo eu dela e de seu amor, se te possuo?! Quebrem‑se de uma vez
para sempre esses laços urdidos pelo interesse! esqueça‑se para sempre
de mim, que eu nos braços de minha Isaura encontrarei sobeja ventura
para poder lembrar‑me dela.

- O que o senhor acaba de dizer me horroriza. Como se pode
esquecer e abandonar ao desprezo uma mulher tão amante e carinhosa,
tão cheia de encantos e virtudes, como sinhá Malvina? Meu senhor,
perdoe‑me se lhe falo com franqueza; abandonar uma mulher bonita,
fiel e virtuosa por amor de uma pobre escrava, seria a mais feia das
ingratidões.

A tão severa e esmagadora exprobração, Leôncio sentiu revoltar‑se
o seu orgulho. escrava insolente! - bradou cheio de cólera. - Que
eu suporte sem irritar‑me os teus desdéns e repulsas, ainda vá:
mas repreensões!... com quem pensas tu que falas?...

- Perdão! senhor!... exclamou Isaura aterrada e arrependida das
palavras que lhe tinham escapado.

- E, entretanto, se te mostrasses mais branda comigo... mas não,
é muito aviltar‑me diante de uma escrava; que necessidade tenho eu de
pedir aquilo que de direito me pertence? Lembra‑te, escrava ingrata e
rebelde, que em corpo e alma me pertences, a mim só e a mais
ninguém. És propriedade minha; um vaso, que tenho entre as minhas
mãos e que posso usar dele ou despedaçá‑lo a meu sabor,

- Pode despedaçá‑lo, meu senhor; bem o sei; mas, por piedade,
não queira usar dele para fins impuros e vergonhosos. A escrava também
tem coração, e não é dado ao senhor querer governar os seus afetos.

- Afetos!... quem fala aqui em afetos?! Podes acaso dispor deles?...

- Não, por certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém pode
escravizá‑lo, nem o próprio dono.

- Todo o teu ser é escravo; teu coração obedecerá, e se não
cedes de bom grado, tenho por mim o direito e a força... mas para
quê? para te possuir não vale a pena empregar esses meios extremos.
Os instintos do teu coração são rasteiros e abjetos como a tua condição;
para te satisfazer far‑te‑ei mulher do mais vil, do mais hediondo de
meus negros.

- Ah! senhor! bem sei de quanto é capaz. Foi assim que seu pai
fez morrer de desgosto e maus‑tratos a minha pobre mãe; já vejo que
me é destinada a mesma sorte. Mas fique certo de que não me faltarão
nem os meios nem a coragem para ficar para sempre livre do senhor e
do mundo.

- Oh! - exclamou Leôncio com satânico sorriso, - já chegaste a
tão subido grau de exaltação e romantismo!... isto em uma escrava não
deixa de ser curioso. Eis o proveito que se tira de dar educação a tais
criaturas! Bem mostras que és uma escrava, que vives de tocar piano e
ler romances. Ainda bem que me preveniste; eu saberei gelar a ebulição
desse cérebro escaldado. Escrava rebelde e insensata, não terás mãos
nem pés para pôr em prática teus sinistros intentos. Olá, André, - bra‑
dou ele e apitou com força no cabo do seu chicote.

- Senhor! - bradou de longe o pajem, e um instante depois estava
em presença de Leôncio.

- André, - disse‑lhe este com voz seca e breve - traze‑me já
aqui um tronco de pés e algemas com cadeado.

- Virgem santa! - murmurou consigo André espantado. - Para
que será tudo isto?... ah! pobre Isaura!...

- Ah! meu senhor, por piedade! - exclamou Isaura, caindo de
joelhos aos pés de Leôncio, e levantando as mãos ao céu em contorções
de angústia; pelas cinzas ainda quentes de seu pai, há poucos dias
falecido, pela alma de sua mãe, que tanto lhe queria, não martirize a
sua infeliz escrava. Acabrunhe‑me de trabalhos, condene‑me ao serviço
o mais grosseiro e pesado, que a tudo me sujeitarei sem murmurar; mas
o que o senhor exige de mim, não posso, não devo fazê‑lo, embora
deva morrer.

- Bem me custa tratar‑te assim, mas tu mesma me obrigas a este
excesso. Bem vês que me não convém por modo nenhum perder uma
escrava como tu és. Talvez ainda um dia me serás grata por ter‑te
impedido de matar‑te a ti mesma.

- Será o mesmo! - bradou Isaura levantando‑se altiva, e com o
acento rouco e trémulo da desesperação, - não me matarei por minhas
próprias mãos, mas morrerei às mãos de um carrasco.

Neste momento chega André trazendo o tronco e as algemas, que
deposita sobre um banco, e retira‑se imediatamente.
Ao ver aqueles bárbaros e aviltantes instrumentos de suplício
turvaram‑se os olhos a Isaura, o coração se lhe enregelou de pavor, as
pernas lhe desfaleceram, caiu de joelhos e debruçando‑se sobre o
tamborete, em que fiava, desatou uma torrente de lágrimas.

- Alma de minha sinhá velha! - exclamou com voz entrecortada
de soluços, - valei‑me nestes apuros; valei‑me lá do céu, onde estais,
como me valíeis cá na Terra.

- Isaura, - disse Leôncio com voz áspera apontando para os
instrumentos de suplício, - eis ali o que te espera, se persistes em teu
louco emperramento. Nada mais tenho a dizer‑te; deixo‑te livre ainda, e
fica‑te o resto do dia para refletires. Tens de escolher entre o meu amor
e o meu ódio. Qualquer dos dois, tu bem sabes, são violentos e
poderosos. Adeus!...

Quando Isaura sentiu que seu senhor se havia ausentado, ergueu o
rosto, e levantando ao céu os olhos e as mãos juntas, dirigiu à Rainha
dos anjos a seguinte fervorosa prece, exalada entre soluços do mais
íntimo de sua alma:

- Virgem senhora da Piedade, Santíssima Mãe de Deus!... vós
sabeis se eu sou inocente, e se mereço tão cruel tratamento. Socorrei‑me
neste transe aflitivo, porque neste mundo ninguém pode valer‑me.
Livrai‑me das garras de um algoz, que ameaça não só a minha vida,
como a minha inocência e honestidade. Iluminai‑lhe o espírito e
infundi‑lhe no coração brandura e misericórdia para que se compadeça
de sua infeliz cativa. É uma humilde escrava que com as lágrimas
nos olhos e a dor no coração vos roga pelas vossas dores sacrossantas,
pelas chagas de vosso Divino Filho: valei‑me por piedade.

Quanto Isaura era formosa naquela suplicante e angustiosa
atitude! oh! muito mais bela do que em seus momentos de serenidade e
prazer!... se a visse então, Leôncio talvez sentisse abrandar‑se o férreo e
obcecado coração. Com os olhos arrasados em lágrimas, que em fio lhe
escorregavam pelas faces desbotadas, entreaberta a boca melancólica,
que lhe tremia ao passar da prece murmurada entre soluços, atiradas
em desordem pelas espáduas as negras e opulentas madeixas, voltando
para o céu o busto mavioso plantado sobre um colo escultural,
ofereceria ao artista inspirado o mais belo e sublime modelo para a
efígie da Mãe Dolorosa, a quem nesse momento dirigia suas ardentes
súplicas. Os anjos do céu, que por certo naquele instante adejavam em
torno dela agitando as asas de ouro e carmim, não podiam deixar de
levar tão férvida e dolorosa prece aos pés do trono da Consoladora dos
aflitos.
Absorvida em suas mágoas Isaura não viu seu pai, que, entrando
pelo salão a passos sutis e cautelosos, encaminhava‑se para ela.

- Oh! felizmente ela ali está, - murmurava o velho, - o algoz
aqui também andava! oh! pobre Isaura!... que será de ti?!...

- Meu pai por aqui!... - exclamou a infeliz ao avistar Miguel. -
Venha, venha ver a que estado reduzem sua filha.

- Que tens, filha?... que nova desgraça te sucede?

- Não está vendo, meu pai?... eis ali a sorte, que me espera, -
respondeu ela apontando para o tronco e as algemas, que ali estavam
ao pé dela.

- Que monstro, meu Deus!... mas eu já esperava por tudo isto...

- É esta a liberdade que pretende dar àquela que a mãe dele
criou com tanto amor e carinho. O mais cruel e aviltante cativeiro, um
martírio continuado da alma e do corpo, eis o que resta à sua desventurada
filha... Meu pai, não posso resistir a tanto sofrimento!... restava‑me
um recurso extremo; esse mesmo vai‑me ser negado. Presa, algemada,
amarrada de pés e mãos!... oh!... meu pai! meu pai!... isto é horrível!...
Meu pai, a sua faca, - acrescentou depois de ligeira pausa com voz
rouca e olhar sombrio, - preciso de sua faca.

- Que pretendes fazer com ela, Isaura? que louco pensamento é
o teu?...

- Dê‑me essa faca, meu pai; eu não usarei dela senão em caso
extremo; quando o infame vier lançar‑me as mãos para deitar‑me esses
ferros, farei saltar meu sangue ao rosto vil do algoz.
- Não, minha filha; não serão necessários tais extremos. Meu
coração já adivinhava tudo isto, e já tenho tudo prevenido. O dinheiro,
que não serviu para alcançar a tua liberdade, vai agora prestar‑nos para
arrancar‑te às garras desse monstro. Tudo está já disposto, Isaura. Fujamos.

- Sim, meu pai, fujamos; mas como? para onde?

- Para longe daqui, seja para onde for; e já, minha filha, enquanto não
suspeitem coisa alguma, e não te carregam de ferros.

- Ah! meu pai, tenho bem medo; se nos descobrem, qual será a
minha sorte!...

- A empresa é arriscada, não posso negar‑te; mas ânimo. Isaura;
é nossa única tábua de salvação; agarremo‑nos a ela com fé, e
encomendemo‑nos à divina providência. Os escravos estão na roça; o
feitor levou para o cafezal tuas companheiras, teu senhor saiu a
cavalo com o André; não há talvez em toda a casa senão alguma negra lá pelos
cantos da cozinha. Aproveitemos a ocasião, que parece mesmo nos vir das
mãos de Deus, no momento em que aqui estou chegando. Eu já preveni tudo.
Lá no fundo do quintal à beira do rio está amarrada uma canoa; é quanto nos
basta. Tu sairás primeiro e irás lá ter por dentro do quintal; eu sairei por fora
alguns instantes depois e lá nos encontraremos. Em menos de uma hora estaremos
em Campos, onde nos espera um navio, de que é capitão um amigo meu, e que
tem de seguir viagem para o Norte nesta madrugada. Quando romper o dia,
estaremos longe do algoz que te persegue. Vamo‑nos, Isaura; talvez por
esse mundo encontremos alguma alma piedosa, que melhor do que eu te
possa proteger.

- Vamo‑nos, meu pai; que posso eu recear?... posso acaso ser
mais desgraçada do que já sou?...

Isaura, cosendo‑se com a sombra do muro, que rodeava o pátio,
abriu o portão, que dava para o quintal, e desapareceu. Momentos depois
Miguel rodeando por fora os edifícios costeava o quintal,
e achava‑se com ela à margem do rio.
A canoa vogando sutilmente bem junto à barranca, impelida pelo
braço vigoroso de Miguel, em poucos minutos perdeu de vista a
fazenda.





Capitulo 10

Já são passados mais de dois meses depois da fuga de Isaura, e
agora, leitores, enquanto Leôncio emprega diligências extraordinárias e
meios extremos, e desatando os cordões da bolsa, põe em atividade a
polícia e uma multidão de agentes particulares para empolgar de novo a
presa, que tão sorrateiramente lhe escapara, façamo‑nos de vela para as
províncias do Norte, onde talvez primeiro que ele deparemos com a
nossa fugitiva heroína.
Estamos no Recife. É noite e a formosa Veneza da América do Sul,
coroada de um diadema de luzes, parece surgir dos braços do oceano,
que a estreita em carinhoso amplexo e a beija com amor. É uma noite
festiva: em uma das principais ruas nota‑se um edifício esplendidamente
iluminado, para onde concorre grande número de cavalheiros e damas
das mais distintas e opulentas classes. É um lindo prédio onde uma
sociedade escolhida costuma dar brilhantes e concorridos saraus. Alguns
estudantes dos mais ricos e elegantes, também costumam descer da
velha Olinda em noites determinadas, para ali virem se espanejar entre os
esplendores e harmonias, entre as sedas e perfumes do salão do baile; e
aos meigos olhares e angélicos sorrisos das belas e espirituosas pernambucanas,
esquecerem por algumas horas os duros bancos da Academia e os carunchosos
praxistas.
Suponhamos que também somos adeptos daquele templo de
Terpsícore, entremos por ele a dentro, e observemos o que por aí vai de
curioso e interessante. Logo na primeira sala encontramos um grupo de
elegantes mancebos, que conversam com alguma animação. Escutemo‑los.

- É mais uma estrela que vem brilhar nos salões do Recife, -
dizia Álvaro, - e dar lustre a nossos saraus. Não há ainda três meses,
que chegou a esta cidade, e haverá pouco mais de um, que a conheço.
Mas creia‑me, Dr. Geraldo, é ela a criatura mais nobre e encantadora
que tenho conhecido. Não é uma mulher; é uma fada, é um anjo, é
uma deusa!...

- Cáspite! - exclamou o Dr. Geraldo; fada! anjo! deusa!... São
portanto três entidades distintas, mas por fim de contas verás que não
passa de uma mulher verdadeira. Mas dize‑me cá, meu Álvaro; esse
anjo, fada, deusa, mulher ou o que quer que seja, não te disse de onde
veio, de que família é, se tem fortuna, etc., etc., etc.?

- Pouco me importo com essas coisas, e poderia responder‑te
que veio do céu, que é da família dos anjos, e que tem uma fortuna
superior a todas as riquezas do mundo: uma alma pura, nobre e
inteligente, e uma beleza incomparável. Mas sempre te direi que o que
sei de positivo a respeito dela é que veio do Rio Grande do Sul em
companhia de seu pai, de quem é ela a única família; que seus meios são
bastantemente escassos, mas que em compensação ela é linda como
os anjos, e tem o nome de Elvira,

- Elvira! - observou o terceiro cavalheiro - bonito nome na
verdade!... mas não poderás dizer‑nos, Álvaro, onde mora a tua fada?...

- Não faço mistério disso; mora com seu pai em uma pequena
chácara no bairro de Santo Antônio, onde vivem modestamente,
evitando relações, e aparecendo mui raras vezes em público. Nessa
chácara, escondida entre moitas de coqueiros e arvoredos, vive ela
como a violeta entre a folhagem, ou como fada misteriosa em uma gruta
encantada.

- É célebre! - retorquiu o doutor - mas como chegaste a descobrir
essa ninfa encantada, e a ter entrada em sua gruta misteriosa?

- Eu vos conto em duas palavras. Passando eu um dia a cavalo
por sua chácara, avistei‑a sentada em um banco do pequeno jardim da
frente. Surpreendeu‑me sua maravilhosa beleza. Como viu que eu a
contemplava com demasiada curiosidade, esgueirou‑se como uma
borboleta entre os arbustos floridos e desapareceu. Formei o firme
propósito de vê‑la e de falar‑lhe, custasse o que custasse. Por mais, porém,
que indagasse por toda a vizinhança, não encontrei uma só pessoa que
se relacionasse com ela e que pudesse apresentar‑me. Indaguei por fim
quem era o proprietário da chácara, e fui ter com ele. Nem esse podia
dar‑me informações, nem servir‑me em coisa alguma. O seu inquilino
vinha todos os meses pontualmente adiantar o aluguel da chácara; eis
tudo quanto a respeito dele sabia. Todavia continuei a passar todas as
tardes por defronte do jardim, mas a pé para melhor poder
surpreendêla e admirá‑la; quase sempre, porém, sem resultado. Quando
acontecia estar no jardim, esquivava‑se sempre às minhas vistas como da
primeira vez. Um dia, porém, quando eu passava, caiu‑lhe o lenço ao
levantar‑se do banco; a grade estava aberta; tomei a liberdade de penetrar
no jardim, apanhei o lenço, e corri a entregar‑lho, quando já ela punha o pé
na soleira de sua casa. Agradeceu‑me com um sorriso tão encantador,
que estive em termos de cair de joelhos a seus pés; mas não mandou‑me
entrar, nem fez‑me oferecimento algum.

- Esse lenço, Álvaro, - atalhou um cavalheiro, - decerto ela o
deixou cair de propósito, para que pudesses vê‑la de perto e falar‑lhe. É
um apuro de romantismo, um delicado rasgo de coquetterie.

- Não creio; não há naquele ente nem sombra de coquetterie;
tudo nela respira candura e singeleza. O certo é que custei a arrancar
meus pés daquele lugar, onde uma força magnética me retinha, e que
parecia rescender um misterioso eflúvio de amor, de pureza e de aventura...

Álvaro pára em sua narrativa, como que embevecido em tão
suaves recordações.

- E ficaste nisso, Alvaro! - perguntava outro cavalheiro; - o teu
romance está‑nos interessando; vamos por diante, que estou aflito por
ver a peripécia...

- A peripécia?.., oh! essa ainda não chegou, e nem eu mesmo sei
qual será. Esgotei enfim os estratagemas possíveis para ter entrada no
santuário daquela deusa; mas foi tudo baldado. O acaso enfim veio em
meu socorro, e serviu‑me melhor do que toda a minha habilidade e
diligência. Passeando eu uma tarde de carro no bairro de Santo
Antônio, pelas margens do Beberibe, passeio que se tornara para mim uma
devoção, avistei um homem e uma mulher navegando a todo pano em
um pequeno bote.

Instantes depois o bote achou‑se encalhado em um banco de areia.
Apeei‑me imediatamente, e tomando um escaler na praia, fui em socorro dos
dois navegantes que em vão forcejavam por safar a pequena
embarcação. Não podem fazer idéia da deliciosa surpresa que senti, ao
reconhecer nas duas pessoas do bote a minha misteriosa da chácara e
seu pai...

- Por essa já eu esperava; entretanto o lance não deixa de ser
dramático; a história de seus amores com a tal fada misteriosa vai
tomando visos de um poema fantástico.

- Entretanto, é a pura realidade. Como estavam molhados e
enxovalhados, convidei‑os a entrarem no meu carro. Aceitaram depois de
muita relutância, e dirigimo‑nos para a casa deles. É escusado contarvos o
resto desde então, se bem que com algum acanhamento foi‑me
franqueado o umbral da gruta misteriosa.

- E pelo que vejo, - interrogou o doutor, - amas muito essa
mulher?

- Se amo! adoro‑a cada vez mais, e o que é mais, tenho razões
para acreditar que ela... pelo menos não me olha com indiferença.

- Deus queira que não andes embaído por alguma Circe de
bordel, por alguma dessas aventureiras, de que há tantas pelo mundo, e
que, sabendo que és rico, arma laços ao teu dinheiro! Esse afastamento
da sociedade, esse mistério, em que procuram tão cuidadosamente
envolver a sua vida, não abonam muito em favor deles.

- Quem sabe se são criminosos que procuram subtrair‑se às
pesquisas da polícia? - observou um cavalheiro.

- Talvez moedeiros falsos, - acrescentou outro.

- Tenho má‑fé, - continuou o doutor - todas as vezes que vejo
uma mulher bonita viajando em países estranhos em companhia de um
homem, que de ordinário se diz pai ou irmão dela. O pai de tua fada,
Álvaro, se é que é pai, é talvez algum cigano, ou cavalheiro de
indústria, que especula com a formosura de sua filha.

- Santo Deus!... misericórdia! - exclamou Álvaro. - Se eu
adivinhasse que veria a pessoa daquela criatura angélica apreciada
com tanta atrocidade, ou antes tão impiamente profanada, quereria
antes ser atacado de mudez, do que trazê‑la à conversação. Creiam, que
são demasiado injustos para com aquela pobre moça, meus amigos. Eu a
julgaria antes uma princesa destronizada, se não soubesse que é um
anjo do céu. Mas vocês em breve vão vê‑la, e eu e ela estaremos
vingados; pois estou certo que todos a uma voz a proclamarão uma
divindade. Mas o pior é que desde já posso contar com um rival em
cada um de vocês.

- Por minha parte, disse um dos cavalheiros, - pode ficar tranqüilo,
pois sempre tive horror às moças misteriosas.

- E eu, que não sou mais do que um simples mortal, tenho muito
medo de fadas, - acrescentou o outro.

- E como é, perguntou o Dr. Geraldo, - que vivendo ela assim
arredada da sociedade, pôde resolver‑se a deixar a sua misteriosa
solidão, para vir a este baile tão público e concorrido?...

- E quanto não me custou isso, meu amigo! - respondeu
Álvaro. - Veio quase violentada. Há muito tempo que procuro convencê‑la
por todos os modos, que uma senhora jovem e formosa, como é ela,
escondendo seus encantos na solidão, comete um crime, contrário às
vistas do Criador, que formou a beleza para ser vista, admirada e
adorada; pois sou o contrário desses amantes ciumentos e atrabiliários, que
desejariam ter suas amadas escondidas no âmago da terra. Argumentos,
instâncias, súplicas, tudo foi perdido; pai e filha recusavam‑se constantemente
a aparecerem em público, alegando mil diversos pretextos. Vali‑me por fim de um
ardil; fiz‑lhes acreditar que aquele modo de viver retraído e sem contato com
a sociedade em um país, onde eram desconhecidos, já começava a dar que
falar ao público e a atrair suspeitas sobre eles, e que até a polícia começava
a olhá‑los com desconfiança: mentiras, que não deixavam de ter sua plausibilidade...

- E tanta, - interrompeu o doutor. - que talvez não andem
muito longe da verdade.

- Fiz‑lhes ver, - continuou Álvaro, - que por infundadas e fúteis
que fossem tais suspeitas, era necessário arredá‑las de si, e para isso
cumpria‑lhes absolutamente freqüentar a sociedade. Este embuste
produziu o desejado efeito.

- Tanto pior para eles, - retorquiu o doutor; - eis aí um indício
bem mau, e que mais me confirma em minhas desconfianças. Fossem
eles inocentes, e bem pouco se importariam com as suspeitas do
público ou da policia, e continuariam a viver como dantes.

- Tuas suspeitas não têm o menor fundamento, meu doutor. Eles
têm poucos meios, e por isso evitam a sociedade, que realmente, impõe
duros sacrifícios às pessoas desfavorecidas da fortuna, e eles... mas
ei‑los, que chegam... Vejam e convençam‑se com seus próprios olhos.

Entrava nesse momento na ante‑sala uma jovem e formosa dama
pelo braço de um homem de idade madura e de respeitável presença.

- Boa noite, senhor Anselmo!... boa noite, D. Elvira!... felizmente
ei‑los aqui! - isto dizia Álvaro aos recém‑chegados, separando‑se de
seus amigos, e apressurando‑se para cumprimentar a aqueles com toda
a amabilidade e cortesia. Depois oferecendo um braço a Elvira e outro
ao senhor Anselmo, os vai conduzindo para as salas interiores, por onde
já turbilhona a mais numerosa e brilhante sociedade. Os três interlocutores
de Álvaro, bem como muitas outras pessoas, que por ali se achavam,
puseram‑se em ala para verem passar Elvira, cuja presença causava
sensação e murmurinho, mesmo entre os que não estavam prevenidos.

- Com efeito!... é de uma beleza deslumbrante! Que porte de rainha!...

- Que olhos de andaluza!...

- Que magníficos cabelos!

- E o colo!... que colo!... não reparaste?...

- E como se traja com tão elegante simplicidade! - assim murmuravam
entre si os três cavalheiros como impressionados por uma aparição celeste.

- E não reparaste, - acrescentou o Dr. Geraldo, - naquele
feiticeiro sinalzinho, que tem na face direita?... Álvaro tem razão; a sua fada
vai eclipsar todas as belezas do salão. E tem de mais a mais a vantagem
da novidade, e esse prestígio do mistério, que a envolve. Estou ardendo
de impaciência por lhe ser apresentado; desejo admirá‑la mais de espaço.

Neste tom continuaram a conversar, até que, passados alguns minutos,
Álvaro, tendo cumprido a grata comissão de apresentador daquela nova
pérola dos salões, estava de novo entre eles.

- Meus amigos, - disse‑lhes ele com ar triunfante. - convido‑os
para o salão. Quero já apresentar‑lhes D. Elvira para desvanecer de
uma vez para sempre as injuriosas apreensões, que ainda há pouco
nutriam a respeito do ente o mais belo e mais puro, que existe debaixo
do Sol, se bem que estou certo que só com a simples vista ficaram
penetrados de assombro até a medula dos ossos.

Os quatro cavalheiros se retiraram e desapareceram no meio do
turbilhão das salas interiores. Foram, porém, imediatamente substituídos
por um grupo de lindas e elegantes moças, que cintilantes de sedas e
pedrarias como um bando de aves‑do‑paraíso, passeavam conversando.
O assunto da palestra era também D. Elvira; mas o diapasão era totalmente
diverso, e em nada se harmonizava com o da conversação dos
rapazes. Nenhum mal nos fará escutá‑las por alguns instantes.

- Você não saberá dizer‑nos, D. Adelaide, quem é aquela moça,
que ainda há pouco entrou na sala pelo braço do senhor Álvaro?

- Não, D. Laura; é a primeira vez que a vejo, parece‑me que não
é desta terra.

- Decerto; que ar espantado tem ela!... parece uma matuta,
que nunca pisou em um salão de baile; não acha, D. Rosalina?

- Sem dúvida!.., e você não reparou na toilette dela?... meu
Deus!... que pobreza! a minha mucama tem melhor gosto para se trajar.
Aqui a D. Emília é que talvez saiba quem ela é.

- Eu? por quê? é a primeira vez que a vejo, mas o senhor Álvaro
já me tinha dado notícias dela, dizendo que era um assombro de beleza.
Não vejo nada disso; é bonita, mas não tanto, que assombre.

- Aquele senhor Álvaro sempre é um excêntrico, um esquisito;
tudo quanto é novidade o seduz. E onde iria ele escavar aquela pérola,
que tanto o traz embasbacado?...

- Veio de arribação lá dos mares do Sul, minha amiga, e a julgar
pelas aparências não é de todo má.

- Se não fosse aquela pinta negra, que tem na face, seria mais
suportável.

- Pelo contrário, D. Laura; aquele sinal é que ainda lhe dá certa
graça particular...

- Ah! perdão, minha amiga; não me lembrava que você também
tem na face um sinalzinho semelhante; esse deveras fica‑te muito bem,
e dá‑te, muita graça; mas o dela, se bem reparei, é grande demais; não
parece uma mosca, mas sim um besouro, que lhe pousou na face.

- A dizer‑te a verdade, não reparei bem. Vamos, vamos para o
salão; é preciso vê‑la mais de perto, estudá‑la com mais vagar para
podermos dar com segurança a nossa opinião.

E, dito isto, lá se foram elas com os braços enlaçados, formando
como longa grinalda de variegadas flores, que lá se foi serpeando
perder‑se entre a multidão.





Capitulo 11

Álvaro era um desses privilegiados, sobre quem a natureza e a
fortuna parece terem querido despejar à porfia todo o cofre de seus
favores. Filho único de uma distinta e opulenta família, na idade de
vinte e cinco anos, era órfão de pai e mãe, e senhor de uma fortuna de
cerca de dois mil contos.
Era de estatura regular, esbelto, bem feito e belo, mais pela nobre
e simpática expressão da fisionomia do que pelos traços físicos, que
entretanto não eram irregulares. Posto que não tivesse o espírito muito
cultivado, era dotado de entendimento lúcido e robusto, próprio a elevar‑se
à esfera das mais transcendentes concepções. Tendo concluído os
preparatórios, como era filósofo, que pesava gravemente as coisas,
ponderando que a fortuna de que pelo acaso do nascimento era
senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quis para ter uma profissão
qualquer, dedicar‑se ao estudo do Direito. No primeiro ano, enquanto
pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum
prazer nos estudos acadêmicos; mas quando teve de embrenhar‑se no
intrincado labirinto dessa árida e enfadonha casuística do direito positivo,
seu espírito eminentemente sintético recuou enfastiado, e não teve
ânimo de prosseguir na senda encetada. Alma original, cheia de grandes
e generosas aspirações, aprazia‑se mais na indagação das altas questões
políticas e sociais, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar e
interpretar leis e instituições, que pela maior parte, em sua opinião, só
tinham por base erros e preconceitos os mais absurdos.
Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado
dizer que era liberal, republicano e quase socialista.
Com tais idéias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista
exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não
pequena porção da herança de seus pais, tratou logo de emancipá‑los
todos. Como porém Álvaro tinha um espírito nimiamente filantrópico,
conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta
submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus
libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção
confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam resultar
grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro.
A fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e eles
sujeitando‑se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam‑se
de entregar‑se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura a subsistência
e podiam adquirir algum pecúlio, como também poderiam indenizar a Álvaro do
sacrifício, que fizera com a sua emancipação. Original e excêntrico como um
rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade
de um quaker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração
impressionável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância,
e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa
pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados.
Entretanto, Álvaro ainda não havia encontrado até ali a mulher que lhe
devia tocar o coração, a encarnação do tipo ideal, que lhe sorria nos sonhos
vagos de sua poética imaginação. Com tão excelentes e brilhantes predicados,
Álvaro por certo devia ser objeto de grande preocupação no mundo
elegante, e talvez o almejo secreto, que fazia palpitar o coração de mais
de uma ilustre e formosa donzela. Ele, porém, igualmente cortês e
amável para com todas, por nenhuma delas ainda havia dado o mínimo
sinal de predileção.
Pode‑se fazer idéia do desencanto, do assombro, da terrível
decepção que reinou nos círculos das belas pernambucanas ao verem o
vivo interesse e solicitude de que Álvaro rodeava uma obscura e
pobre moça; a deferência com que a tratava, e os entusiásticos elogios
que sem rebuço lhe prodigalizava. Juno e Palas não ficaram tão
despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da formosura.
Já antes daquele sarau, Álvaro em alguns círculos de senhoras
havia falado de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com certa
eloquência apaixonada, que a todas surpreendeu e inquietou. As moças
ardiam por ver aquele protótipo de beleza, e já de antemão choviam sobre a
desconhecida e o seu campeão mil chascos e malignos apodos. Quando, porém,
a viram, apesar dos contrafeitos e desdenhosos sornsos que apenas lhes roçavam
a flor dos lábios, sentiram uma desagradável impressão pungir‑lhes no íntimo
do coração. Peço perdão às belas, de minha rude franqueza; a vaidade é,
com bem raras exceções, companheira inseparável da beleza e onde se
acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha mais ou menos de perto,
não se faz esperar por muito tempo. A beleza da desconhecida era incontestável;
sua modéstia e timidez em nada prejudicavam a singela e nativa elegância
de que era dotada; o traje simples e mesmo pobre em relação ao luxo suntuoso,
que a rodeava assentava‑lhe maravilhosamente, e realçava‑lhe ainda mais
os encantos naturais. O efeito deslumbrante, que Elvira produziu
logo ao primeiro aspecto, e o empenho com que Álvaro procurava fazer
sobressaltar os sedutores atrativos de Elvira, como de propósito para
eclipsar as outras belezas do salão, eram de sobejo para irritar‑lhes a
vaidade e o amor‑próprio. Uma e outra deviam ser naquela noite o alvo de
mil olhares desdenhosos, de mil sorrisos zombeteiros, e acerados
epigramas.
Álvaro nem dava fé da mal disfarçada hostilidade com que ele e a
sua protegida, - podemos dar‑lhe esse nome, - eram acolhidos naquela reunião;
mas a tímida e modesta Elvira, que em parte alguma encontrava lhaneza
e cordialidade, achava‑se mal naquela atmosfera de fingida amabilidade e
cortesania, e em cada olhar via um escárnio desdenhoso, em cada sorriso um
sarcasmo.
Já sabemos quem era Álvaro; agora travemos conhecimento com o
seu amigo, o Dr. Geraldo.
Era um homem de trinta anos; bacharel em Direito e advogado
altamente conceituado no foro do Recife. Entre as relações de
Álvaro era a que cultivava com mais afeto e intimidade; uma inteligência
de bom quilate, firme e esclarecida, um caráter sincero, franco e cheio de
nobreza, davam‑lhe direito a essa predileção da parte de Álvaro. Seu
espírito prático e positivo, como deve ser o de um consumado jurisconsulto,
prestando o maior respeito às instituições e mesmo a todos os preconceitos
e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo com as idéias
excêntricas e reformistas de seu amigo; mas esse antagonismo, longe de perturbar
ou arrefecer a recíproca estima e afeição, que entre eles reinava, servia antes
para alimentá‑las e fortalecê‑las, quebrando a monotonia que deve reinar nas
relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais por
fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o que
uma quer, a outra igualmente quer, e que nada têm a se comunicarem,
enjoadas de tanto se dizerem - amém, - ver‑se‑ão forçadas a recolherem‑se
ao silêncio e a dormitarem uma em face da outra; plácida, cômoda e sonolenta
amizade!... De mais, a contrariedade de tendências e opiniões são sempre de
grande utilidade entre amigos, modificando‑se e temperando‑se umas pelas outras.
É assim que muitas vezes o positivismo e o senso prático do Dr. Geraldo serviam
de corretivo às utopias e exaltações de Álvaro, e vice‑versa.
Da boca do próprio Álvaro já ouvimos por que acaso veio ele conhecer
D. Elvira, e como conseguiu levá‑la ao sarau, a que ainda continuamos a assistir.

- Meu pai, - dizia uma jovem senhora a um homem respeitável,
em cujo braço se arrimava, entrando na ante‑sala, onde ainda nos conservamos
de observação. - Meu pai, fiquemos por aqui um pouco nesta sala, enquanto
está deserta. Ah! meu Deus! - continuou ela com voz abafada, depois de se terem
sentado junto um do outro; - que vim eu aqui fazer, eu pobre escrava, no meio
dos saraus dos ricos e dos fidalgos!... este luxo, estas luzes, estas homenagens,
que me rodeiam, me perturbam os sentidos e causam‑me vertigem. É um crime
que cometo, envolvendo‑me no meio de tão luzida sociedade; é uma traição,
meu pai; eu o conheço, e sinto remorsos... Se estas nobres senhoras
adivinhassem que ao lado delas diverte‑se e dança uma miserável
escrava fugida a seus senhores!... Escrava! - exclamou levantando‑se - escrava!...
afigura‑se‑me que todos estão lendo, gravada em letras negras em minha fronte,
esta sinistra palavra!... fujamos daqui, meu pai, fujamos! esta sociedade
parece estar escarnecendo de mim; este ar me sufoca... fujamos.

Falando assim a moça, pálida e ofegante, lançava a cada frase
olhares inquietos em roda de si, e empuxava o braço de seu pai, repetindo
sempre com ansiosa sofreguidão:

- Vamo‑nos, meu pai; fujamos daqui.

- Sossega teu coração, minha filha, - respondeu o velho procurando
acalmá‑la. - Aqui ninguém absolutamente pode suspeitar quem
tu és. Como poderão desconfiar que és uma escrava, se de todas essas
lindas e nobres senhoras nem pela formosura, nem pela graça e prendas
do espirito nenhuma pode levar‑te a palma?

- Tanto pior, meu pai; sou alvo de todas as atenções, e esses
olhares curiosos, que de todos os cantos se dirigem sobre mim, fazem-me
a cada instante estremecer; desejaria até que a terra se abrisse debaixo de meus
pés, e me sumisse em seu seio.

- Deixa‑te dessas idéias; esse teu medo e acanhamento é que
poderiam nos pôr a perder, se acaso houvesse o mais leve motivo de
receio. Ostenta com desembaraço todos os seus encantos e habilidades,
dança, canta, conversa, mostra‑te alegre e satisfeita, que longe de te
suporem uma escrava, são capazes de pensar que és uma princesa.
Toma ânimo, minha filha, ao menos por hoje; esta também, assim
como é a primeira, será a derradeira vez que passaremos por este
constrangimento; não nos é possível ficar por mais tempo nesta terra, onde
começamos a despertar suspeitas.

- É verdade, meu pai!... que fatalidade!... - respondeu a moça
com uma triste oscilação de cabeça. - Assim pois estamos condenados
a vagar de pais em país, sequestrados da sociedade, vivendo no mistério, e
estremecendo a todo instante, como se o céu nos tivesse marcado
com um ferrete de maldição!... ah! esta partida há de me doer bem no
coração!... não sei que encanto me prende a este lugar. Entretanto, terei
de dizer adeus eterno a... esta terra, onde gozei alguns dias de prazer e
tranqüilidade! Ah! meu Deus!... quem sabe se não teria sido melhor
morrer entre os tormentos da escravidão!...

Neste momento entrava Álvaro na ante‑sala percorrendo‑a com os
olhos, como quem procurava alguém.

- Onde se sumiriam? - vinha ele murmurando; - teriam tido a
triste lembrança de se irem embora?... oh! não; felizmente ei‑los ali! -
exclamou alegremente, dando com os olhos nos dois personagens que
acabamos de ouvir conversar. - D. Elvira, V. Ex.ª. é modesta demais;
vem esconder‑se neste recanto, quando devia estar brilhando no salão,
onde todos suspiram pela sua presença. Deixe isso para as tímidas e
fanadas violetas; à rosa compete alardear em plena luz todos os seus
encantos.

- Desculpe‑me, - murmurou Isaura - uma pobre moça criada
como eu na solidão da roça, e que não está acostumada a tão esplêndidas
reuniões, sente‑se abafada e constrangida...

- Oh! não... há de acostumar‑se, eu espero. As luzes, o esplendor,
as harmonias, os perfumes, constituem a atmosfera em que deve
brilhar a beleza, que Deus criou para ser vista e admirada. Vim buscá‑la
a pedido de alguns cavalheiros, que já são admiradores de V. Ex.ª. Para
interromper a monotonia das valsas e quadrilhas, costumam aqui as senhoras
encantar‑nos os ouvidos com alguma canção, ária, modinha, ou
seja o que for. Algumas pessoas a quem eu disse, - perdoe‑me a
indiscrição, filha do entusiasmo - que V. Ex.ª possui a mais linda voz, e
canta com maestria, mostram o mais vivo desejo de ouvi‑la.

- Eu, senhor Álvaro!... eu cantar diante de uma tão luzida reunião!...
por favor, queira dispensar‑me dessa nova prova. É em seu
próprio interesse que lhe digo; canto mal, sou muito acanhada, e estou
certa que irei solenemente desmenti‑lo. Poupe‑nos a nós ambos essa
vergonha.

- São desculpas, que não posso aceitar, porque já a ouvi cantar,
e creia‑me, D. Elvira, se eu não tivesse a certeza de que a senhora
canta admiravelmente, não seria capaz de expô‑la a um fiasco. Quem
canta como V. Ex.ª não deve acanhar‑se, e eu por minha parte peço‑lhe
encarecidamente que não cante outra coisa, senão aquela maviosa
canção da escrava, que outro dia a surpreendi cantando, e afianço a V. Ex.ª
que arrebatará os ouvintes.

- Por que razão não pode ser outra? essa desperta‑me recordações tão tristes...

- E é talvez por isso mesmo, que é tão linda nos lábios de V. Ex.ª.

- Ai! triste de mim! - suspirou dentro da alma D. Elvira: -
aqueles mesmos que mais me amam, tomam‑se, sem o saber, os meus
algozes!...

Elvira bem quisera escusar‑se a todo transe; cantar naquela ocasião
era para ela o mais penoso dos sacrifícios. Mas não lhe era mais possível relutar,
e lembrando‑se do judicioso conselho de seu pai, não quis
mais ver‑se rogada, e aceitando o braço que Álvaro lhe oferecia, foi por
ele conduzida ao piano, onde sentou‑se com a graça e elegância de
quem se acha completamente familiarizada com o instrumento.
Uma multidão de cabeças curiosas, e de corações palpitando na
mais ansiosa expectação, se apinharam em volta do piano; os cavalheiros
estavam ansiosos por saberem se a voz daquela mulher correspondia à sua
extraordinária beleza; se a fada seria também uma sereia; as
moças esperavam, que ao menos naquele terreno, teriam o prazer de
ver derrotada a sua formidável êmula, e já contavam compará‑la com o
pavão da fábula, queixando‑se a Juno que, o tendo formado a mais
bela das aves, não lhe dera outra voz mais que um guincho áspero e
desagradável.
A conjuntura era delicada e solene; a moça achava‑se na difícil
situação de uma prima‑dona, que, precedida de uma grande reputação,
faz a sua estréia perante um público exigente e ilustrado. Em tomo dela
fazia‑se profundo silêncio; as respirações estavam como que suspensas,
ao passo que parecia ouvir‑se o palpitar de todos os corações no ofego
da expectação. Álvaro, apesar de conhecer já a excelência da voz de
Elvira e sua maestria no canto, não deixava de mostrar‑se inquieto e
comovido. Elvira por sua parte pouco se importaria de cantar bem ou
mal; desejaria até passar pela moça a mais feia, a mais desengraçada e
a mais tola daquela reunião, contanto que a deixassem a um canto
esquecida e sossegada. Dir‑se‑ia que estava debaixo do império de algum
terrível pressentimento. Mas Elvira amava a Álvaro, e grata ao delicado
empenho, com que este, cheio de solicitude e entusiasmo, se esforçava
por apresentá‑la como um protótipo de beleza e de talento aos
olhos daquela brilhante sociedade, para satisfazê‑lo, e não desmentir a
lisonjeira opinião, que propalara a respeito dela, desejava cantar o melhor
que lhe fosse possível. Era ao triunfo de Álvaro que aspirava mais
do que ao seu próprio.
Uma vez sentada ao piano, logo que seus dedos mimosos e
flexíveis, pousando sobre o teclado, preludiaram alguns singelos acordes, a
moça sentiu‑se outra, revelando aos circunstantes maravilhados um
novo e original aspecto de sua formosura. A fisionomia, cuja expressão
habitual era toda modéstia, ingenuidade e candura, animou‑se de luz
insólita; o busto admiravelmente cinzelado, ergueu‑se altaneiro e majestoso;
os olhos extáticos alçavam‑se cheios de esplendor e serenidade; os
seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranqüila
noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como
oceano encapelado; seu colo distendeu‑se alvo e esbelto como o
do cisne que se apresta a desprender os divinais gorjeios. Era o
sopro da inspiração artística, que, roçando‑lhe pela fronte, a
transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das
harmonias do céu. Ali sentia‑se ela rainha sobre seu trono ideal; ali
era Calíope sentada sobre a tripo de sagrada, avassalando o mundo
ao som de enlevadoras e inefáveis harmonias. Das próprias inquietações
e angústias da alma soube ela tirar alento e inspiração para vencer as
dificuldades da árdua situação em que se achava empenhada. Banhou os
lábios com as lágrimas do coração, e a voz lhe rompeu do peito com
tão original e arrebatadora vibração, em modulações tão puras e
suaves, tão repassadas de sublime melancolia, que mais de uma lágrima
viu‑se rolar pelas faces dos freqüentadores daquele templo dos prazeres,
dos risos, e da frivolidade!
Elvira acabava de alcançar um triunfo colossal. Mal terminara o
canto, o salão restrugiu entre os mais estrondosos aplausos, e parecia
que vinha desabando ao ruído atordoador das palmas e dos vivas!
A fada de Álvaro é também uma sereia; - dizia o Dr. Geraldo
a um dos cavalheiros, em cuja companhia já o vimos. - Resume tudo
em si... que timbre de voz tão puro e tão suave; julguei‑me arrebatado
ao sétimo céu, ouvindo as harmonias dos coros angélicos.

- É uma consumada artista... no teatro faria esquecer a Malibran,
e conquistaria reputação européia. Álvaro tem razão; uma criatura assim
não pode ser uma mulher ordinária, e muito menos uma aventureira... A música
dando o sinal para a quadrilha, interrompe a conversação ou não nô‑la deixa
ouvir.

- D. Elvira, - diz Álvaro dirigindo‑se à sua protegida, que já se
achava sentada ao pé de seu pai, - lembre‑se, que me fez a honra de
conceder‑me esta quadrilha.

Elvira esforçou‑se por sorrir e combater o terrível abatimento, que
ao deixar o piano de novo se apoderara de seu espírito.
Tomou o braço de Álvaro, e ambos foram ocupar o seu lugar na
quadrilha.





Capitulo 12

Agora os leitores já sabem, se é que há mais tempo não adivinharam,
que a suposta Elvira não é mais do que a escrava Isaura, assim
como Anselmo não passa do feitor Miguel, ambos os quais são já
nossos conhecidos antigos. Como também sabem que Isaura não só era
dotada de espírito superior, como também recebera a mais fina e
esmerada educação, não lhe estranharam a distinção das maneiras, a
elegância e elevação da linguagem, e outros dotes, que faziam com que
essa escrava excepcional pudesse aparecer e mesmo brilhar no meio da
mais luzida e aristocrática sociedade.
Foi a situação desesperada, em que via sua querida filha, que
inspirou a Miguel o expediente extremo de uma fuga precipitada,
exposta a mil azares e perigos. Lembrava‑se ele com horror do miserando
destino de que em iguais circunstâncias fora vítima a mãe de Isaura, e
bem sabia que Leôncio, tão desalmado como o pai, e ainda mais
corrupto e libertino, era capaz de excessos e atentados ainda maiores.
Tendo perdido a esperança de libertar a filha, entendeu que podia
utilizar‑se da soma, que para esse fim tinha agenciado, empregando‑a em
arrancar a pobre vitima das mãos do algoz, por qualquer meio que fosse.
Bem via que aos olhos do mundo tirar uma escrava da casa de seus
senhores, e proteger‑lhe a fuga, além de ser um crime, era um ato desairoso
e indigno de um homem de bem; mas a escrava era uma filha
idolatrada, e uma pérola de pureza, prestes a ser poluída ou esmagada
pela mão de um senhor verdugo, e esta consideração o justificava aos olhos
da própria consciência.
Bem se lembrara o infeliz pai de dar denúncia do fato às
autoridades, implorando a proteção das leis em favor de sua filha para
que não fosse vitima das violências e sevícias de seu dissoluto e
brutal senhor. Mas todos a quem consultava respondiam‑lhe a uma voz:
- Não se meta em tal; é tempo perdido. As autoridades nada têm que ver
com o que se passa no interior da casa dos ricos. Não caia nessa; muito feliz
será, se somente tiver de pagar as custas, e não lhe arrumarem por
cima algum processo, com que tenha de ir dar com os costados na
cadeia. - Onde se viu o pobre ter razão contra o rico, o fraco contra o
forte?...
Miguel entretinha relações ocultas com alguns dos antigos escravos
da fazenda de Leôncio, os quais, lembrando‑se ainda com saudades do
tempo de sua boa administração, conservavam‑lhe o mesmo respeito e
afeição, e por meio deles tinha exata informação do que se passava na
fazenda. Sabendo dos cruéis apuros a que sua filha se achava reduzida
depois da morte do comendador, não hesitou mais um instante, e tratou
de tomar todas as providências e medidas de segurança para roubar a
filha, e pô‑la fora do alcance de seu bárbaro senhor. Na mesma madrugada,
que seguiu‑se à tarde, em que a raptou, fazia‑se de vela com
Isaura para as províncias do Norte em um navio negreiro, de que era
capitão um português, antigo e dedicado amigo seu. Este chegando às
alturas de Pernambuco, como daí tinha de singrar para a costa da África,
largou‑os no Recife, prometendo‑lhes que dentro em três ou quatro
meses estaria de volta e pronto a conduzi‑los para onde quisessem.
Miguel que em sua profissão de jardineiro ou de feitor havia passado a
vida desde a infância dentro de um horizonte acanhado e em círculo
mui limitado de relaçóes, tinha pouco conhecimento e nenhuma
experiência do mundo, e portanto não podia calcular todas as conseqüências
da difícil posição em que ia colocar a si e a sua filha. Durante os longos
anos que esteve feitorando a fazenda do comendador e de outros, não
se dera senão uma ou outra fuga insignificante de escravos, por alguns
dias e para alguma fazenda vizinha, e, portanto, não é para admirar que
ele quase completamente ignorasse a amplitude dos direitos, que tem
um senhor sobre o escravo, e os infinitos meios e recursos de que pode
lançar mão para capturá‑los em caso de fuga. Entendeu, pois, que em
Pernambuco poderia viver com sua filha em plena seguridade, ao
menos por três ou quatro meses, uma vez que se afastassem da sociedade
o mais que pudessem, e procurassem esconder sua vida na mais
completa obscuridade.
Isaura também, se bem que tivesse o espírito mais atilado e
esclarecido, longe do objeto principal de seu terror e aversão, não
deixava de sentir‑se tranqüila, e até certo ponto descuidosa dos
perigos a que vivia exposta. Mas essa tal ou qual tranquilidade só durou
até o dia em que pela primeira vez viu Álvaro. Amou‑o com esse amor
exaltado das almas elevadas, que amam pela primeira e única vez, e esse
amor, como bem se compreende, veio tornar ainda mais crítica e angustiosa a
sua já tão precária e mísera situação.
Alvaro tinha na fisionomia, nas maneiras, na voz e no gesto, um
não sei quê de nobre, de amável e profundamente simpático, que avassalava
todos os corações. O que não seria ele para aquela que única até
ali lhe soubera conquistar o amor? Isaura não pôde resistir a tão prestigiosa
sedução; amou‑o com o ardor e entusiasmo de um coração virgem; e com a
imprevidência e cegueira de uma alma de artista, embora não visse nesse amor
mais do que uma nova fonte de lágrimas e torturas para seu coração.
Medindo o abismo que a separava de Álvaro, bem sabia que de
nenhuma esperança podia alimentar‑se aquela paixão funesta, que
deveria ficar para sempre sepultada no íntimo do coração, como um
cancro a devorá‑lo eternamente.
No seu cálice de amarguras, já quase a transbordar, tinha de
receber da mão do destino mais aquele travo cruel, que lhe devia queimar
os lábios e envenenar‑lhe a existência.
Já bastante lhe pesava andar enganando a sociedade a respeito de
sua verdadeira condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava‑se
consigo mesma de impor às poucas pessoas que com ela tratavam de
perto, um respeito e consideração a que nenhum direito podia ter. Mas
considerando que de tal disfarce nenhum grande mal podia resultar à
sociedade, conformava‑se com sua sorte. Deveria, porém, ela, ou
poderia sem inconveniente manter o seu amante na mesma ilusão? Com
seu silêncio, conservando‑o na ignorância de sua condição de escrava,
deveria deixar alimentar‑se, crescer profunda e enérgica paixão, que o
moço por ela concebera?... não seria isto um vil embuste, uma
indignidade, uma traição infame? não teria ele o direito, ao saber da verdade,
de acabrunhá‑la de amargas exprobrações, de desprezá‑la, de calcá‑la
aos pés, de tratá‑la enfim como escrava abjeta e vil, que ficaria sendo?

- Oh! isto para mim seria mais horrível que mil mortes! -
exclamava ela no meio do angustioso embate de idéias que se lhe agitavam
no espírito. - Não, não devo iludi‑lo; isto seria uma infâmia... vou‑lhe
descobrir tudo; é esse o meu dever, e hei de cumpri‑lo. Ficará sabendo
que não pode, que não deve amar‑me; porém ao menos não ficará
com o direito de desprezar‑me.. uma escrava, que procede com lisura e
lealdade, pode ao menos ser estimada. Não; não devo enganá‑lo; hei
de revelar‑lhe tudo.

Esta era a resolução que lhe inspiravam seu natural pundonor e
lealdade, e os ditames de uma consciência reta e delicada, mas quando
chegava o momento de pô‑la em prática fraqueava‑lhe o coração. e
Isaura ia diferindo de dia para dia a execução de seu propósito.
Falecia‑lhe de todo a coragem para quebrar por suas próprias
mãos a doce quimera, que tão deliciosamente a embalava, e em que às
vezes conseguia esquecer por longo tempo sua mísera condição, para
lembrar‑se somente que amava e era amada.

- Deixemos durar mais um dia - refletia consigo. - esta ilusória,
mas inefável ventura. Sou uma condenada, que arrancam da masmorra
para subir ao palco e fazer por momentos o papel de rainha feliz e
poderosa; quando descer, serei de novo sepultada em minha masmorra
para nunca mais sair. Prolonguemos estes instantes; náo será lícito deixar
passar ao menos em sonhos uma hora de felicidade sobre a fronte
do infeliz condenado?... sempre será tempo de quebrar esta frágil cadeia
de ouro, que me prende ao céu, e baquear de novo no inferno de
meus sofrimentos.

Nesta indecisão, nesta luta interna, em que sempre a voz da paixão
abafava os ditames da razão e da consciência, passaram‑se alguns dias
até àquele, em que Alvaro os induziu por meios quase violentos
a aceitarem convite para um baile. Desde então Isaura entendeu que
seria uma deslealdade, uma infâmia inqualificável, conservar por mais
tempo o seu amante na ilusão a respeito de sua condição, e que não
havia mais meio de prolongar, sem desdouro para eles, tão falsa e
precária situação.
Era muito abusar da ignorância do nobre e generoso mancebo!
Uma escrava fugida apresentar‑se em um baile, e apavonar‑se em seu
braço à face da mais brilhante e distinta classe de uma importante capital!...
era pagar com a mais feia ingratidão e a mais degradante deslealdade os serviços,
que com tanta delicadeza e amabilidade lhe havia prestado. Isto repugnava
absolutamente aos escrúpulos da melindrosa consciência de Isaura. É verdade
que Miguel, aterrado pelas considerações que Álvaro lhe fizera, viu‑se forçado
a anuir ao seu gracioso convite; Isaura porém guardara absoluto silêncio,
o que ambos tomaram por um sinal de aquiescência.
Enganavam‑se. Isaura recolhida ao silêncio não fazia mais do que
tentar esforços supremos para sacudir o fardo daquele disfarce, que
tanto lhe pesava sobre a consciência, rasgando resolutamente o véu que
encobria aos olhos do amante sua verdadeira condição. Por mais,
porém, que invocasse toda a sua energia e resolução, no momento
decisivo a coragem a abandonava. Já a palavra lhe pairava pelos
lábios entreabertos, já tinha o passo formado para ir prostrar‑se aos
pés de Álvaro, mas encontrando pousado sobre ela o olhar meigo e
apaixonado do mancebo, ficava como que fascinada; a palavra não ousava
romper os lábios paralisados e refluía ao coração, e os pés recusavam‑se
ao movimento como se estivessem pregados no chão. Isaura estava
como o desgraçado a quem circunstâncias fatais arrastam ao suicídio,
mas que ao chegar à borda do precipício medonho em que deseja
arrojar‑se, recua espavorido.

- Fraca e covarde criatura que eu sou! - pensou ela por fim
esmorecida: - que miséria! nem tenho coragem para cumprir um dever!
não importa; para tudo há remédio; cumpre que ele ouça da boca
de meu pai, o que eu não tenho ânimo de dizer‑lhe.

Esta idéia luziu‑lhe no espírito como uma tábua salvadora; agarrou‑se
a ela com sofreguidão, e antes que de novo lhe fraqueasse o ânimo, tratou de pô‑la
em execução.

- Meu pai, - disse ela resolutamente apenas Álvaro transpôs o
portão do pequeno jardim, - declaro‑lhe que não vou a esse baile; não
quero, nem devo por forma nenhuma lá me apresentar.

- Não vais?! - exclamou Miguel atônito. - E por que não disseste
isto há mais tempo, quando o senhor Álvaro ainda aqui se achava? agora que
já demos nossa palavra...

- Para tudo há remédio, meu pai, - atalhou a filha com febril
vivacidade - e para este caso ele é bem simples. Vá meu pai depressa
à casa desse moço, e diga‑lhe o que eu não tive ânimo de dizer‑lhe;
declare‑lhe quem eu sou, e está tudo acabado.

Dizendo isto, Isaura estava pálida, falava com precipitação, os
lábios descarados lhe tremiam, e as palavras, proferidas com voz convulsa
e estridente, parecia que lhe eram arrancadas a custo do coração. Era o
resultado do extremo esforço que fazia, para levar a efeito tão penível
resolução. O pai olhava para ela com assombro e consternação.

- Que estás a dizer, minha filha! - replicou‑lhe ele - estás tão
pálida e alterada!.. parece‑me que tens febre... sofres alguma coisa?

- Nada sofro, meu pai; não se inquiete pela minha saúde. O que
eu estou lhe dizendo é que é absolutamente necessário que meu pai vá
procurar esse moço e confessar‑lhe tudo...

- Isso nunca!... estás louca, menina?... queres que eu te veja
encerrada em uma cadeia, conduzida em ferros para a tua província,
entregue a teu senhor, e por fim ver‑te morrer entre tormentos nas garras
daquele monstro! oh! Isaura, por quem és, não me fales mais nisso,
Enquanto o sangue me girar nestas veias, enquanto me restar o mais
pequenino recurso, hei de lançar mão dele para te salvar...

- Salvar‑me por meio de uma indignidade, de uma infâmia, meu
pai!... retorquiu a moça com exaltação. - Como posso eu, sem cometer a mais
vil deslealdade, aparecer apresentada por ele como uma senhora livre em uma
sala de baile?... Quando esse senhor e tantas outras ilustres pessoas souberem que
ombreou com elas, e a par delas dançou uma miserável escrava fugida...

- Cala‑te, menina! - interrompeu o velho, incomodado com a
exaltação da filha. - Não fales assim tão alto... tranqüiliza‑te; eles nunca saberão
de nada. O mais breve que puder ser deixaremos esta terra; amanhã mesmo,
se for possível. Embarcaremos em qualquer paquete, e iremos para bem longe, para
os Estados Unidos, por exemplo. Lá, segundo me consta, poderemos ficar fora
do alcance de qualquer perseguição. Eu com o meu trabalho, e tu com as tuas
prendas e habilitações, podemos viver sem sofrer necessidades em qualquer canto
do mundo.

- Ah! meu pai! essa idéia de irmos para tão longe, sem esperança
de um dia podermos voltar, me oprime o coração.

- Que remédio, minha filha!.., já agora, ainda que tenhamos de ir
parar ao fim do mundo, nos é forçoso fugir às garras do monstro.

- Mas esse moço, que tanto se interessa por nós, o senhor Álvaro,
nobre e generoso como é, sabendo da minha verdadeira condição, e
das terríveis circunstâncias que nos obrigam a andar assim fugitivos e
disfarçados pelo mundo, talvez queira e possa nos amparar e valer contra
as perseguições...

- E quem nos afiança isso?... o mais certo é ele entregar‑te ao
desprezo, logo que saiba que não passas de uma escrava fugida, se,
despeitado com o logro que levou, não for o primeiro a denunciar‑te à
polícia. No transe em que nos achamos, é de absoluta necessidade
enganar a ele e a todos; se revelarmos a quem quer que seja o segredo de
nossa posição, estamos perdidos. Toma coragem, e vamos ao baile,
minha filha; é um sacrifício cruel, mas passageiro, a que devemos nos
sujeitar a bem de nossa segurança. Em breve estaremos longe, e se
algum dia souberem quem tu eras, que nos importa? nunca mais nos
verão o rosto, nem ouvirão nossos nomes. Tens a consciência escrupulosa
em demasia. Se ignoram quem tu és, a tua companhia em nada os
pode infamar. Com isso não fazes mal a ninguém; é uma medida de
salvação, que todos te perdoariam.

- Meu pai parece que tem razão; mas não sei por que, repugna‑me
absolutamente ao coração dar esse passo.

- Mas é preciso dá‑lo, minha filha, se não queres para nós ambos
a desgraça e a morte. Se não formos a esse baile, e desaparecermos de
um dia para outro, como nos é forçoso, então as suspeitas que
começamos a despertar tomarão muito maior vulto, e a policia pôr‑se‑á à
nossa pista, e nos perseguirá por toda parte. É um sacrifício na verdade,
mas não será ele muito mais suave do que as perseguições da polícia, a
prisão, as torturas e a morte, que é o que podes esperar em casa de teu
senhor?...

Isaura não respondeu; seu espírito agitava‑se entre as mais
pungentes e amargas reflexões.
As palavras de seu pai a tinham abismado em glacial e profundo
desalento. Aturdida por tantos golpes, sua alma debatia‑se em um mar
de dúvidas e perplexidades, como frágil barca em meio de um oceano
irritado, sacudida aos boléus por vagalhões desencontrados.
O grito de sua consciência escrupulosa e delicada, a lisura e
sinceridade de seu coração, que não podia acomodar‑se com o embuste
e a mentira, e uma espécie de vago pressentimento que lhe pesava sobre o
espírito, a desviavam daquele baile, e por momentos pareciam fixar
definitivamente a sua resolução; e firme neste propósito dizia consigo
mesma: - não, não irei.
Por outro lado as considerações de seu pai, que pareciam tão
razoáveis, bem como o desejo de ver Álvaro ainda uma vez, de gozar
por algumas horas a sua presença, faziam‑lhe de novo flutuar o
espírito no mar das irresoluções. A lembrança de que em breve, talvez no
dia seguinte, tinha de deixar aquela terra e separar‑se de Álvaro,
sem esperança alguma de jamais tornar a vê‑lo, sem poder dizer‑lhe um
adeus, sem que ele pudesse saber quem ela era, nem para onde ia,
dilacerava-lhe o coração. Partir sem ter um ente a quem apertar nos braços
na hora da despedida, nem ter um seio onde verter as lágrimas da
mais pungente saudade; partir para levar uma vida errante e fugitiva, sem
esperança nem consolação alguma, através de mil trabalhos e perigos,
para terminá‑la talvez entre os tormentos da mais atroz escravidão, oh!...
isto era pavoroso! - e, entretanto, era esse o único futuro que a pobre
Isaura tinha diante dos olhos. Mas não; tinha ainda diante de si uma
noite inteira de prazer e de ventura, uma noite esplêndida de baile e
regozijo de seu amante, respirando o mesmo ar, inebriando‑se de sua
voz, bebendo o seu hálito, recolhendo dentro d`alma seus olhares
apaixonados, sentindo na sua a pressão daquela mão adorada, contando as
pulsações daquele coração, que só por ela palpitava. Oh! uma noite
assim valia bem uma eternidade, viessem depois embora as angústias e
perigos, a escravidão e a morte!
Cândida e modesta como era, nem por isso Isaura deixava de ter
consciência do quanto valia. Vendo‑se o objeto do amor de um jovem
de espírito elevado, e dotado de tão nobres e brilhantes qualidades
como Álvaro, ainda mais se confirmou na idéia que de si mesma fazia.
Com sua natural perspicácia e penetração, bem depressa convenceu‑se
de que o afeto que o mancebo lhe consagrava não era simples e
superficial homenagem rendida a seus encantos e talentos, nem tampouco
passageiro capricho de mocidade, mas verdadeira paixão, sincera,
enérgica e profunda. Era isso para ela motivo de um orgulho íntimo,
que a elevava a seus próprios olhos, e por momentos a fazia esquecer‑se
que era uma escrava.

- Estou convencida de que sou digna do amor de Álvaro, senão,
ele não me amaria; e se sou digna de seu amor, por que não o serei de
me apresentar no seio da mais brilhante sociedade? A perversidade dos
homens pode acaso destruir o que há de bom e de belo na feitura do
Criador? Assim refletia Isaura, e exaltada com estas idéias e com a sedutora
perspectiva de algumas horas de inefável ventura em companhia
do amante exclamava dentro d`alma: - Hei de ir, hei de ir ao baile!

Enquanto Isaura, silenciosa e com a face na mão, se embebia em
suas cismas, procurando firmar‑se em uma resolução, o pai, não menos
inquieto e preocupado, passeava distraído entre os canteiros do jardim,
aguardando com ansiedade uma resposta definitiva de sua filha.

- Irei, meu pai, irei ao baile, - disse ela por fim levantando‑se,
mas vou preparar‑me para ele como a vítima que tem de ser conduzida
ao sacrifício entre cânticos e flores. Tenho um cruel pressentimento,
que me acabrunha...

- Pressentimento de quê, Isaura?...

- Não sei, meu pai; de alguma desgraça.

- Pois quanto a mim, Isaura, o coração como que está‑me adivinhando
que de ir a esse baile resultará a nossa salvação.





Capitulo 13

Não pense o leitor que já se acha terminado o baile a que estávamos
assistindo. A pequena digressão que por fora dele fizemos no
capitulo antecedente, nos pareceu necessária para explicar por que
conjunto de circunstãncias fatais a nossa heroína, sendo uma escrava, foi
impelida a tomar a audaciosa resolução de apresentar‑se em um
esplêndido e aristocrático sarau, - fraqueza de coração, ou timidez de
caráter, que pode ser desculpada, mas não plenamente justificada em
uma pessoa de consciência tão delicada e de tão esclarecido
entendimento.
O baile continua, mas já não tão animado e festivo como ao princípio.
Os aplausos frenéticos, a admiração geral, de que Isaura se havia
tornado objeto da parte dos cavalheiros, tinham produzido um completo
resfriamento entre as mais belas e espirituosas damas da reunião.
Arrufadas com seus cavalheiros prediletos, em razão das entusiásticas
homenagens, que francamente iam render aos pés daquela que
implicitamente estavam proclamando a rainha do salão, já nem ao menos
queriam dançar, e em vez de tisos folgazões, e de uma conversação
franca e jovial, só se ouviam pelos cantos entre diversos grupos
expansões misteriosamente sussurradas, e cochichos segredados entre
amarelas e sarcásticas risotas.
Propagava‑se entre as moças como que um sussurro geral de
descontentamento. Era como esses rumores surdos e profundos, que
restrugem ao longe pelo espaço, precedendo uma grande tempestade.
Dir‑se‑ia que já estavam adivinhando que aquela mulher, que por
seus encantos e dotes incomparáveis as estava suplantando a todas,
não era mais do que - uma escrava. Muitas mesmo se foram retirando,
nomeadamente aquelas que afagavam alguma esperança, ou se julgavam
com algum direito sobre o coração de Álvaro. Aniquiladas sob o peso
dos esmagadores triunfos de Isaura, não se achando com ânimo de
manterem‑se por mais tempo na liça, tomaram o prudente partido de
irem esconder no misterioso recinto das alcovas o despeito e vergonha
de tão cruel e solene derrota.
Não diremos todavia que no meio de tantas e tão nobres damas,
distintas pelos encantos do espírito e do corpo, não houvesse muitas
que, com toda a isenção e sem a menor sombra de inveja, admirassem
a beleza de Isaura, e aplaudissem de coração e com sincero prazer os
seus triunfos, e foram essas que conseguiram ir dando alguma vida ao
sarau, que sem elas teria esmorecido inteiramente. Todavia não é
menos certo que do belo sexo, sem distinção de classes, ao menos
a metade é ludibrio dessas invejas, ciúmes e rivalidades mesquinhas.
Deixamos Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Álvaro
por seu par. Enquanto dançam, entremos em uma saleta, onde há mesas de
jogo, e bufetes guarnecidos de licoreiras, de garrafas de cerveja e
champanha. Esta saleta comunica imediatamente com o salão onde se
dança, por uma larga porta aberta. Acham‑se ai uma meia dúzia de
rapazes, pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estróinas
e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da sociedade, dos prazeres e das
mulheres, costumam dizer que não trocariam uma fumaça de
charuto, ou um copo de champanha, pelo mais fagueiro sorriso da
mais formosa donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em
prosa e verso que na aurora da vida já têm o coração mirrado pelo sopro
do cepticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado
pela saciedade; desses misantropos enfim, cheios de esplim, que se
acham sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda espécie,
alardeando o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade e
frivolidades da vida.
Entre eles acha‑se um, sobre o qual nos é mister deter por mais um
pouco a atenção, visto que tem de tomar parte um tanto ativa nos
acontecimentos desta história. Este nada tem de esplenético nem de
byroniano; pelo contrário o seu todo respira o mais chato e ignóbil prosaísmo.
Mostra ser mais velho que os seus comparsas uma boa dezena
de anos. Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é
desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o
que, na opinião de Lavater, é indicio de espírito lerdo e acanhado a
roçar pela estupidez. O todo da fisionomia tosca e quase grotesca revela
instintos ignóbeis, muito egoísmo e baixeza de caráter. O que, porém,
mais o caracteriza é certo espírito de cobiça, e de sórdida ganância, que
lhe transpira em todas as palavras, em todos os atos, e principalmente
no fundo de seus olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente
um raio de velhacaria. É estudante, mas pelo desalinho do trajo,
sem o menor esmero e nem sombra de elegância, parece mais um
vendilhão. Estudava há quinze anos à sua própria custa, mantendo‑se do
rendimento de uma taverna, de que era sócio capitalista. Chama‑se Martinho.

- Rapaziada, - disse um dos mancebos, - vamos nós aqui a
uma partida de lansquenê, enquanto esses basbaques ali estão a
arrastar os pés e a fazer mesuras.

- Justo! - exclamou outro, sentando‑se a uma mesa e tomando
baralhos. - Já que não temos coisa melhor a fazer, vamos às cartas.
Demais, no baralho é que está a vida. A vista de uma sota me faz às
vezes estremecer o coração em emoções mais vivas do que as sentiria
Romeu a um olhar de Julieta... Afonso, Alberto, Martinho, andem
para cá; vamos ao lansquenê; duas ou três corridas somente...

- De boa vontade aceitaria o convite, - respondeu Martinho, -
se não andasse ocupado com um outro jogo, que de um momento para
outro, e sem nada arriscar, pode meter‑me na algibeira não menos de
cinco contos de réis limpinhos.

- De que diabo de jogo estás aí a falar?... nunca deixarás de ser
maluco?... deixa‑te de asneiras, e vamos ao lansquenê.

- Quem tem um jogo seguro como eu tenho, há de ir meter‑se
nos azares do lansquenê, que já me tem engolido bem boas patacas?...
Nem tão tolo serei eu.

- Com mil diabos, Martinho!... então não te explicarás?... que
maldito jogo é esse?...

- Ora, adivinhem lá... Não são capazes. uma bisca de estrondo.
Se adivinharem, dou‑lhes uma ceia esplêndida no melhor hotel desta
cidade; bem entendido, se encartar a minha bisca.

- Dessa ceia estamos nós bem livres, pobre comedor de bacalhau
ardido, e porque não é possível haver quem adivinhe as asneiras que
passam lá por esses teus miolos extravagantes. O que queremos é o teu
dinheiro aqui sobre a mesa do lansquenê.

- Ora, deixem‑me em paz, - disse Martinho, com os olhos atentamente
dirigidas para o salão de dança. - Estou calculando o meu jogo... suponham que
é o xadrez, e que eu vou dar xeque‑mate à rainha... dito e feito, e os cinco contos
são meus...

- Não há dúvida, o rapaz está doido varrido... Anda lá, Martinho;
descobre o teu jogo, ou vai‑te embora, e não nos estejas a maçar a
paciência com tuas maluquices.

- Malucos são vocês. O meu jogo é este... mas quanto me dão
para descobri‑lo? olhem que é coisa curiosa.

- Queres‑nos atiçar a curiosidade para nos chuchar alguns cobres,
não é assim?... pois desta vez afianço‑te da minha parte, que não
arranjas nada. Vai‑te aos diabos com o teu jogo, e deixa‑nos cá com
o nosso. As cartas, meus amigos, e deixemos o Martinho com suas
maluquices.

- Com suas velhacarias, dirás tu... não me pilha.

- Ah! toleirões! - exclamou o Martinho, - vocês ainda estão
com os beiços com que mamaram. Andem cá, andem, e verão se é
maluquice, nem velhacaria. Enfim quero mostrar‑lhes o meu jogo,
porque desejo ver se a opinião de vocês estará ou não de acordo
com a minha. Eis aqui a minha bisca. - concluiu Martinho mostrando um
papel, que sacou da algibeira; - não é nada mais que um anúncio de
escravo fugido.

- Ah! ah! ah! esta não é má!...

- Que disparate!... decididamente estás louco, meu Martinho.

- A que propósito vem agora anúncio de escravo fugido?...

- Foste acaso nomeado oficial de justiça ou capitão‑do‑mato?

Estas e outras frases escapavam aos mancebos de envolta, em um
coro de intermináveis gargalhadas, que competiam com a orquestra do baile.

- Não sei de que tanto se espantam, - replicou frescamente o
Martinho; - o que admira é que ainda não vissem este grande anúncio
em avulso, que veio do Rio de Janeiro, e foi distribuído por toda a
cidade com o jornal do Comércio.

- Porventura somos esbirros ou oficiais de justiça, para nos
embaraçarmos com semelhantes anúncios?

- Mas olhem que o negócio é dos mais curiosos, e as alvíssaras
não são para se desprezarem.

- Pobre Martinho! quanto pode em teu espírito a ganância de
ouro, que faz‑te andar à cata de escravos fugidos em uma sala de baile!
- pois é aqui que poderás encontrar semelhante gente?...

- Olé... quem sabe?!... tenho cá meus motivos para desconfiar
que por aqui mesmo hei de achá‑la, assim como os cinco continhos
que, aqui entre nós, vêm agora mesmo ao pintar, pois que o armazém
de meu sócio bem pouco tem rendido nestes últimos tempos.

Martinho chamava armazém à pequena taverna de que era sócio
Ditas aquelas palavras foi postar‑se junto à porta que dava para o salão
e ali ficou por largo tempo a olhar, ora para os que dançavam, ora para
o anúncio, que tinha desdobrado na mão, como quem averigua e confronta os sinais.

- Que diabo faz ali o Martinho? - exclamou um dos mancebos
que entretidos com as mímicas do Martinho, tomando‑as por palhaçadas,
tinham‑se esquecido de jogar.

- Está doido, não resta a menor dúvida. - observou outro. -
Procurar escravo fugido em uma sala de baile!... Ora não faltava mais
nada! Se andasse à cata de alguma princesa, decerto a iria procurar no
quilombos.

- Mas talvez seja algum pajem, ou alguma mucama, que por ai anda.

- Não me consta que haja nenhum pajem nem mucama ali dançando,
e ele não tira os olhos dos que dançam.

- Deixá‑lo; este rapaz, além de ser um vil traficante, sempre foi
um maníaco de primeira força.

- É ela! - disse o Martinho, deixando a porta, e voltando‑se para
seus companheiros; - é ela; já não tenho a menor dúvida; é ela, e está
segura.

- Ela quem, Martinho?...

- Ora! pois quem mais há de ser?...

- A escrava fugida?!...

- A escrava fugida, sim, senhores!... e ela está ali dançando.

- Ah! ah! ah! ora, vamos ver mais esta, Martinho!... até onde
queres levar a tua farsa? deve ser galante o desfecho. Isto é impagável,
e vale mais que quantos bailes há no mundo. - Se todos eles tivessem
um episódio assim, eu não perdia nem um. - Assim clamavam os moços
entre estrondosas gargalhadas.

- Vocês zombam? - olhem que a farsa cheira um pouco a tragédia.

- Melhor! Melhor! - vamos com isso, Martinho!

- Não acreditam?... pois escutem lá, e depois me dirão que tal é a farsa.

Dizendo isto, Martinho sentou‑se em uma cadeira, e desdobrando o
anúncio, pôs‑se em atitude de lê‑lo. Os outros se agruparam curiosos
em torno dele.

- Escutem bem, - continuou Martinho. - Cinco contos! - eis o
título pomposo, que em eloqüentes e graúdos algarismos se acha no
frontispício desta obra imortal, que vale mais que a Ilíada de Camões...

- E que os Lusíadas de Homero, não é assim, Martinho? deixa‑te
de preâmbulos asnáticos, e vamos ao anúncio.

- Eu já lhes satisfaço, - disse Martinho, e continuou lendo:
Fugiu da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, no município
de Campos, província do Rio de Janeiro, uma escrava por nome
Isáura, cujos sinais são os seguintes: Cor clara e tez delicada como de
qualquer branca; olhos pretos e grandes; cabelos da mesma cor,
compridos e ligeiramente ondeados; boca pequena, rosada e bem feita;
dentes alvos e bem dispostos; nariz saliente e bem talhado; cintura delgada,
talhe esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um pequeno
sinal preto, e acima do seio direito um sinal de queimadura, mui
semelhante a uma asa de borboleta. Traja‑se com gosto e elegância,
canta e toca piano com perfeição. Como teve excelente educação e tem uma
boa figura, pode passar em qualquer parte por uma senhora livre e de
boa sociedade. Fugiu em companhia de um português, por nome Miguel,
que se diz seu pai. É natural que tenham mudado o nome. Quem a apreender, e
levar ao dito seu senhor, além de se lhe satisfazerem todas as despesas, receberá
a gratificação de 5:OOO$OOO.

- Deveras, Martinho? - exclamou um dos ouvintes, - está
nesse papel o que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de
Vênus, e vens dizer‑nos que é uma escrava fugida!...

- Se não querem acreditar ainda, leiam com seus próprios olhos:
aqui está o papel...

- Com efeito! acrescentou outro - uma escrava assim vale a
pena apreendê‑la, mais pelo que vale em si, do que pelos cinco contos.
Se eu a pilho, nenhuma vontade teria de entregá‑la ao seu senhor.

- Já não me admira que o Martinho a procure aqui; uma criatura
tão perfeita só se pode encontrar nos palácios dos príncipes.

- Ou no reino das fadas; e pelos sinais e indícios estou vendo que
não pode ser outra senão essa nova divindade que hoje apareceu...

- Sem mais nem menos; deu no vinte, atalhou Martinho, e cha‑
mando‑os para junto da porta: - Agora venham cá, - continuou, - e
reparem naquela bonita moça, que dança de par com Álvaro. Pobre
Álvaro como está cheio de si! se soubesse com quem dança, caía‑lhe a
cara aos pés. Reparem bem, meus senhores, e vejam se não combinam
perfeitamente os sinais?...

- Perfeitamente! - acudiu um dos moços, - é extraordinário! lá
vejo o sinalzinho na face esquerda, e que lhe dá infinita graça. Se tiver
a tal asa de borboleta sobre o seio, não pode haver mais dúvida. O
céus! é possível que uma moça tão linda seja uma escrava!

- E que tenha a audácia de apresentar‑se em um bailes destes?
- acrescentou outro. Ainda não posso capacitar‑me.

- Pois cá para mim, - disse o Martinho - o negócio é liquido,
assim como os cinco contos, que me parece estarem já me cantando na
algibeira; e até logo, meus caros.

E dizendo isto dobrou cuidadosamente o anúncio, meteu‑o na algi‑
beira, e esfregando as mãos com cínico contentamento, tomou o
chapéu, e retirou‑se.

- Forte miserável... - disse um dos comparsas - que vil ganância
de ouro a deste Martinho! estou vendo que é capaz de fazer prender
aquela moça aqui mesmo em pleno baile.

- Por cinco contos é capaz de todas as infâmias do mundo. Tão
vil criatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos
todos conspirar para expeli‑lo da Academia. Cinco contos daria eu
para ser escravo daquela rara formosura.

- É assombroso! Quem diria, que debaixo daquela figura de anjo
estaria oculta uma escrava fugida!

- E também quem nos diz que no corpo da escrava não se acha
asilada uma alma de anjo?...





Capitulo 14

Havia terminado a quadrilha. Álvaro ufano, e cheio de júbilo,
conduzia o seu formoso par através da multidão, através de uma viva
fuzilaria de olhares de inveja e de admiração, que se cruzavam em sua
passagem; a pretexto de oferecer‑lhe algum refresco, a foi levando para
uma sala dos fundos, que se achava quase deserta. Até ali ainda ele
não havia feito a Elvira uma declaração de amor em termos positivos,
se bem que esse amor se estivesse revelando a cada instante, e cada
vez mais ardente e apaixonado, em seus olhos, em suas palavras, em
todos os seus movimentos e açóes. Alvaro julgava já ter adquirido
completo conhecimento do coração de sua amada, e nos dois meses
durante os quais a havia estudado, não havia descoberto nela senão novos
encantos e perfeições. Estava plenamente convencido que de todas as
formosuras que até ali tinha conhecido, Elvira era em tudo a mais digna
de seu amor, e já nem por sombras duvidava da pureza de sua alma,
da sinceridade do seu afeto. Pensava portanto que, sem receio algum
de comprometer o seu futuro, podia abandonar o coração ao império
daquela paixão, que já não podia dominar. Quanto à origem e
procedência de Elvira, era coisa de que nem de leve se preocupava, e
nunca se lembrou de indagar. A distinção de classes repugnava a seus
princípios e sentimentos filantrópicos. Fosse ela uma princesa que o
destino obrigava a andar foragida, ou tivesse o berço na palhoça de
algum pobre pescador, isso lhe era indiferente. Conhecia‑a em si mesma,
sabia que era uma das criaturas mais perfeitas e adoráveis que se
pode encontrar sobre a Terra, e era quanto lhe bastava.
Observava Alvaro em seus costumes, como já sabemos, a severidade
de um quaker, e seria incapaz de abusar do amor que havia inspirado à formosa
desconhecida, aninhando em seu espírito um pensamento de sedução.
Naquela noite pois o apaixonado mancebo, rendido e deslumbrado
mais que nunca pelos novos encantos e atrativos que Elvira alardeava
entre os esplendores do baile, não pôde e nem quis dilatar por mais
tempo a declaração, que a cada instante lhe ardia nos olhos, e esvoaçava
pelos lábios, e apenas achou‑se em lugar onde pudesse não ser
ouvido senão de Elvira:

- D. Elvira, - lhe disse com voz grave e comovida, - se a
senhora é um anjo em sua casa, nos salões do baile é uma deusa. O
meu coração há muito já lhe pertence; sinto que o meu destino de
hoje em diante depende só da senhora. Funesta ou propícia, a senhora
será sempre a minha estrela nos caminhos da vida. Creio que me conhece
bastante para acreditar na sinceridade de minhas palavras. Sou senhor
de uma fortuna considerável; tenho posição honrosa e respeitável na
sociedade; mas não poderia jamais ser feliz, se a senhora não consentir
em partilhar comigo esses bens, que a fortuna prodigalizou‑me.

Estas palavras de Álvaro, tão meigas, tão repassadas do mais
sincera e profundo amor, que em outras condições teriam caído como
bálsamo celeste sobre o coração de Isaura a banhá‑lo em inefáveis eflúvios
de ventura, eram agora para ela como um atroz e pungente
sarcasmo do destino, um hino do céu ouvido entre as torturas do inferno.
Via de um lado um anjo, que, tomando‑a pela mão com um suave
sorriso, mostrava‑lhe um éden de delícias, ao qual se esforçava por
conduzi‑la, enquanto de outro lado a hedionda figura de um demônio
atava‑lhe ao pé um pesado grilhão, e com todo o seu peso a arrastava
para um gólfão de eternos sofrimentos.
É que a pobre Isaura, cheia de sustos e desconfianças, durante
uma pausa tinha notado os movimentos do infame Martinho, quando
encostado ao umbral da saleta com um papel na mão, parecia
examiná‑la com a mais minuciosa atenção. Aquela vista produziu nela
o efeito de um raio; não duvidou mais que estava descoberta, e
irremissivelmente perdida para sempre. Súbita vertigem lhe escureceu os
olhos, pareceu‑lhe que o chão lhe faltava debaixo dos pés, e que ia sendo
tragada pelas fauces de um abismo imensurável. Para não cair foi‑lhe
preciso agarrar‑se fortemente com ambas as mãos ao braço de Álvaro.
arrimando‑se em seu peito.

- Que tem, minha senhora? - perguntara‑lhe este, assustado. -
Está incomodada?...

- Algum tanto, - respondeu Elvira com voz desfalecida e arquejante,
e reanimando‑se pouco a pouco. - Foi uma dor aguda... uma pontada deste
lado... mas vai passando... não estou acostumada com este aperto... o remoinhar
da dança me fez mal.

- Mas há de acostumar‑se em pouco tempo - replicou‑lhe Álvaro,
segurando‑lhe uma das mãos e sustendo‑a com um braço pela cintura. - A
senhora nasceu para brilhar nos salões... mas, se quer retirar‑se...

- Não, senhor; continuemos; já agora estamos na final...

Com estas respostas evasivas Álvaro tranqüilizou‑se, e em razão
dos movimentos rápidos da quadrilha na marca final, que imediatamente
seguiu‑se, não pôde notar a extrema palidez e profundo transtorno das feições de
Elvira. A infeliz já não dançava, arrastava‑se automaticamente pela sala; seu
espírito não estava ali, não ouvia nem via outra coisa senão a figura repugnante
do Martinho, postada como esfinge ameaçadora junto à porta da saleta, para
a qual ela volvia de quando em quando olhos cheios de ansiedade e pavor.
E o sangue todo lhe refluía ao coração, que lhe tremia como o da pomba que
sente estendida sobre o colo a garra desapiedada do gavião.
Em tal estado de susto e perturbação, Isaura não atinava com o
que devia responder àquela tão sincera e apaixonada declaração do
mancebo. Guardou silêncio por alguns instantes, o que Álvaro interpretou
por timidez ou emoção.

- Não me quer responder? - continuou com voz meiga, - uma
só palavra é bastante...

- Ah! senhor, - murmurou ela suspirando, o que posso eu
responder às doces palavras que acabo de ouvir de sua boca? Elas me
encantam, mas...

Elvira interrompeu‑se bruscamente; um súbito estremecimento agitando
o braço de Álvaro o fez olhar para ela com sobressalto e inquietação.

- É ele!... - este som sussurrou‑lhe pelos lábios como um gemido
rouco e convulsivo; acabava de avistar Martinho, entrando na sala
em que se achavam, e sentiu mortal calafrio percorrer‑lhe todo o como.

- Desculpe‑me, senhor - continuou ela - não é possível por
hoje ouvir suas doces palavras; sinto‑me mal; preciso retirar‑me. Se o
senhor tivesse a bondade de levar‑me onde está meu pai...

- Por que não, D. Elvira?... mas oh!... como está pálida!... está
sofrendo muito, não é assim?... quer que eu a acompanhe?... que lhe
chame um médico?... aqui mesmo os há...

- Obrigada, senhor Álvaro; não se inquiete; isto é um mal passageiro,
cansaço talvez; em chegando a casa ficarei boa.

- E quer então retirar‑se sem me deixar uma só palavra de consolação e
de esperança?...

- De consolação talvez, mas de esperança...

- Por que não?

- Se nem eu mesma posso tê‑la...

- Então não me ama...

- Amo‑o muito.

- Então será minha...

- Isso é impossível...

- Impossível!... que obstáculo pode haver?...

- Não sei dizer‑lhe, senhor; minha desgraça.

Esta amorosa confidência no momento em que se achava no ponto
mais interessante, foi bruscamente interrompida pela presença de Martinho,
que se lhes atravessou pela frente, fazendo uma profunda reverência. Álvaro indignado
carregou o sobrolho, e esteve a ponto de enxotar o importuno, como quem enxota
um cão. Elvira estacou como que petrificada de pavor.

- Senhor Álvaro, disse‑lhe respeitosamente o Martinho, - com a
permissão de V. Sa preciso dizer duas palavras a esta senhora, a quem
V. S.a dá o braço.

- A esta senhora! - exclamou maravilhado o cavalheiro. - Que
tem o senhor que ver com esta senhora?

- Negócio de suma importância; ela bem o sabe, melhor do que
eu e o senhor.

Álvaro, que bem conhecia o Martinho, e sabia quanto era abjeto e
desprezível, julgando ser aquilo manobra de algum rival invejoso, e covarde,
que se servia daquele miserável para ultrajá‑lo ou expô‑lo ao ridículo, teve
um assomo de indignação, mas contendo‑se por um momento:

- Tem a senhora algum negócio com este homem? - perguntou
a Elvira.

- Eu?!... nenhum, por certo; nem mesmo o conheço, - balbuciou a
moça, pálida e a tremer.

- Mas, meu Deus! D. Elvira, por que treme assim? como está
pálida!.., maldito importuno, que assim a faz sofrer!... oh! pelo céu, D.
Elvira, não se assuste assim. Aqui estou eu a seu lado, e ai daquele que
ousar ultrajar‑nos!

- Ninguém quer ultrajá‑los, senhor Álvaro - replicou o Martinho;
mas o negócio é mais sério do que o senhor pensa.

- Enfim, senhor Martinho, deixe‑se de rodeios e diga‑nos aqui
mesmo o que quer com esta senhora.

- Posso dizê‑lo; mas seria melhor que V. S.a o ignorasse.

- Oh! temos mistério!... pois nesse caso declaro‑lhe que não
abandonarei esta senhora um só instante, e se o senhor não quer dizer
ao que veio, pode retirar‑se.

- Nessa não caio eu, que não hei de perder o meu tempo, e o
meu trabalho, e nem os meus cinco contos. - Estas últimas palavras
resmungou‑as ele entre os dentes.

- Senhor Martinho, por favor queira não abusar mais da minha
paciência. Se não quer dizer ao que veio, ponha‑se já longe da minha
presença...

- Oh! senhor! retorquiu Martinho, sem se perturbar; - já que
a isso me força, pouco me custa fazer‑lhe a vontade, e com bastante
pesar tenho de declarar‑lhe, que essa senhora a quem dá o braço, é
uma escrava fugida!...

Álvaro, se bem que conhecesse a vilania e impudência do caráter
de Martinho, no primeiro momento ficou pasmo ao ouvir aquela súbita
e imprevista delação. Não podia dar‑lhe crédito, e refletindo um instante
confirmou‑se mais na idéia de que tudo aquilo não passava de uma
farsa posta em jogo por algum indigno rival, com o fim de desgostá‑lo
ou insultá‑lo. A pessoa do Martinho, que não poucas vezes, na qualidade
de truão ou palhaço, servia de instrumento às vinganças e paixões mesquinhas
de entes tão ignóbeis como ele, servia para justificar a desconfiança de Álvaro,
que acabou por não sentir senão asco e indignação por tão infame procedimento.

- Senhor Martinho, - bradou ele com voz severa, - se alguém
pagou‑lhe para vir achincalhar‑me a mim e a esta senhora, diga quanto
ganha, que estou pronto a dar‑lhe o dobro para nos deixar em paz.

A esta sanguinolenta afronta, a larga e impudente cara do Martinho
nem de leve se alterou, e por única resposta:

- Torno a repetir, - bradou com todo o descaramento, - e em
voz bem alta, para que todos ouçam: esta senhora que aqui se acha, é
uma escrava fugida, e eu estou encarregado de apreendê‑la e entregá‑la
a seu senhor.

Entretanto Isaura, avistando seu pai, que também a procurava por
toda a parte com os olhos, largando o braço de Álvaro correu a ele,
lançou‑se‑lhe nos braços, e escondendo o rosto em seu ombro:

- Que opróbrio, meu pai! - exclamou com voz sumida e a soluçar.
- Eu bem estava pressentindo!...

- Este homem, se não é um insolente, ou está louco ou bêbado,
- bradava Álvaro pálido de cólera. - Em todo o caso deve ser enxotado
como indigno desta sociedade.

Já alguns amigos de Álvaro agarrando o Martinho pelo braço, se
dispunham a pó‑lo pela porta a fora, como a um ébrio ou alienado.
Devagar, meus amigos, devagar!.., disse‑lhes ele com toda a
calma. - Não me condenem sem primeiro ouvirem‑me. Escutem
primeiro este anúncio que lhes vou ler, e se não for verdade o que eu
digo, dou‑lhes licença para me cuspirem na cara, e me atirarem
da janela abaixo.
Entretanto, esta pequena altercação começava a atrair a atenção
geral, e numerosos grupos movidos de curiosidade se apinhavam em
torno dos contendores. A frase fatal - esta senhora é uma escrava! -
proferida em voz alta por Martinho, transmitida de grupo em grupo, de
ouvido em ouvido, já havia circulado com incrível celeridade por todas
as salas e recantos do espaçoso edifício. Um sussurro geral se propagara
por todo ele, e damas e cavalheiros, e tudo o que ali se achava, inclusive
músicos, porteiros e fâmulos, atropelando‑se uns aos outros, arrojavam‑se
afanosos para a sala, onde se dava o singular incidente que estamos relatando.
A sala estava literalmente apinhada de gente, que afiava o ouvido e alongava
o pescoço o mais que podia para ver e ouvir o que se passava.
Foi no meio desta multidão silenciosa, imóvel, estupefata e anelante,
que Martinho, sacando tranqüilamente da algibeira o anúncio, que nós já
conhecemos, desdobrou‑o ante seus olhos, e em voz bem alta e sonora o leu
de principio a fim.

- Bem se vê, - continuou ele concluída a leitura, - que os sinais
combinam perfeitamente, e só um cego não verá naquela senhora
a escrava do anúncio. Mas para tirar toda a dúvida, só resta examinar
se ela tem o tal sinal de queimadura acima do seio, e é coisa que desde
já se pode averiguar com licença da senhora.

Dizendo isto, Martinho com impudente desembaraço se
encaminhava para Isaura.

- Alto lá, vil esbirro!... bradou Álvaro com força, e agarrando
o Martinho pelo braço, o arrojou para longe de Isaura, e o teria lançado
em terra, se ele não fosse esbarrar de encontro ao grupo, que cada vez
mais se apertava em torno deles. - Alto lá! nem tanto desembaraço!
escrava, ou não, tu não lhe deitarás as mãos imundas.

Aniquilada de dor e de vergonha, Isaura erguendo enfim o rosto,
que até ali tivera sempre debruçado e escondido sobre o seio de seu
pai, voltou‑se para os circunstantes, e ajuntando as mãos convulsas no
gesto da mais violenta agitação:

- Não é preciso que me toquem, - exclamou com voz angustiada.
- Meus senhores, e senhoras, perdão! cometi uma infâmia, uma indignidade
imperdoável!... mas Deus me é testemunha, que uma cruel fatalidade a isso me
levou. Senhores, o que esse homem diz, é verdade. Eu sou... uma escrava!...

O rosto da cativa cobriu‑se de lividez cadavérica, como lírio ceifado
pendeu‑lhe a fronte sobre o seio, e o donoso corpo desabou como bela
estátua de mármore, que o furacão arranca do pedestal, e teria rojado
pela terra, se os braços de Álvaro e de Miguel não tivessem prontamente
acudido para amparar‑lhe a queda.
Uma escrava!... estas palavras, soluçadas no peito de Isaura como
o estertor do arranco extremo, murmuradas de boca em boca pela multidão
estupefata, ecoaram largo tempo pelos vastos salões, como o rugir
sinistro das lufadas da noite pela grenha de fúnebre arvoredo.
Este estranho incidente produziu no sarau o mesmo efeito que faria
em um acampamento a explosão de um paiol de pólvora; nos primeiros
momentos, susto, pasmo e uma espécie de estertor de angústia; depois,
agitação, alarma, movimento e alarido.
Álvaro e Miguel conduziram Isaura desfalecida ao boudoir das
damas, e aí, ajudados por algumas senhoras compassivas, prestaram‑lhe
os socorros que o caso reclamava, e não a abandonaram enquanto não
recobrou completamente os sentidos. Martinho, inquieto e ressabiado,
os seguia e espiava o mais de perto que lhe era possível, com receio de
que lhe roubassem a presa.
É impossível descrever a celeuma que se levantou, a agitação que
sublevou todos os espíritos, e as diversas e opostas impressões que
produziu nos ânimos aquela inesperada revelação. Com que cara ficariam
tantas belezas de primeira ordem, tantas damas das mais distintas
jerarquias sociais, ao saberem que aquela que as havia suplantado a todas,
em formosura, donaire, talentos e graças do espírito, não era mais que
uma escrava! eu mesmo não sei dizer; os leitores que façam idéia.
Entretanto em muitas delas o cruel desapontamento por que acabavam de
passar não deixava de ser mesclado de um certo contentamento íntimo,
mormente naquelas que se sentiam enfadadas pelas deferências e
homenagens que certos cavalheiros, tomados de entusiasmo, haviam
francamente rendido à gentil desconhecida. Estavam humilhadas, mas
também vingadas. Quanto ás que tinham esperanças ou pretensões ao
amor de Alvaro, - e não eram poucas, - essas exultaram de júbilo ao
saberem do caso, e o nobre mancebo tornou‑se o alvo de mil desapiedados
apodos e pilhérias.

- O que me diz do escravo da escrava? - diziam elas - com
que cara não ficaria o pobre homem!...

- Com a mesma. Decerto vai forrá‑la e casar‑se com ela. Aquilo é
um maluco capaz de todas as asneiras.

- E que mau! Terá ao mesmo tempo mulher e talvez uma boa
cozinheira.

Triste consolação! o estigma do cativeiro não podia apagar da bela
fronte de Isaura, antes mais realçava o cunho de superioridade que o
sopro divino nela havia gravado em caracteres indeléveis.
Entre os mancebos a impressão era bem diferente. Poucos, bem
poucos, deixavam de tomar vivo interesse e compaixão pela sorte da
infeliz e formosa escrava. Por todos os cantos falava‑se e discutia‑se
com calor a respeito do caso. Alguns, a despeito da evidência dos indícios
e da confissão de Isaura, ainda duvidavam da verdade que tinham diante
dos olhos.

- Não; aquela mulher não pode ser uma escrava, - diziam eles,
- aqui há algum mistério, que algum dia se desvendará.

- Qual mistério? o caso é muito factível, e ela mesma o confessou.
Mas quem será esse bruto e desalmado fazendeiro, que conserva
no cativeiro uma tão linda criatura?

- Deve ser algum lorpa de alma bem estúpida e sórdida.

- Se não for algum sultãozinho de bom gosto, que a quer para o
seu serralho.

- Seja como for, esse bruto deve ser constrangido a dar‑lhe a
liberdade. Na senzala uma mulher que merecia sentar‑se num trono!...

- Também só o infame do Martinho, com o seu satânico instinto
de cobiça, poderia farejar uma escrava na pessoa daquele anjo! que
impudência! se o visse agora aqui, era capaz de estrangulá‑lo!

Entretanto, Martinho, que se havia previamente munido de um
mandado de apreensão, e se fazia acompanhar de um oficial de justiça,
exigia terminantemente que se lhe fizesse entrega de Isaura. Álvaro, porém,
interpondo o valimento e prestígio de que gozava, opôs‑se decididamente a
essa exigência, e tomando por testemunhas as pessoas que ali se achavam,
constituiu‑se fiador da escrava, comprometendo‑se a entregá‑la a seu senhor,
ou a quem por ordem dele a reclamasse. Em vão Martinho quis insistir; uma
multidão de vozes, que o apupavam e cobriam de injúrias, forçaram‑no a
calar‑se e desistir de sua pretensão.

- Ah! malditos! querem‑me roubar! - bradava Martinho como
um possesso. - Meus cinco contos! ai! meus cinco contos! lá se vão
pela água abaixo.

E dizendo isto procurou a escada, e saltando‑a aos dois e três
degraus, lá se foi bramindo pela porta a fora.





Capítulo 15

Já é passado cerca de um mês depois dos acontecimentos que
acabamos de narrar. Isaura e Miguel, graças à valiosa intervenção de
Álvaro, continuam a habitar a mesma pequena chácara no bairro de
Santo Antônio. Já não lhes sendo mais possível pensar em fugir para
mais longe nem ocultarem‑se, ali se conservam por conselho de seu
protetor, esperando o resultado dos passos que este se comprometera a
dar em favor deles, porém sempre na mais angustiosa inquietação,
como Dâmocles tendo sobre a cabeça aguda espada suspensa por um fio.
Álvaro vai quase todos os dias à casa dos dois foragidos, e ali
passa longas horas entretendo‑os sobre os meios de conseguir a
liberdade de sua protegida, e procurando confortá‑los na esperança de
melhor destino.
Para nos inteirarmos do que tem ocorrido desde a fatal noite do
baile, ouçamos a conversação que teve lugar em casa de Isaura, entre
Álvaro e o seu amigo Dr. Geraldo.
Este, na mesma manhã que seguiu‑se á noite do baile, deixara o
Recife e partira para uma vila do interior, onde tinha sido chamado a
fim de encarregar‑se de uma causa importante. De volta à capital no fim
de um mês, um de seus primeiros cuidados foi procurar Álvaro, não só
pelo impulso da amizade, como também estimulado pela curiosidade de
saber do desenlace que tivera a singular aventura do baile. Não o tendo
achado em casa por duas ou três vezes que aí o procurou, presumiu
que o meio mais provável de encontrá‑lo seria procurá‑lo em casa de
Isaura, caso ela ainda se achasse no Recife residindo na mesma chácara;
não se iludiu.
Álvaro, tendo reconhecido a voz de seu amigo, que da porta do
jardim perguntava por ele, saiu ao seu encontro; mas antes disso, tendo
assegurado aos donos da casa que a pessoa que o procurava era um
amigo íntimo, em quem depositava toda confiança, pediu‑lhes licença
para o fazer entrar.
Geraldo foi introduzido em uma pequena sala da frente. Posto que
pouco espaçosa e mobiliada com a maior simplicidade, era esta salinha
tão fresca, sombria e perfumada, tão cheia de flores desde a porta da
entrada, a qual bem como as janelas estava toda entrelaçada de ramos
e festões de flores, que mais parecia um caramanchão ou gruta de
verdura, do que mesmo uma sala. Quase toda a luz lhe vinha pelos fundos
através de uma larga porta dando para uma varanda aberta, que olhava
para o mar. Dali a vista, enfiando‑se por entre troncos de coqueiros,
que derramavam sombra e fresquidão em tomo da casa, deslizava pela
superfície do oceano, e ia embeber‑se na profundidade de um céu límpido
e cheio de fulgores.
Miguel e Isaura depois de terem cumprimentado o visitante e trocado
com ele algumas palavras de mera civilidade, presumindo que queriam estar sós,
retiraram‑se discretamente para o interior da casa.

- Na verdade, Álvaro, - disse o doutor sorrindo‑se, - é uma
deliciosa morada esta, e não admira que gostes de passar aqui grande
parte do teu tempo. Parece mesmo a gruta misteriosa de uma fada. É
pena que um maldito nigromante quebrasse de repente o encanto de
tua fada, transformando‑a em uma simples escrava!

- Ah! não gracejes, meu doutor; aquela cena extraordinária produziu
em meu espírito a mais estranha e dolorosa impressão: porém, francamente te
confesso, não mudou senão por instantes a natureza de meus sentimentos para
com essa mulher.

- Que me dizes?... a tal ponto chegará a tua excentricidade?!..

- Que queres? a natureza assim me fez. Nos primeiros momentos
a vergonha e mesmo uma espécie de raiva me cegaram; vi quase com
prazer o transe cruel por que ela passou. Que triste e pungente decepção!
Vi em um momento desmoronar‑se e desfazer‑se em lama o brilhante castelo
que minha imaginação com tanto amor tinha erigido!... uma escrava iludir‑me por
tanto tempo, e por fim ludibriar‑me, expondo‑me em face da sociedade à
mais humilhante irrisão! faze idéia de quanto eu ficaria confuso e corrido diante
daquelas ilustres damas, com as quais tinha feito ombrear uma escrava em
pleno baile, perante a mais distinta e brilhante sociedade!...

- E o que mais é, - acrescentou Geraldo, - uma escrava que
as ofuscava a todas por sua rara formosura e brilhantes talentos. Nem
de propósito poderias preparar‑lhes mais tremenda humilhação, um
crime, que nunca te perdoarão, posto que saibam que também
andavas iludido.

- Pois bem, Geraldo; eu, que naquela ocasião, desairado e confuso,
não sabia onde esconder a cara, hoje rio e me aplaudo por ter
dado ocasião a semelhante aventura. Parece que Deus de propósito
tinha preparado aquela interessante cena, para mostrar de um modo
palpitante quanto é vã e ridícula toda a distinção que provém do
nascimento e da riqueza, e para humilhar até o pó da terra o orgulho
e fatuidade dos grandes, e exaltar e enobrecer os humildes de nascimento,
mostrando que uma escrava pode valer mais que uma duquesa.

Pouco durou aquela primeira e desagradável impressão. Bem depressa
a compaixão, a curiosidade, o interesse, que inspira o infortúnio em
uma pessoa daquela ordem, e talvez também o amor, que nem com
aquele estrondoso escândalo pudera extinguir‑se em meu coração,
fizeram‑me esquecer tudo, e resolvi‑me a proteger francamente e a
todo o transe a formosa cativa. Apenas consegui que Isaura recobrasse
os sentidos, e a vi fora de perigo, corri à casa do chefe de polícia,
e expondo-lhe o caso, graças às relações de amizade, que com ele tenho,
obtive permissão para que Isaura e seu pai, - fica sabendo que é
realmente seu pai, - pudessem recolher‑se livremente à sua casa, ficando
eu por garantia de que não desapareceriam; e assim se efetuou, a
despeito dos bramidos do Martinho, que teimava em não querer largar
a presa. Todavia, no dia seguinte pela manhã, o mesmo chefe, pesando a
gravidade e importância do negócio, quis que ela fosse conduzida à
sua presença para interrogá‑la e verificar a identidade de pessoa.
Encarreguei‑me de conduzi‑la. Oh! se a visses então!... Através das
lágrimas, que lhe arrancava sua cruel situação, transparecia, em todo o
seu brilho, a dignidade humana. Nada havia nela que denunciasse a abjeção do
escravo, ou que não revelasse a candura e nobreza de sua alma. Era o
anjo da dor exilado do céu e arrastado perante os tribunais humanos.
Cheguei a duvidar ainda da cruel realidade. O chefe de polícia,
possuído de respeito e admiração diante de tão gentil e nobre
figura, tratou‑a com toda a amabilidade, e interrogou‑a com brandura e
polidez. Coberta de rubor e pejo confessou tudo com a ingenuidade de uma
alma pura. Fugira em companhia de seu pai, para escapar ao amor de
um senhor devasso, libidinoso e cruel, que a poder de violências e
tormentos tentava forçá‑la a satisfazer seus brutais desejos. Mas Isaura, a
quem uma natureza privilegiada secundada pela mais fina e esmerada
educação, inspirara desde a infância o sentimento da dignidade e do
pudor, repeliu com energia heróica todas as seduções e ameaças de seu
indigno senhor. Enfim, ameaçada dos mais aviltantes e bárbaros tratamentos,
que já começavam a traduzir‑se em vias de fato, tomou o partido extremo de
fugir, o único que lhe restava.

- O motivo da fuga, Álvaro, a ser verdadeiro, é o mais honroso
possível para ela, e a toma uma heroína; mas... enfim de contas ela não
deixa de ser uma escrava fugida.

- E por isso mesmo mais digna de interesse e compaixão. Isaura
tem‑me contado toda a sua vida, e segundo creio, pode alegar, e talvez
provar direito à liberdade. Sua senhora velha, mãe do atual senhor, a
qual criou‑a com todo o mimo, e a quem ela deve a excelente educação
que tem, tinha declarado por vezes diante de testemunhas, que por
sua morte a deixaria livre; a morte súbita e inesperada desta senhora,
que faleceu sem testamento, é a causa de Isaura achar‑se ainda entre as
garras do mais devasso e infame dos senhores.

- E agora, o que pretendes fazer?...

- Pretendo requerer que Isaura seja mantida em liberdade, e que
lhe seja nomeado um curador a fim de tratar do seu direito.

- E onde esperas encontrar provas ou documentos para provar as
alegações que fazes?

- Não sei, Geraldo; desejava consultar‑te, e esperava‑te com
impaciência precisamente para esse fim. Quero que com a tua ciência
jurídica me esclareças e inspires neste negócio. Já lancei mão do primeiro e
mais óbvio expediente que se me oferecia, e logo no dia seguinte ao do
baile escrevi ao senhor de Isaura com as palavras as mais comedidas e
suasivas, de que pude usar, convidando‑o a abrir preço para a liberdade
dela. Foi pior; o libidinoso e ciumento Rajá enfureceu‑se e mandou‑me
em resposta esta carta insolente, que acabo de receber, em que me
trata de sedutor e acoutador de escravas alheias, e protesta lançar mão
dos meios legais para que lhe seja entregue a escrava.

- É bem parvo e descortês o tal sultanete, - disse Geraldo
depois de ter percorrido rapidamente a carta, que Álvaro lhe apresentou;
- mas o certo é que, pondo de parte a insolência...

- Pela qual há de me dar completa e solene satisfação, eu o protesto.

- Pondo de parte a insolência, se nada tens de valioso a apresentar
em favor da liberdade da tua protegida, ele tem o incontestável direito de
reclamar e apreender a sua escrava onde quer que se ache.

- Infame e cruel direito é esse, meu caro Geraldo. É já um escárnio
dar‑se o nome de direito a uma instituição bárbara, contra a qual protestam
altamente a civilização, a moral e a religião. Porém, tolerar a sociedade que
um senhor tirano e brutal, levado por motivos infames e vergonhosos, tenha o
direito de torturar uma frágil e inocente criatura, só porque teve a desdita de
nascer escrava, é o requinte da celeradez e da abominação.

- Não é tanto assim, meu caro Álvaro; esses excessos e abusos
devem ser coibidos; mas como poderá a justiça ou o poder público
devassar o interior do lar doméstico, e ingerir‑se no governo da casa do
cidadão? que abomináveis e hediondos mistérios, a que a escravidão dá
lugar, não se passam por esses engenhos e fazendas, sem que, já não
digo a justiça, mas nem mesmo os vizinhos, deles tenham conhecimento?...
Enquanto houver escravidão, hão de se dar esses exemplos. Uma
instituição má produz uma infinidade de abusos, que só poderão ser
extintos cortando‑se o mal pela raiz.

- É desgraçadamente assim; mas se a sociedade abandona
desumanamente essas vítimas ao furor de seus algozes, ainda há no mundo
almas generosas que se incumbem de protegê‑las ou vingá‑las. Quanto
a mim protesto, Geraldo, enquanto no meu peito pulsar um coração,
hei de disputar Isaura à escravidão com todas as minhas forças, e espero que
Deus me favorecerá em tão justa e santa causa.

- Pelo que vejo, meu Álvaro, não procedes assim só por espírito
de filantropia, e ainda amas muito a essa escrava.

- Tu o disseste, Geraldo; amo‑a muito, e hei de amá‑la sempre e
nem disso faço mistério algum. E será coisa estranha ou vergonhosa
amar‑se uma escrava? O patriarca Abraão amou sua escrava Agar, e
por ela abandonou Sara, sua mulher. A humildade de sua condição
não pode despojar Isaura da cândida e brilhante auréola de que a via e
até hoje a vejo circundada. A beleza e a inocência são astros que mais
refulgem quando engolfados na profunda escuridão do infortúnio.

- É bela a tua filosofia, e digna de teu nobre coração; mas que
queres? as leis civis, as convenções sociais, são obras do homem, imperfeitas,
injustas, e muitas vezes cruéis. O anjo padece e geme sob o jugo
da escravidão, e o demônio exalça‑se ao fastígio da fortuna e do poder.

- E assim pois, - refletiu Álvaro com desânimo, - nessas desastradas
leis nenhum meio encontras de disputar ao algoz essa inocente vítima?

- Nenhum, Álvaro, enquanto nenhuma prova puderes aduzir em
prol do direito de tua protegida. A lei no escravo só vê a propriedade, e
quase que prescinde nele inteiramente da natureza humana. O senhor
tem direito absoluto de propriedade sobre o escravo, e só pode perdê‑lo
manumitindo‑o ou alheando‑o por qualquer maneira, ou por litígio
provando‑se liberdade, mas não por sevícias que cometa ou outro qualquer
motivo análogo.

- Miserável e estúpida papelada que são essas vossas leis. Para
ilaquear a boa‑fé, proteger a fraude, iludir a ignorância, defraudar o
pobre e favorecer a usura e rapacidade dos ricos, são elas fecundas em
recursos e estratagemas de toda a espécie. Mas quando se tem em vista
um fim humanitário, quando se trata de proteger a inocência desvalida
contra a prepotência, de amparar o infortúnio contra uma injusta
perseguição, então ou são mudas, ou são cruéis. Mas não obstante elas, hei
de empregar todos os esforços ao meu alcance para libertar a infeliz do
afrontoso jugo que a oprime. Para tal empresa alenta‑me não já
somente um impulso de generosidade, como também o mais puro e ardente
amor, sem pejo o confesso.

O amigo de Álvaro arrepiou‑se com esta deliberação tão franca e
entusiasticamente proclamada com essa linguagem tão exaltada, que lhe
pareceu um deplorável desvario da imaginação.

- Nunca pensei, replicou com gravidade, - que a tal ponto chegasse
a exaltação desse teu excêntrico e malfadado amor. Que por um
impulso de humanidade procures proteger uma escrava desvalida, nada
mais digno e mais natural. O mais não passa de delírio de uma imaginação
exaltada e romanesca. Será airoso e digno da posição que ocupas na
sociedade, deixares‑te dominar de uma paixão violenta por uma escrava?

- Escrava! - exclamou Álvaro cada vez mais exaltado, - isso
não passa de um nome vão, que nada exprime, ou exprime uma
mentira. Pureza de anjo, formosura de fada, eis a realidade! Pode um
homem ou a sociedade inteira contrariar as vistas do Criador, e
transformar em uma vil escrava o anjo que sobre a Terra caiu das mãos
de Deus?...

- Mas por uma triste fatalidade o anjo caiu do céu no lodaçal da
escravidão, e ninguém aos olhos do mundo o poderá purificar dessa
nódoa, que lhe mancha as asas. Álvaro, a vida social está toda juncada
de forcas caudinas, por debaixo das quais nos é forçoso curvar‑nos,
sob pena de abalroarmos a fronte em algum obstáculo, que nos faça
cair. Quem não respeita as conveniências e até os preconceitos sociais,
arrisca‑se a cair no descrédito ou no ridículo.

- A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera
hedionda na face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte,
nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o respeito por um
preconceito absurdo, resultante de um abuso que nos desonra aos olhos
do mundo civilizado. Seja eu embora o primeiro a dar esse nobre
exemplo, que talvez será imitado. Sirva ele ao menos de um protesto
enérgico e solene contra uma bárbara e vergonhosa instituição.

- És rico, Álvaro, e a riqueza te dá bastante independência para
poderes satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de tua
imaginação romanesca. Mas tua riqueza, por maior que seja, nunca
poderia reformar os prejuízos do mundo, nem fazer com que essa
escrava, a quem segundo todas as aparências quererias ligar o teu
destino, fosse considerada, e nem mesmo admitida nos círculos da alta
sociedade...

- E que me importam os círculos da alta sociedade, uma vez que
sejamos bem acolhidos no meio das pessoas de bom senso, e coração
bem formado? Demais, enganas‑te completamente, meu Geraldo. O
mundo corteja sempre o dinheiro, onde quer que ele se ache. O ouro
tem um brilho que deslumbra, e apaga completamente essas pretendidas
nódoas de nascimento. Não nos faltarão, nunca, eu te afianço, o
respeito, nem a consideração social, enquanto nos não faltar o
dinheiro.

- Mas, Álvaro, esqueces‑te de uma coisa muito essencial; e se te
não for possível obter a liberdade de tua protegida?...

A esta pergunta Álvaro empalideceu, e oprimido pela idéia de tão
cruel como possível alternativa, sem responder ‑ palavra olhava tristemente
para o horizonte, quando o boleeiro de Álvaro, que se achava postado com sua
caleça junto à porta do jardim, veio anunciar‑lhe que algumas pessoas o
procuravam e desejavam falar‑lhe, ou ao dono da casa.

- A mim! - resmungou Álvaro; porventura estou eu em minha
casa?... mas como também procuram o dono desta... faça‑os entrar.

- Álvaro, disse Geraldo espreitando por uma janela, - se me não
engano, é gente da polícia; parece‑me que lá vejo um oficial de justiça.
Teremos outra cena igual à do baile?...

- Impossível!.., com que direito virão tocar‑me no depósito
sagrado, que a mesma polícia me confiou!...

- Não te fies nisso. A justiça é uma deusa muito volúvel e fértil
em patranhas. Hoje desmanchará o que fez ontem.





Capítulo 16

O primeiro cuidado de Martinho logo ao sair do baile, em que viu
malograda a sua tentativa de apreender Isaura, foi escrever ao senhor
dela uma longa e minuciosa carta, comunicando‑lhe que tinha tido a
fortuna de descobrir a escrava que tanto procurava.
Contava por miúdo as diligências que fizera para esse fim, até
descobri‑la em um baile público e encarecia o seu próprio mérito e
perspicácia para esbirro, dizendo que a não ser ele, ninguém seria capaz de
farejar uma escrava na pessoa de uma moça tão bonita e tão prendada.
Alterando os fatos e as circunstâncias do modo o mais atroz e calunioso,
dizia‑lhe em frases de taverneiro, que Miguel se estabelecera no Recife
com Isaura a fim de especular com a formosura da filha, a qual, a poder
de armar laços à rapaziada vadia e opulenta, tinha por fim conseguido
apanhar um patinho bem gordo e fácil de depenar. Era este um
pernambucano por nome Álvaro, moço duas vezes milionário, e mil
vezes desmiolado, que tinha por ela uma paixão louca. Este moço, a
quem ela trazia iludido e engodado ao ponto de ele querer desposá‑la,
caiu na tolice de levá‑la a um baile, onde ele Martinho teve a fortuna
de descobri‑la, e a teria apreendido, e estaria ela já de marcha para o
poder de seu senhor, se não fosse a oposição do tal senhor Álvaro, que
apesar de ficar sabendo de que ralé era a sua heroína, teve a pouca‑vergonha
de protegê‑la escandalosamente. Prevalecendo‑se das valiosas relações, e
da influência de que gozava no país em razão de sua riqueza, conseguiu
impedir a sua apreensão, e tornando‑se fiador dela a conservava em
seu poder contra toda a razão e justiça, protestando não entregá‑la
senão ao seu próprio senhor. Julga que a intenção de Álvaro é tentar
meios de libertá‑la, a fim de fazê‑la sua mulher ou sua amásia. Julgava
de seu dever comunicar‑lhe tudo isso para seu governo.
Era este em suma o conteúdo da carta de Martinho, a qual seguiu
para o Rio de Janeiro no mesmo paquete que levava a carta de Álvaro,
fazendo proposições para a liberdade de Isaura. Leôncio, contente com
a descoberta, mas cheio de ciúme e inquietação em vista das informações
de Martinho, apressou‑se em responder a ambos, e o mesmo paquete que
trouxe a resposta insolente e insultuosa que dirigiu a Álvaro, foi portador
da que se destinava a Martinho, na qual o autorizava a apreender a escrava
em qualquer parte que a encontrasse, e para maior segurança remetia‑lhe
também procuração especial para esse fim, e mais algumas cartas de
recomendação de pessoas importantes para o chefe de policia, para que o
auxiliasse naquela diligência.
Martinho mais que depressa dirigiu‑se à casa da polícia, e apresentando
ao chefe todos esses papéis, requereu‑lhe que mandasse entregar‑lhe a escrava.
O chefe em vista dos documentos de que Martinho se achava munido, entendeu
que não lhe era possível denegar‑lhe o que pedia, e expediu ordem por escrito,
para que lhe fosse entregue a escrava em questão. e deu‑lhe um oficial de justiça
e dois guardas para efetuarem a diligência.
Foi, portanto, o Martinho, que, munido de todos os poderes,
competentemente autorizado pela polícia, apresentou‑se com sua escolta à
porta da casa de Isaura, para arrebatar a Alvaro a cobiçada presa.

- Ainda este infame! - murmurou Álvaro entre os dentes ao ver
entrar o Martinho. - Era um rugido de cólera impotente, que o angustiado
mancebo arrancara do íntimo da alma.

- Que deseja de mim o senhor? - perguntou Álvaro em tom
seco e altivo.

- V. S.ª que bem me conhece, - respondeu Martinho, - já
pode presumir pouco mais ou menos o motivo que aqui me traz.

- Nem por sombras posso adivinhá‑lo, antes me causa estranheza
esse aparato policial, de que vem acompanhado.

- Sua estranheza cessará, sabendo que venho reclamar uma escrava
fugida, por nome Isaura, que há muito tempo foi por mim apreendida no meio
de um baile, no qual se achava V. S.ª e devendo eu enviá‑la a seu senhor no
Rio de Janeiro, V. S.ª a isso se opôs sem motivo algum justificável, conservando‑a
até hoje em seu poder contra todo o direito.

- Alto lá, senhor Martinho! penso que não é pessoa competente
para dar ou tirar direito a quem lhe parecer. O senhor bem sabe que eu
sou depositário dessa escrava, e que com todo o direito e consentimento
da autoridade a tenho debaixo de minha proteção.

- Esse direito, se é que se pode chamar direito a uma arbitrariedade,
cessou, desde que V. S.ª nada tem alegado em favor da mesma escrava.
E demais, - continuou apresentando um papel, - aqui está ordem expressa e
terminante do chefe de polícia, mandando que me seja entregue a dita escrava.
A isto nada se pode opor legalmente.

- Pelo que vejo, senhor Martinho, - disse Álvaro depois de
examinar rapidamente o papel que Martinho lhe entregara, - ainda
não desistiu de seu indigno procedimento, tornando‑se por um pouco
de dinheiro o vil instrumento do algoz de uma infeliz mulher? Reflita, e
verá que essa infame ação só pode inspirar asco e horror a todo o
mundo.

Martinho achando‑se acostado pela policia, julgou‑se com direito de
mostrar‑se áspero e arrogante, e, portanto, com imperturbável sangue-frio:

- Senhor Álvaro, - respondeu, - eu vim a esta casa somente
com o fim de exigir em nome da autoridade a entrega de uma escrava
fugida, que aqui se acha acoutada, e não para ouvir repreensões, que o
senhor não tem direito de dar‑me. Trate de fazer o que a lei ordena e a
prudência aconselha, se não quer que use de meu direito...

- Qual direito?!...

- De varejar esta casa e levar à força a escrava.

- Retira‑te, miserável esbirro! - bradou Álvaro com força, não
podendo mais sopear a cólera. - Desaparece de minha presença, se
não queres pagar caro o teu atrevimento!...

- Senhor Álvaro!... veja o que faz!

O Dr. Geraldo, não achando muita razão em seu amigo, por prudência
até ali se tinha conservado silencioso, mas vendo que a cólera e imprudência
de Alvaro ia excedendo os limites, julgou de seu dever intervir na questão, e
aproximando‑se de Alvaro, e puxando‑lhe o braço:

- Que fazes, Álvaro? - disse‑lhe em voz baixa. - Não vês que
com esses arrebatamentos não consegues senão comprometer‑te, e
agravar a sorte de Isaura? mais prudência, meu amigo.

- Mas... que devo eu fazer?... não me dirás?

- Entregá‑la.

- Isso nunca!... - replicou Álvaro terminantemente.

Conservaram‑se todos silenciosos por alguns momentos. Álvaro
parecia refletir.

- Ocorre‑me um expediente, - disse ele ao ouvido de Geraldo,
- vou tentá‑lo.

E sem esperar resposta aproximou‑se de Martinho.

- Senhor Martinho, - disse‑lhe ele, - desejo dizer‑lhe duas palavras
em particular, com permissão aqui do doutor.

- Estou às suas ordens, - replicou Martinho.

- Estou persuadido, senhor Martinho, - disse‑lhe Alvaro em voz
baixa, tomando‑o de parte, - que a gratificação de cinco contos é o
motivo principal que o leva a proceder desta maneira contra uma infeliz
mulher, que nunca o ofendeu. Está em seu direito, eu reconheço, e a
soma não é para desprezar. Mas se quiser desistir completamente desse
negócio, e deixar em paz essa escrava, dou‑lhe o dobro dessa quantia.

- O dobro!... dez contos de réis! exclamou Martinho arregalando
os olhos.

- Justamente; dez contos de réis de hoje mesmo.

- Mas, senhor Alvaro, já empenhei minha palavra para com o
senhor da escrava, dei passos para esse fim, e...

- Que importa!... diga que ela evadiu‑se de novo, ou dê outra
qualquer desculpa...

- Como, se é tão público que ela se acha em poder de V. S.ª ?...

- Ora!... isso é sua vontade, senhor Martinho; pois um homem
vivo e atilado como o senhor embaraça‑se com tão pouca coisa!...

- Vá, feito - disse Martinho depois de refletir um instante. - Já
que Sa. tanto se interessa por essa escrava, não quero mais afligi‑lo
com semelhante negócio, que a dizer‑lhe a verdade bem me
repugna. Aceito a proposta.


- Obrigado; é um importante serviço que vai me prestar.

- Mas que volta darei eu ao negócio para sair‑me bem dele?

- Veja lá; sua imaginação é fácil em recursos, e há de inspirar‑lhe
algum meio de safar‑se de dificuldades com a maior limpeza.

Martinho ficou por alguns momentos a roer as unhas, pensativo e
com os olhos pregados no chão. Por fim levantando a cabeça e levando
à testa o dedo índice:

- Atinei! exclamou. - Dizer que a escrava desapareceu de novo,
não é conveniente, e iria comprometer a V. S.ª que se responsabilizou
por ela. Direi somente que, bem averiguado o caso, reconheci que a
moça, que Sa. tem em seu poder, não é a escrava em questão, e
está tudo acabado.

- Essa não é mal achada... mas foi um negócio tão público...

- Que importa!... não se lembra V. S.ª de um sinal em forma de
queimadura em cima do seio esquerdo, que vem consignado no anúncio?
direi, que não se achou semelhante sinal, que é muito característico, e está
destruída a identidade de pessoa. Acrescentarei mais que a moça, por quem
V. S.ª se interessa, vista de noite é uma coisa, e de dia é outra; que em nada
se parece com a linda escrava que se acha descrita no anúncio, e que em vez
de ter vinte anos mostra ter seus trinta e muitos para quarenta, e que toda
aquela mocidade e formosura era efeito dos arrebiques, e da luz vacilante dos
lustres e candelabros.

- O senhor é bem engenhoso. - observou Alvaro sorrindo‑se; -
mas os que a viram nenhum crédito darão a tudo isso. Resta, porém,
ainda uma dificuldade, senhor Martinho; é a confissão que ela fez em
público!... isto há de ser custoso de embaraçar‑se.

- Qual custoso!... alega‑se que ela é sujeita a acessos de histerismo,
e é sujeita a alucinações.

- Bravo, senhor Martinho; confio absolutamente em sua perícia e
habilidade. E depois?

- E depois comunico tudo isso ao chefe de policia, declaro‑lhe
que nada mais tenho com esse negócio, passo a procuração a qualquer
meirinho, ou capitão‑do‑mato, que se queira encarregar dessa diligência,
e em ato contínuo escrevo ao senhor da escrava comunicando‑lhe o
meu engano, com o que ele por certo desistirá de procurá‑la mais por
aqui, e levará a outras partes as suas pesquisas. Que tal acha o meu
plano?...

- Admirável, e cumpre não perdermos tempo, senhor Martinho.

- Vou já neste andar, e em menos de duas horas estou aqui de
volta, a dar parte do desempenho de minha comissão.

- Aqui não, que não poderei demorar‑me muito. Espero‑o em
minha casa, e lá receberá a soma convencionada.

- Podem‑se retirar, - disse Martinho ao oficial de justiça e aos
guardas, que se achavam postados do lado de fora da porta. - Sua
presença não é mais necessária aqui. Não há dúvida! - continuou ele
consigo mesmo: - isto vai a dobrar como no lansquenê. Esta escrava é
uma mina, que me parece não estar ainda esgotada.

E retirou‑se, esfregando as mãos de contentamento.

- Então, que arranjo fizeste com o homem, meu Álvaro? - perguntou
Geraldo, apenas Martinho voltou as costas.

- Excelente, - respondeu Álvaro; - a minha lembrança surtiu o
desejado efeito, e ainda mais do que eu esperava.

Álvaro em poucas palavras deu conta ao seu amigo do mercado
que fizera com o Martinho.

- Que caráter desprezível e abjeto o deste Martinho! - exclamou
Geraldo. - De um tal instrumento não se pode esperar obra que preste. E
julgas ter conseguido muita coisa, Álvaro, com o passo que acabas de dar?...

- Não muito, porém alguma coisa sempre posso conseguir. Pelo
menos consigo deter o golpe por algum tempo, e como diz lá o rifão
popular, meu Geraldo, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.
Enquanto Leôncio, persuadido que a sua escrava não se acha aqui no
Recife, a procura por todo esse mundo, ela fica aqui tranqüilamente à
minha sombra, livre das perseguições e dos maus‑tratos de um bárbaro
senhor; e eu terei tempo para ativar os meios de arranjar provas e
documentos que justifiquem o seu direito à liberdade. É quanto me
basta por agora; quanto ao resto, já que pareces julgar a minha causa
irremissivelmente perdida, a justiça divina me inspirará o modo por
que devo proceder.

- Como te enganas, meu pobre Álvaro!... cuidas que arredando o
Martinho ficas por enquanto livre de perseguições e pesquisas contra a
tua protegida? que cegueira!... não faltarão malsins igualmente esganados
por dinheiro, que pelos cinco contos de réis, que para estes miseráveis é uma
soma fabulosa, se ponham à cata de tão preciosa presa. Agora principalmente,
que o Martinho deu o alarma, e que esse negócio tem atingido a um certo grau
de celebridade, em vez de um, aparecerão cem Martinhos no encalço da bela
fugitiva, e não terão mais que fazer senão seguir a trilha batida pelo primeiro.

- És muito meticuloso, Geraldo, e encaras as coisas sempre pelo
lado pior. É bem provável que peguem as patranhas inventadas pelo
Martinho, e que ninguém mais se lembre de descobrir a cativa Isaura
nessa moça, por quem me interesso, e embora mil malsins a procurem
por todos os cantos do mundo, pouco me importará. Sempre obtenho
uma dilação, que poderá me ser muito vantajosa.

- Pois bem, Álvaro; vamos que assim aconteça; mas tu não vês
que semelhante procedimento não é digno de ti?... que assim incorres
realmente nos epítetos afrontosos, com que obsequiou‑te o tal Leôncio,
e que te tomas verdadeiramente um sedutor e acoutador de escravos
alheios?...

- Desculpa‑me, meu caro Geraldo; não posso aceitar a tua reprimenda.
Ela só pode ter aplicação aos casos vulgares, e não às circunstâncias
especialíssimas em que eu e Isaura nos achamos colocados. Eu
não dou couto, nem capeio a uma escrava: protejo um anjo, e amparo
uma vítima inocente contra a sanha de um algoz. Os motivos que me
impelem, e as qualidades da pessoa por quem dou estes passos, nobilitam o
meu procedimento, e são bastantes para justificar‑me aos olhos de minha
consciência.

- Pois bem, Alvaro; faze o que quiseres; não sei que mais possa
dizer‑te para demover‑te de um procedimento, que julgo não só imprudente,
como, a falar‑te com sinceridade, ridículo, e indigno da tua pessoa.

Geraldo não podia dissimular o descontentamento que lhe causava
aquela cega paixão, que levava o seu amigo a atos que qualificava de
burlesco desatino, e loucura inqualificável. Por isso, longe de auxiliá‑lo
com seus conselhos, e indicar‑lhe os meios de promover a libertação de
Isaura, procurava com todo o empenho demovê‑lo daquele propósito,
pintando o negócio ainda mais difícil do que realmente o era. De bom
grado, se lhe fosse possível, teria entregado Isaura a seu senhor somente
para livrar Álvaro daquela terrível tentação, que o ia precipitando na senda das
mais ridículas extravagâncias.





Capitulo 17

Achando‑se só, Alvaro sentou‑se junto a uma mesa, e apoiando
nela os cotovelos com a fronte entre as mãos, ficou a cismar profundamente.
Isaura, porém, pressentindo pelo silêncio que reinava na sala, que
já ali não havia pessoas estranhas, foi ter com ele.

- Senhor Álvaro, - disse ela chegando‑se de manso e timidamente;
- desculpe‑me... eu venho decerto lhe aborrecer... queria talvez estar só...

- Não, minha Isaura; tu nunca me aborreces; pelo contrário, és
sempre bem‑vinda junto de mim...

- Mas vejo‑o tão triste!... parece‑me que aqui entrou mais gente,
e alteravam‑se vozes. Deram‑lhe algum desgosto, meu senhor?...

- Nada houve de extraordinário, Isaura; foram algumas pessoas
que vieram procurar o doutor Geraldo.

- Mas então, por que está assim triste e abatido?

- Não estou triste nem abatido. Estava meditando nos meios de
arrancar‑te do abismo da escravidão, meu anjo, e elevar‑te à posição
para que o céu te criou.

- Ah! senhor, não se mortifique assim por amor de uma infeliz,
que não merece tais extremos, É inútil lutar contra o destino irremediável
que me persegue.

- Não fales assim, Isaura. Tens em bem pouca conta a minha
proteção e o meu amor!...

- Não sou digna de ouvir de sua boca essa doce palavra. Empregue
seu amor em outra mulher que dele seja merecedora, e esqueça‑se
da pobre cativa, que tornou‑se indigna até de sua compaixão ocultando‑lhe
a sua condição, e fazendo‑o passar pelo vergonhoso pesar de...

- Cala‑te, Isaura... até quando pretendes lembrar‑te desse maldito
incidente?... eu somente fui o culpado forçando‑te a ir a esse baile, e
tinhas razão de sobra para não revelar‑me a tua desgraça. Esquece‑te
disso; eu te peço pelo nosso amor, Isaura.

- Não posso esquecer‑me, porque os remorsos me avivam sempre n`alma
a lembrança dessa fraqueza. A desgraça é má conselheira, e
nos perturba e anuvia o espirito. Eu o amava, assim como o amo ainda,
e cada vez mais... perdoe‑me esta declaração, que é sem dúvida uma
ousadia na boca de uma escrava.

- Fala, Isaura, fala sempre, que me amas. Pudesse eu ouvir de
teus lábios essa palavra por toda a eternidade.

- Era um triste amor na verdade, um amor de escrava, um amor
sem sorriso nem esperança. Mas a ventura de ser amada pelo senhor
era uma idéia tão consoladora para mim! Amando‑me o senhor me
nobilitava, a meus próprios olhos, e quase me fazia esquecer a realidade
de minha humilde condição. Eu tremia ao pensar que descobrindo‑lhe a
verdade, ia perder para sempre essa doce e única consolação que me
restava na vida. Perdoe, meu senhor, perdoe à escrava infeliz, que teve
a louca ousadia de amá‑lo.

- Isaura, deixa‑te de vãos escrúpulos, e dessas frases humildes,
que de modo nenhum podem caber em teus lábios angélicos. Se me
amas, eu também te amo, porque em tudo te julgo digna do meu amor;
que mais queres tu?... Se antes de conhecer a condição em que nasceste,
eu te amei subjugado por teus raros encantos, hoje que sei que a
tantos atrativos reúnes o prestigio do infortúnio e do martírio, eu te
adoro, eu te idolatro mais que nunca.

- Ama‑me, e é essa idéia, que ainda mais me mortifica!... de que
nos serve esse amor, se nem ao menos posso ter a fortuna de ser sua
escrava, e devo sem remédio morrer entre as mãos de meu algoz..

- Nunca, Isaura! - exclamou Álvaro com exaltação: - minha
fortuna, minha tranquilidade, minha vida, tudo sacrificarei para libertar-te
do jugo desse vil tirano. Se a justiça da Terra não me auxilia nesta
nobre e generosa empresa, a justiça do céu se fará cumprir por minhas
maos.

- Oh! senhor Alvaro!... não vá sacrificar‑se por uma pobre escrava,
que não merece tais excessos. Abandone‑me à minha sina fatal; já
não é pouca felicidade para mim ter merecido o amor de um cavalheiro
tão nobre e tão amável, como o senhor; esta lembrança me servirá de
alento e consolação em minha desgraça. Não posso, porém, consentir
que o senhor avilte o seu nome e a sua reputação, amando com tal
extremo a uma escrava.

- Por piedade, Isaura, não me martirizes mais com essa maldita
palavra, que constantemente tens nos lábios. Escrava tu!... não o és,
nunca o foste, e nunca o serás. Pode acaso a tirania de um homem ou
da sociedade inteira transformar em um ente vil, e votar à escravidão
aquela que das mãos de Deus saiu um anjo digno do respeito e
adoração de todos? Não, Isaura; eu saberei erguer‑te ao nobre e honroso
lugar a que o céu te destinou, e conto com a proteção de um Deus
justo, porque protejo um dos seus anjos.

Alvaro, não obstante ficar sabendo, depois da noite do baile, que
Isaura era uma simples escrava, nem por isso deixou de tratá‑la daí em
diante com o mesmo respeito, deferência e delicadeza, como a uma
donzela da mais distinta jerarquia social. Procedia assim de acordo com
os elevados principios que professava, e com os nobres e delicados
sentimentos do seu coração. O pudor, a inocência, o talento, a virtude e o
infortúnio, eram sempre para ele coisas respeitáveis e sagradas, quer se
achassem na pessoa de uma princesa, quer na de uma escrava. Sua
afeição era tão casta e pura como a pessoa que dela era objeto, e
nunca de leve lhe passara pelo pensamento abusar da precária e
humilde posição de sua amante, para profanar‑lhe a candura imaculada.
Nunca de sua parte um gesto mais ousado, ou uma palavra menos
casta haviam feito assomar ao rosto da cativa o rubor do pejo, e nem
tampouco os lábios de Alvaro lhe haviam roçado o mais leve beijo pelas
virginais e pudicas faces. Apenas depois de instantes e repetidas súplicas
de Isaura, havia tomado a liberdade de tratá‑la por tu, e isso mesmo
quando se achavam a sós.
Somente agora pela primeira vez, Álvaro, dominado pela mais
suave e veemente emoção, ao proferir as últimas palavras, enlaçando o
braço em torno ao colo de Isaura a cingia brandamente contra o
coração.
Estavam ambos enlevados na doçura deste primeiro amplexo de
amor, quando o ruído de um carro, que parou à porta do jardim, e logo
após um forte e estrondoso - ó de casa! - os fizeram separar‑se.
No mesmo momento entrava na sala o baleeiro de Álvaro, e
anunciava‑lhe que novas pessoas o procuravam.

- Oh, meu Deus!... que será isto hoje!... serão ainda os malditos
esbirros?... - refletiu Álvaro, e depois dirigindo‑se a Isaura:

- É prudente que te retires, minha amiga, - disse‑lhe; ninguém
sabe o que será e não convém que te vejam.

- Ah! que eu não sirva senão para perturbar‑lhe o sossego! -
murmurou Isaura retirando‑se.

Um momento depois Alvaro viu entrar na sala um elegante e belo
mancebo, trajado com todo o primor, e afetando as mais polidas e
aristocráticas maneiras; mas apesar de sua beleza, tinha ele na fisionomia,
como Lusbel, um não seu quê de torvo e sinistro, e um olhar sombrio, que
incutia pavor e repulsão.

- Este por certo não é um esbirro, - pensou Álvaro, e indicando
uma cadeira ao recém‑chegado: - Queira sentar‑se, - disse‑lhe,
e - tenha a bondade de dizer o que pretende deste seu criado.

- Desculpe‑me, - respondeu‑lhe o cavalheiro, passeando um
olhar escrutador em roda da sala: - não é a V. S.ª que eu desejava
falar, mas sim ao morador desta casa ou à sua filha.

Álvaro estremeceu. Estava claro que aquele mancebo, se bem que
nenhuma aparência tivesse de um esbirro, andava à pista de Isaura.
Todavia no intuito de verificar se era fundada a sua apreensão, antes de
chamar os donos da casa quis sondar as intenções do visitante.

- Não obstante, - respondeu ele, como estou autorizado pelos
donos da casa a tratar de todos os seus negócios, pode V. S.ª dirigir‑se
a mim, e dizer o que deles pretende.

- Sim, senhor; não ponho a menor dúvida, pois o que pretendo
não é nenhum mistério. Constando‑me com certeza, que aqui se acha
acoutada uma escrava fugida, por nome Isaura, venho apreendê‑la...

- Nesse caso deve entender‑se comigo, que sou o depositário
dessa escrava.

- Ah!.. pelo que vejo, V. S.ª é o senhor Álvaro!...

- Um criado de V. S.ª.

- Bem; muito estimo encontrá‑lo por aqui; pois saiba também
que eu sou Leôncio, o legítimo senhor dessa escrava.

Leôncio. ... o senhor de Isaura! Álvaro ficou como esmagado sob o
peso desta fulminante e tremenda revelação. Mudo e atônito, contemplou
por alguns instantes aquele homem de sombria catadura, que se
lhe apresentava aos olhos, implacável e sinistro como Lúcifer, prestes
a empolgar a vítima, que deseja arrastar aos infernos. Suor frio porejou-lhe
pela testa, e a mais pungente angústia apertou‑lhe o coração.

- É ele!... é o próprio algoz!... ai, pobre Isaura!... - foi este o eco
lúgubre, que remurmurou‑lhe dentro d`alma enregelada pelo desalento.





Capitulo 18

O leitor provavelmente não terá ficado menos atônito do que ficou
Álvaro, com o imprevisto aparecimento de Leôncio no Recife, e indo
bater certo na casa em que se achava refugiada a sua escrava.
É preciso, portanto, explicar‑lhe como isso aconteceu, para que não
pense que foi por algum milagre.
Leôncio, depois de ter escrito e entregado no correio as duas cartas
que conhecemos, uma dirigida a Álvaro, outra a Martinho, nem por isso
ficou mais tranqüilo. Devorava‑lhe a alma uma inquietação mortal, um
ciúme desesperador. A notícia de que Isaura se achava em poder de um
belo e rico mancebo, que a amava loucamente, era para ele um suplício
insuportável, um cancro, que lhe corroía as entranhas, e o fazia estrebuchar
em ânsias de desespero, avivando‑lhe cada vez mais a paixão furiosa que
concebera por sua escrava. Achava‑se ele na corte, para onde, logo que teve
notícias de Isaura, se dirigia imediatamente, a fim de se achar em um centro,
de onde pudesse tomar medidas prontas e enérgicas para a captura da mesma.
Tendo escrito e entregue as cartas na véspera da partida do vapor pela manhã,
levou o resto do dia a cismar. A terrível ansiedade em que se achava não lhe
permitia esperar a resposta e o resultado daquelas cartas, sendo muito mais
morosas e espaçadas do que hoje as viagens dos paquetes naquela época, em
que apenas se havia inaugurado a navegação a vapor pelas costas do
Brasil. Demais, ocorria‑lhe freqüentemente ao espírito o anexim popular
- quem quer vai, quem não quer manda. - Não podia fiar‑se na diligência e
boa vontade de pessoas desconhecidas, que talvez não pudessem
lutar vantajosamente contra a influência de Alvaro, o qual, segundo lho
pintavam, era um potentado em sua terra. O ciúme e a vingança não
gostam de confiar a olhos e mãos alheias a execução de seus desígnios.

- É indispensável que eu mesmo vá, - pensou Leôncio, e firme
nesta resolução foi ter com o ministro da justiça, com quem cultivava
relações de amizade, e pediu‑lhe uma carta de recomendação, - o que
equivale a uma ordem, - ao chefe de polícia de Pernambuco, para
que o auxiliasse eficazmente para o descobrimento e captura de uma
escrava. Já de antemão Leôncio também se havia munido de uma
precatória e mandado de prisão contra Miguel, a quem havia feito
processar e pronunciar como ladrão e acoutador de sua escrava. O
sanhudo paxá de nada se esquecia para tornar completa a sua vingança.

No outro dia Leôncio seguia para o Norte no mesmo vapor que
conduzia suas cartas.
Estas, porém, chegaram ao seu destino algumas horas antes que o
seu autor desembarcasse no Recife.
Leôncio, apenas pôs pé em terra, dirigiu‑se ao chefe de policia, e
entregando‑lhe a carta do ministro inteirou‑o de sua pretensão.
Tenho a informar‑lhe, senhor Leôncio, - respondeu‑lhe o
chefe - que haverá talvez pouco mais de duas horas que daqui saiu
uma pessoa autorizada por V. S.a para o mesmo fim de apreender essa
escrava, e ainda há pouco aqui chegou de volta declarando que tinha-se
enganado, e que acabava de reconhecer que a pessoa, de quem
desconfiava, não é e nem pode ser a escrava que fugiu a V. S.a.

- Um certo Martinho, não, senhor doutor?...

- Justamente.

- Deveras!... que me diz, senhor doutor?

- A verdade; ainda aí estão à porta o oficial de justiça e os
guardas, que o acompanharam.

- De maneira que terei perdido o meu tempo e a minha viagem!...
oh! não, não; isto não é possível. Creia‑me, senhor doutor, aqui
há patranha... o tal senhor Álvaro dizem que é muito rico...

- E o tal Martinho um valdevinos capaz de todas as infâmias.
Tudo pode ser; mas a V. S.ª como interessado, compete averiguar essas
coisas.

- E é o que venho disposto a fazer. Irei lá eu mesmo verificar o
negócio por meus próprios olhos, e já, se for possível.

- Quando quiser. Ali estão o oficial de justiça e os guardas, que
ainda agora de lá vieram, e ninguém melhor do que eles pode guiar a
V. S.ª e efetuar a captura, caso reconheça ser a sua própria escrava.

- Também me é preciso que V. S.ª ponha o - cumpra‑se -
nesta precatória - disse Leôncio apresentando a precatória contra Miguel -
é necessário punir o patife que teve a audácia de desencaminhar e roubar‑me
a escrava.

O chefe satisfez sem hesitar ao pedido de Leôncio, que acompanhado
da pequena escolta, que fez subir ao seu carro, no mesmo momento se dirigiu
à casa de Isaura, onde o deixamos em face de Álvaro.
A situação deste não era só crítica; era desesperada. O seu
antagonista ali estava armado de seu incontestável direito para humilhá‑lo,
esmagá‑lo, e o que mais é, despedaçar‑lhe a alma, roubando‑lhe a
amante adorada, o ídolo de seu coração, que ia‑lhe ser arrancada dos
braços para ser prostituída ao amor brutal de um senhor devasso, se
não sacrificada ao seu furor. Não tinha remédio senão curvar‑se sem
murmurar ao golpe do destino, e ver de braços cruzados metida em
ferros, e entregue ao azorrague do algoz a nobre e angélica criatura,
que, única entre tantas belezas, lhe fizera palpitar o coração
em emoções do mais extremoso e puro amor.
Deplorável contingência, a que somos arrastados em conseqüência
de uma instituição absurda e desumana!
O devasso, o libertino, o algoz, apresenta‑se altivo e arrogante,
tendo a seu favor a lei, e a autoridade, o direito e a força, lança a garra
sobre a presa, que é objeto de sua cobiça ou de seu ódio, e pode frui‑la
ou esmagá‑la a seu talante, enquanto o homem de nobre coração, de
impulsos generosos, inerme perante a lei, aí fica suplantado, tolhido,
manietado sem poder estender o braço em socorro da inocente e nobre
vítima, que deseja proteger. Assim, por uma estranha aberração, vemos
a lei armando o vício, e decepando os braços à virtude.
Estava pois Álvaro em presença de Leôncio como o condenado em
presença do algoz. A mão da fatalidade o socalcava com todo o seu
peso esmagador, sem lhe deixar livre o mínimo movimento.
Vinha Leôncio ardendo em fúrias de raiva e de ciúme, e
prevalecendo‑se de sua vantajosa posição, aproveitou a ocasião para
vingar‑se de seu rival, não com a nobreza de cavalheiro, mas procurando
humilhá‑lo à força de impropérios.

- Sei que há muito tempo, - disse Leôncio, continuando o diálogo
que deixamos interrompido no capítulo antecedente, - V. S.ª retêm essa escrava
em seu poder contra toda a justiça, iludindo as autoridades com falsas alegações,
que nunca poderá provar. Porém agora venho eu mesmo reclamá‑la e burlar os
seus planos, e artifícios.

- Artifícios não, senhor. Protegi e protejo francamente uma escrava contra
as violências de um senhor, que quer tornar‑se seu algoz; eis aí tudo.

- Ah!... agora é que sei que qualquer aí pode subtrair um escravo
ao domínio de seu senhor a pretexto de protegê‑lo, e que cada qual
tem o direito de velar sobre o modo por que são tratados os escravos
alheios.

- V. S.a. está de disposição a escarnecer, e eu declaro‑lhe que
nenhuma vontade tenho de escarnecer, nem de ser escarnecido.
Confesso‑lhe que desejo muito a liberdade dessa escrava, tanto quanto
desejo a minha felicidade, e estou disposto a fazer todos os sacrifícios
possíveis para consegui‑la. Já lhe ofereci dinheiro, e ainda ofereço.
Dou‑lhe o que pedir... dou‑lhe uma fortuna por essa escrava. Abra preço...

- Não há dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo,
porque não quero vendê‑la.

- Mas isso é um capricho bárbaro, uma perversidade...

-Seja capricho da qualidade que V. S.ª quiser; porventura não
posso ter eu os meus caprichos, contanto que não ofenda direitos de
ninguém?... porventura V. S.ª não tem também o seu capricho de
querê‑la para si?... mas o seu capricho ofende os meus direitos, e eis aí o
que não posso tolerar.

- Mas o meu capricho é nobre e benfazejo, e o seu é uma tirania,
para não dizer uma vilania. V. S.ª mancha a sua vida com uma nódoa
indelével conservando na escravidão essa mulher; cospe o desrespeito e
a injúria sobre o túmulo de sua santa mãe, que criou com tanta delicadeza,
educou com tanto esmero essa escrava, para torná‑la digna da liberdade que
pretendia dar‑lhe, e não para satisfazer aos caprichos de V. S.a. Ela por certo lá
do céu, onde está, o amaldiçoará, e o mundo inteiro a acompanhará na maldição
ao homem que retém no mais infamante cativeiro uma criatura cheia de virtudes,
prendas e beleza.

- Basta, senhor!.. agora fico também sabendo, que uma escrava,
só pelo fato de ser bonita e prendada, tem direitos à liberdade. Pique
também V. S.ª sabendo, que se minha mãe não criou essa rapariga
para satisfazer aos meus caprichos, muito menos para satisfazer aos de
V. S.ª a quem nunca conheceu nesta vida. Senhor Álvaro, se deseja ter
alguma linda escrava para sua amásia procure outra, compre‑a, que a
respeito desta, pode perder toda a esperança.

- Senhor Leôncio, V. S.ª decerto esquece‑se do lugar onde está,
e da pessoa com quem fala, e julga que se acha em sua fazenda falando
aos seus feitores ou a seus escravos. Advirto‑lhe, para que mude
de linguagem.

- Basta, senhor; deixemo‑nos de vás disputas, e nem eu vim aqui
para ser catequizado por V. S.ª. O que quero é a entrega da escrava e
nada mais. Não me obrigue a usar do meu direito levando‑a à força.

Álvaro, desvairado por tão grosseiras e ferinas provocações, perdeu
de todo a prudência e sangue‑frio.
Entendeu que para sair‑se bem na terrivel conjuntura em que se
achava, só havia um caminho, - matar o seu antagonista ou morrer‑lhe às
mãos, - e cedendo a essas sugestões da cólera e do desespero, saltou da cadeira
em que estava, agarrou Leôncio pela gola e sacudindo‑o com força:

- Algoz! - bradou espumando de raiva, - ai tens a tua escrava!
mas antes de levá‑la, hás de responder pelos insultos que me tens dirigido,
ouviste?... ou acaso pensas que eu também sou teu escravo?..

- Está louco, homem! - disse Leôncio amedrontado. - As leis
do nosso país não permitem o duelo.

- Que me importam as leis!... para o homem de brio a honra é
superior às leis, e se não és um covarde, como penso...
Socorro, que querem assassinar‑me, - bradou Leôncio
desembaraçando‑se das mãos de Álvaro, e correndo para a porta.

- Infame! - rugiu Álvaro, cruzando os braços e rangendo os dentes
num sorrir de cólera e desdém...

No mesmo momento, atraídos pelo barulho, entravam na sala de
um lado Isaura e Miguel, do outro o oficial de justiça e os guardas.
Isaura estava com o ouvido aguçado, e do interior da casa
ouvira e compreendera tudo.
Viu que tudo estava perdido, e correu a atalhar o desatino, que
por amor dela Álvaro ia cometer.

- Aqui estou, senhor! - foram as únicas palavras que pronunciou
apresentando‑se de braços cruzados diante de seu senhor.

- Ei‑los ai; são estes! - exclamou Leôncio indicando aos guardas
Isaura e Miguel. Prendam‑os!.. prendam‑os!...

Vai‑te, Isaura, vai‑te, - murmurou Álvaro com voz trêmula e
sumida, achegando‑se da cativa. - Não desanimes; eu não te abandonarei.
Confia em Deus e em meu amor.

Uma hora depois Álvaro recebia em casa a visita de Martinho. Vinha
este mui ancho e lampeiro dar conta de sua comissão, e sôfrego por embolsar
a soma convencionada.

- Dez contos!... oh! - vinha ele pensando. - uma fortuna!
agora sim, posso eu viver independente!... Adeus, surrados bancos de
Academia!... adeus, livros sebosos, que tanto tempo andei folheando à
toa!... vou atirar‑vos pela janela a fora; não preciso mais de vós: meu
futuro está feito. Em breve serei capitalista, banqueiro, comendador, barão,
e verão para quanto presto!...

E à força de multiplicar cálculos de usura e agiotagem, já Martinho
havia centuplicado aquela soma em sua imaginação.

- Meu caro senhor Álvaro, - veio logo dizendo sem mais preâmbulos,
- está tudo arranjado à medida de nossos desejos. Pode V. S.ª viver tranqüilo
em companhia da gentil fugitiva, que daqui em diante ninguém mais o importunará.
De feito o procedimento de V. S.ª nesta questão tem sido muito belo e digno
de elogios; é próprio de um coração grande e generoso como o de V. S.ª. Não
se dá maiar desaforo! no cativeiro uma menina tão mimosa e tão prendada!...
Agora aqui está a carta, que escrevo ao lorpa do sultãozinho. Prego‑lhe
meia dúzia de carapetões, que o hão de desorientar completamente.

Assim falando, Martinho desdobrou a carta, e já começava a lê‑la,
quando Álvaro impacientado o interrompeu.

- Basta, senhor Martinho, - disse‑lhe com mau humor; - o negócio
está arranjado; não preciso mais de seus serviços.

Arranjado!... como?...

- A escrava está em poder de seu senhor.

- De Leôncio!... impossível!

- Entretanto, é a pura verdade; se quiser saber mais vá à polícia,
e indague.

- E os meus dez contos?...

- Creio que não lhos devo mais.

Martinho soltou um urro de desespero, e saiu da casa de Álvaro
com tal precipitação, que parecia ir rolando pelas escadas abaixo.
Descrever o mísero estado em que ficou aquela pobre alma, é empresa
em que não me meto; os leitores que façam idéia.
O cão faminto, iludido pela sombra, largou a carne que tinha
entre os dentes, e ficou sem uma nem outra.





Capítulo 19

- Olha como arranjas isso, Rosa; esta rapariga é mesmo uma
estouvada; não tem jeito para nada. Bem mostras que não nasceste
para a sala; o teu lugar é na cozinha.

- Ora vejam lá a figura de quem quer me dar regras!... quem te
chamou aqui, intrometido? O teu lugar também não é aqui, é lá na
estrebaria. Vai lá governar os teus cavalos, André, e não te intrometas
no que não te importa.

- Cala‑te dai, toleirona; - replicou André mudando de lugar
algumas cadeiras. - O que sabes é só tagarelar. Não é aqui o lugar
destas cadeiras... Olha como estão estes jarros!... ainda nem alimpaste
os espelhos!... forte desajeitada e preguiçosa que és!... No tempo de
Isaura andava tudo isto aqui que era um mimo; fazia gosto entrar‑se
nesta sala. Agora, é isto. Está claro que não és para estas coisas.

- Essa agora é bem lembrada! - retorquiu Rosa, altamente
despeitada. - Se tens saudades do tempo de Isaura, vai lá tirá‑la do
quarto escuro do tronco, onde ela está morando. Esse decerto ela não
há de ter gosto para enfeitá‑lo de flores.

- Cala a boca, Rosa; olha que tu também lá podes ir parar.

- Eu não, que não sou fujona.

- Por que não achas quem te carregue, se não fugirias até com o
diabo. Coitada da Isaura! uma rapariga tão boa e tão mimosa, tratada
como uma negra da cozinha! e não tens pena dela, Rosa?

- Pena por que, agora?... quem mandou ela fazer das suas?

- Pois olha, Rosa, eu estava pronto a agüentar a metade do castigo
que ela está sofrendo, mas na companhia dela, está entendido.

- Isso pouco custa, André; é fazer o que ela fez. Vai, como ela,
tomar ares em Pernambuco, que infalivelmente vais para a companhia
de Isaura.

- Quem dera!... se soubesse que me prendiam com ela, isso é
que era um fugir. Mas o diabo é que a pobre Isaura agora vai deixar a
nós todos para sempre. Que falta não vai fazer nesta casa!...

- Deixar como?

- Você verá.

- Foi vendida?...

- Qual vendida!

- Alheada?

- Nem isso

- Está forra?...

- Que abelhuda!... Espera, Rosa; tem paciência um pouco, que
hoje mesmo talvez você venha a saber tudo.

- Ora ponha‑se com mistérios... então o que você sabe os outros
não podem saber?...

- Não é mistério, Rosa; é desconfiança minha. Aqui em casa não
tarda a haver novidade grossa; vai escutando.

- Ah! ah! - respondeu Rosa galhofando. - Você mesmo está
com cara de novidade.

- Psiu!... bico calado, Rosa!... ai vem nhonhô.

Pelo diálogo acima o leitor bem vê, que nos achamos de novo na
fazenda de Leôncio, no município de Campos, e na mesma sala, em
que no começo desta história encontramos Isaura entoando sua canção
favorita.
Cerca de dois meses são decorridos depois que Leôncio fora ao
Recife apreender sua escrava. Leôncio e Malvina tinham‑se reconciliado,
e vindos da corte tinham chegado à fazenda na véspera. Alguns escravos,
entre os quais se acham Rosa e André, estão asseando o soalho,
arranjando e espanando os móveis daquele rico salão, testemunha impassível
dos mistérios da família, de tantas cenas ora tocantes e enlevadoras, ora
vergonhosas e sinistras, e que durante a ausência de Malvina se conservara
sempre fechado.
Qual é, porém, a sorte de Isaura e de Miguel, desde que deixaram
Pernambuco? que destino deu Leôncio ou pretende dar àquela?... por
que maneira se reconciliou com sua mulher?
Eis o que passamos a explicar ao leitor, antes de prosseguirmos
nesta narrativa.
Leôncio, tendo trazido Isaura para sua fazenda, a conservara na
mais completa e rigorosa reclusão. Não era isto só com o fim de
castigá‑la ou de cevar sua feroz vingança sobre a infeliz cativa. Sabia quanto
era ardente e capaz de extremos o amor que o jovem pernambucano
concebera por Isaura; tinha ouvido as últimas palavras que Álvaro lhe
dirigia - confia em Deus, e em meu amor; eu não te abandonarei.
- Era uma ameaça, e Álvaro, rico e audacioso como era, dispunha de
grandes meios para pó‑la em execução, quer por alguma violência, quer
por meio de astúcias e insídias. Leôncio, portanto, não só encarcerava
com todo o rigor a sua escrava, como também armou todos os seus
escravos, que daí em diante distraídos quase completamente dos trabalhos
da lavoura, viviam em alerta dia e noite como soldados de guarnição a
uma fortaleza.
Mas a alma ardente e feroz do jovem fazendeiro não desistia nunca
de seu louco amor, e nem perdia a esperança de vencer a isenção de Isaura.
E já não era só o amor ou a sensualidade que o arrastava; era um
capricho tirânico, um desejo feroz e satânico de vingar‑se dela e do rival
preferido. Queria gozá‑la, fosse embora por um só dia, e depois de
profanada e poluída, entregá‑la desdenhosamente ao seu antagonista,
dizendo‑lhe: - Venha comprar a sua amante; agora estou disposto a
vendê‑la, e barato.
Encetou pois contra ela nova campanha de promessas, seduções e
protestos, seguidos de ameaças, rigores e tiranias. Leôncio só recuou
diante da tortura e da violência brutal, não porque lhe faltasse
ferocidade para tanto, mas porque conhecendo a têmpera heróica da
virtude de Isaura, compreendeu que com tais meios só conseguiria
matá‑la, e a morte de Isaura não satisfazia o seu sensualismo, e nem
tampouco a sua vingança. Portanto tratou de meditar novos planos, não só
para recalcar debaixo dos pés o que ele chamava o orgulho da escrava,
como de frustrar e escarnecer completamente as vistas generosas
de Álvaro, tomando assim de ambos a mais cabal vingança.
Além de tudo, Leôncio via‑se na absoluta necessidade de
reconciliar‑se com Malvina, não que o pundonor, a moral, e muito menos
a afeição conjugal a isso o induzissem, mas por motivos de interesse,
que em breve o leitor ficará sabendo. Com esse fim pois, Leôncio
foi à corte e procurou Malvina.
Além de todas as más qualidades que possuía, a mentira, a calúnia,
o embuste eram armas que manejava com a habilidade do mais refinado
hipócrita. Mostrou‑se envergonhado e arrependido do modo por
que a havia tratado, e jurou apagar com o seu futuro comportamento
até a lembrança de seus passados desvarios. Confessou, com uma
sinceridade e candura de anjo, que por algum tempo se deixara enlevar
pelos atrativos de Isaura, mas que isso não passara de passageiro desvario,
que nenhuma impressão lhe deixara na alma.
Além disso assacou mil aleives e calúnias por conta da pobre
Isaura. Alegou que ela, como refinada loureira que era, empregara
os mais sutis e ardilosos artifícios para seduzi‑lo e provocá‑lo, no
intuito de obter a liberdade em troco de seus favores. Inventou mil outras
coisas, e por fim fez Malvina acreditar que Isaura fugira de casa seduzida
por um galã, que há muito tempo a reqüestava, sem que eles o soubessem; que
fora este quem fornecera ao pai dela os meios de alforriá‑la, e que, não
o podendo conseguir, combinaram de mãos dadas e efetuaram o plano
de rapto; que chegando ao Recife, um moço que tanto tinha de rico,
como de extravagante e desmiolado, enamorando‑se dela a tomara a
seu primeiro amante; que Isaura com seus artifícios, dando‑se por uma
senhora livre o tinha enleado e iludido por tal forma, que o pobre moço
estava a ponto de casar‑se com ela, e mesmo depois de saber que era
cativa não queria largá‑la, e praticando mil escândalos e disparates estava
disposto a tudo para alforriá‑la. Fora das mãos desse moço que ele
a fora tomar no Recife.
Malvina, moça ingênua e crédula, com um coração sempre
propenso à ternura e ao perdão, deu pleno crédito a tudo quanto aprouve
a Leôncio inventar não só para justificar suas faltas passadas, como para
predispor o comportamento que dai em diante pretendia seguir.
Na qualidade de esposa ofendida irritara‑se outrora contra Isaura,
quando surpreendera seu marido dirigindo‑lhe falas amorosas; mas o
seu rancor ia‑se amainando, e se desvaneceria de todo, se Leôncio não
viesse com falsas e aleivosas informações atribuir‑lhe os mais torpes
procedimentos. Malvina começou a sentir por Isaura desde esse momento,
não ódio, mas certo afastamento e desprezo, mesclado de compaixão, tal
qual sentiria por outra qualquer escrava atrevida e mal comportada.
Era quanto bastava a Leôncio para associá‑la ao plano de castigo e
vingança, que projetava contra a desditosa escrava. Bem sabia que Malvina
com a sua alma branda e compassiva jamais consentiria em castigos cruéis;
o que meditava, porém, nada tinha de bárbaro na aparência, se bem que fosse
o mais humilhante e doloroso flagício imposto ao coração de uma mulher, que
tinha consciência de sua beleza, e da nobreza e elevação de seu espírito.

- E o que pretendes fazer de Isaura? perguntou Malvina.

- Dar‑lhe um marido e carta de liberdade.

- E já achaste esse marido?

- Pois faltam maridos?... para achá‑lo não precisei sair de casa.

- Algum escravo, Leôncio?... oh!... isso não.

- E que tinha isso, uma vez que eu também forrasse o marido?
era cré com cré, lé com lé. Bem me lembrei do André, que bebe os
ares por ela; mas por isso mesmo não a quero dar àquele maroto.
Tenho para ela peça muito melhor.

- Quem, Leôncio?

- Ora quem!... o Belchior.

- O Belchior!... exclamou Malvina rindo‑se muito. Estás caçoando;
fala sério, quem é?...

- O Belchior, senhora; falo sério.

- Mas esperas acaso, que Isaura queira casar‑se com aquele
monstrengo?

- Se não quiser, pior para ela; não lhe dou a liberdade, e há de
passar a vida enclausurada e em ferros.

- Oh!... mas isso é demasiada crueldade, Leôncio. De que serve
dar‑lhe a liberdade em tudo, se não lhe deixas a de escolher um marido?...
Dá‑lhe a liberdade, Leôncio, e deixa ela casar‑se com quem quiser.

- Ela não se casará com ninguém: irá voando direitinho para
Pernambuco, e lá ficará muito lampeira nos braços de seu insolente
taful, escarnecendo de mim...

- E que te importa isso, Leôncio? - perguntou Malvina com
certo ar desconfiado.

- Que tenho!... - replicou Leôncio um pouco perturbado com a
pergunta. - Ora que tenho!... é o mesmo que perguntar‑me se tenho
brio nas faces. Se soubesses como aquele papalvo provocou‑me
atirando‑me insultos atrozes!... Como desafiou‑me com mil bravatas e
ameaças, protestando que havia de arrancar Isaura ao meu poder...
Se não fosse por tua causa, e também por satisfazer os votos de minha
mãe, eu nunca daria a liberdade a essa escrava, embora nenhum serviço me
prestasse, e tivesse de tratá‑la como uma princesa, só para quebrar a
proa e castigar a audácia e petulância desse impudente rufião.

- Pois bem, Leôncio; mas eu entendo que Isaura mais facilmente
se deixará queimar viva, do que casar‑se com Belchior.

- Não te dê isso cuidado, minha querida; havemos de catequizá‑la
convenientemente. Tenho cá forjado o meu plano, com o qual espero reduzi‑la
a casar‑se com ele de muito boa vontade.

- Se ela consentir, não tenho motivo para me opor a esse arranjo.

Leôncio de feito havia habilmente preparado o seu plano atroz.
Tendo trazido do Recife a Miguel debaixo de prisão, juntamente com
Isaura, ao chegar em Campos fê‑lo encerrar na cadeia, e condenar a
pagar todas as despesas e prejuízos que tivera com a fuga de Isaura, as
quais fizera orçar em uma soma exorbitante. Ficou, portanto, o pobre
homem exausto dos últimos recursos que lhe restavam, e ainda por
sobrecarga devendo uma soma enorme, que só longos anos de trabalho
poderiam pagar. Como Leôncio era rico, amigo dos ministros e tinha
grande influência no lugar, as autoridades locais prestaram‑se de boa
mente a todas estas perseguições.
Depois que Leôncio, desanimado de poder vencer a obstinada
relutância de Isaura, mudou o seu plano de vingança, foi ele em pessoa
procurar a Miguel.

- Senhor Miguel, - disse‑lhe em tom formalizado, - tenho comiseração
do senhor e de sua filha, apesar dos incômodos e prejuízos que me têm dado, e
venho propor‑lhe um meio de acabarmos de uma vez para sempre com as desordens,
intrigas e transtornos com que sua filha tem perturbado minha casa e o sossego
de minha vida.

- Estou pronto para qualquer arranjo, senhor Leóncio, - respondeu
respeitosamente Miguel, - uma vez que seja justo e honesto.

- Nada mais honesto, nem mais justo. Quero casar sua filha com
um homem de bem, e dar‑lhe a liberdade; porém para esse fim preciso
muito de sua coadjuvação.

- Pois diga em que lhe posso servir.

- Sei que Isaura há de sentir alguma repugnância em casar‑se
com a pessoa que lhe destino, em razão de tola e extravagante paixão,
que parece ainda ter por aquele infame peralvilho de Pernambuco, que
meteu‑lhe mil caraminholas na cabeça, e encheu‑a de idéias extravagantes
e loucas esperanças.

- Creio que ela não deve lembrar‑se desse moço senão por grati‑
dão...

- Qual gratidão!... pensa vossemecê que ele está fazendo muito
caso dela?... tanto como do primeiro sapato que calçou. Aquilo foi um
capricho de cabeça estonteada, uma fantasia de fidalgote endinheirado,
e a prova aqui está; leia esta carta... O patife tem a sem‑cerimônia de
escrever‑me, como se entre nós nada houvesse, assim com ares de
amigo velho, participando‑me que se acha casado!... que tal lhe parece
esta?... que tenho eu com seu casamento!... Mas isto ainda não é tudo;
aproveitando a ocasião, pede‑me com todo o desfaçamento que em
todo e qualquer tempo, que eu me resolva a dispor de Isaura, nunca o
faça sem participar‑lhe, porque muito deseja tê‑la para mucama de sua
senhora! até onde pode chegar o cinismo e a impudência!...

- Com efeito, senhor!... isto da parte do senhor Álvaro é custoso
de acreditar!

- Pois capacite‑se com seus próprios olhos; leia; não conhece
esta letra?...

E dizendo isto Leôncio apresentou a Miguel uma carta, cuja letra
imitava perfeitamente a de Álvaro.

- A letra é dele; não resta dúvida, - disse Miguel pasmado do
que acabava de ler. - Há neste mundo infâmias que custa‑se a
compreender.

- E também lições cruéis, que é preciso não desprezar, não é
assim, senhor Miguel?... Pois bem; guarde essa carta para mostrar à sua
filha; é bom que ela saiba de tudo para não contar mais com esse
homem, e varrer do espírito as fumaças que porventura ainda lhe toldam
o juízo. Faça também vossemecê o que estiver em seu possível a
fim de predispor sua filha para esse casamento, que é de muita vantagem,
e eu não só lhe perdoarei tudo quanto me fica devendo, como lhe
restituo o que já me deu, para vossemecê abrir um negócio aqui em
Campos e viver tranqüilamente o resto de seus dias, em companhia de
sua filha e de seu genro.

- Mas quem é esse genro? V. S.ª me não disse ainda.

- É verdade... esquecia‑me. É o Belchior, o meu jardineiro; não
conhece?...

- Muito!... oh! senhor!... com que miserável figura quer casar
minha filha!... pobre Isaura!... duvido muito que ela queira.

- Que importa a figura, se tem uma boa alma, e é honesto e
trabalhador?... Lá isso é verdade; o ponto é ela querer.

- Estou certo que aconselhada e bem catequizada por vossemece
há de se resolver.

- Farei o que puder; mas tenho poucas esperanças.

- E se não quiser, pior para ela e para vossemecê: o dito por não
dito; fica tudo como estava, - disse terminantemente Leôncio.

Miguel não era homem de têmpera a lutar contra a adversidade. O
cativeiro e reclusão perene de sua filha, a miséria que se lhe antolhava
acompanhada de mil angústias, eram para ele fantasmas hediondos,
cujo aspecto não podia encarar sem sentir mortal pavor e abatimento.
Não achou muito oneroso o preço pelo qual o desumano senhor,
livrando‑o da miséria, concedia liberdade à sua filha, e aceitou
o convênio.





Capítulo 20

Enquanto Rosa e André espanejavam os móveis do salão, tagarelando
alegremente, uma cena bem triste e compungente se passava em um escuro
aposento atinente às senzalas, onde Isaura sentada sobre um cepo, com
um dos alvos e mimosos artelhos preso por uma corrente cravada à parede,
há dois meses se achava encarcerada.
Miguel ai tinha sido introduzido por ordem de Leôncio, para dar
parte à filha do projeto de seu senhor, e exortá‑la a aceitar o partido
que lhes propunha. Era pungente e desolador o quadro que apresentavam
aquelas duas míseras criaturas, pálidas, extenuadas e abatidas pelo
infortúnio, encerrados em uma estreita e lôbrega espelunca. Ao se
encontrarem depois de dois longos meses, mais oprimidos e desgraçados
que nunca, a primeira linguagem com que se saudaram não foi mais do
que um coro de lágrimas e soluços de indizível angústia, que abraçados
por largo tempo estiveram entornando no seio um do outro.

- Sim, minha filha; é preciso que te resignes a esse sacrifício, que
é desgraçadamente o único recurso que nos deixam. É com esta condição
que venho abrir‑te as portas desta triste prisão, em que há dois
meses vives encerrada. É, sem dúvida, um cruel sacrifício para teu
coração; mas é sem comparação mais suportável do que esse duro cativeiro,
com que pretendem matar‑te.

- É verdade, meu pai; o meu carrasco dá‑me a escolha entre dois
jugos; mas eu ainda não sei qual dos dois será mais odioso e insuportável.
Eu sou linda, dizem; fui educada como uma rica herdeira; inspiraram‑me
uma alta estima de mim mesma com o sentimento do pudor e
da dignidade da mulher; sou uma escrava, que faz muita moça formosa
morder‑se de inveja; tenho dotes incomparáveis do corpo e do espírito;
e tudo isto para quê, meu Deus!?... para ser dada de mimo a um mísero
idiota!... Pode‑se dar mais cruel e pungente escárnio?!...

E uma risada convulsiva e sinistra desprendeu‑se dos lábios
descorados de Isaura, e reboou pelo lúgubre aposento, como o estrídulo
ulular do mocho entre os sepulcros.

- Não é tanto como se te afigura na imaginação abalada pelos
sofrimentos. O tempo pode muito, e com paciência e resignação hás de
te acostumar a esse novo viver, sem dúvida muito mais suave do que
este inferno de martírios, e poderemos ainda gozar dias se não felizes,
ao menos mais tranqüilos e serenos.

- Para mim a tranqüilidade não pode existir senão na sepultura,
meu pai. Entre os dois suplícios que me deixam escolher, eu vejo ainda
alguma coisa, que me sorri como uma idéia consoladora, um recurso
extremo, que Deus reserva para os desgraçados, cujos males são sem
remédio.

- É da resignação sem dúvida, que queres falar, não é, minha
filha?... Ah! meu pai, quando a resignação não é possível, só a morte...

- Cala‑te, filha!... não digas blasfêmias e palavras loucas. Eu quero,
eu preciso, que tu vivas. Terás ânimo de deixar teu pai neste mundo
sozinho, velho e entregue à miséria e ao desamparo? Se me faltares, o
que será de mim nas tristes conjunturas em que me deixas?...

- Perdoe‑me, meu bom, meu querido pai; só em um caso
extremo eu me lembraria de morrer. Eu sei que devo viver para meu
pai, e é isso que eu quero; mas para isso será preciso que eu me
case com um disforme?... oh! isto é escárnio e opróbrio demais! Tenham‑me
debaixo do mais rigoroso cativeiro, ponham‑me na roça de enxada na
mão, descalça e vestida de algodão, castiguem‑me, tratem‑me enfim
como a mais vil das escravas, mas por caridade poupem‑me este
ignominioso sacrifício!...

- Belchior não é tão disforme como te parece; e demais o tempo
e o costume te farão familiarizar com ele. Há muito tempo não o vês;
com a idade ele vai‑se endireitando, que é ele ainda muito criança.
Agora o desconhecerás; já não tem aquele exterior tão grosseiro e
desagradável, e tem tomado outras maneiras menos toscas. Toma ânimo,
minha filha; quando saíres deste triste calabouço, o ar da liberdade te
restituirá a alegria e a tranqüilidade, e mesmo com o marido que te dão
poderás viver feliz...

- Feliz! - exclamou Isaura com amargo sorriso: - nao me fale
em felicidade, meu pai. Se ao menos eu tivesse o coraçáo livre como
outrora... se não amasse a ninguém. Oh!... não era preciso que ele me
amasse, não; bastava que me quisesse para escrava, aquele anjo de
bondade, que em vão empregou seus generosos esforços para
arrancar‑me deste abismo. Quanto eu seria mais feliz do que sendo mulher
desse pobre homem, com quem me querem casar! Mas ai de mim!
devo eu pensar mais nele? pode ele, nobre e rico cavalheiro, lembrar‑se
ainda da pobre e infeliz cativa!...

- Sim, minha filha, não penses mais nesse homem; varre da tua
idéia esse amor tresloucado; sou eu quem te peço e te aconselho.

- Por que, meu pai?... como poderei ser ingrata a esse moço?...

- Mas não deves contar mais com ele, e muito menos com o seu
amor.

- Por que motivo? porventura se terá ele esquecido de mim?...

- Tua humilde condição não permite que olhes com amor para
tão alto personagem; um abismo te separa dele. O amor que lhe inspiraste,
não passou de um capricho de momento, de uma fantasia de fidalgo. Bem me
pesa dizer‑te isto, Isaura; mas é a pura verdade.

- Ah! meu pai! que está dizendo!... se soubesse que mal me fazem
essas terríveis palavras!... deixe‑me ao menos a consolação de acreditar que ele
me amava, que me ama ainda. Que interesse tinha ele em iludir uma pobre
escrava?...

- Eu bem quisera poupar‑te ainda este desgosto; mas é preciso
que saibas tudo. Esse moço... ah! minha filha, prepara teu coração para
mais um golpe bem cruel.

- Que tem esse moço?... perguntou Isaura trêmula e agitada. Fale,
meu pai; acaso morreu?...

- Não, minha filha, mas... está casado.

- Casado!... Álvaro casado!... oh! não; não é possível!... quem lhe
disse, meu pai?...

- Ele mesmo, Isaura; lê esta carta.

Isaura tomou a carta com mão trêmula e convulsa, e a percorreu
com olhos desvairados. Lida a carta, não articulou uma queixa, não
soltou um soluço, não derramou uma lágrima, e ela, pálida como um
cadáver, os olhos estatelados, a boca entreaberta, muda, imóvel, hirta,
ali ficou por largo tempo na mesma posição; dir‑se‑ia que fora petrificada
como a mulher de Ló, ao encarar as chamas em que ardia a cidade maldita.
Enfim por um movimento rápido e convulso atirou‑se ao seio de seu pai,
e inundou‑o de uma torrente de lágrimas.
Este pranto copioso aliviou‑a; ergueu a cabeça, enxugou as lágrimas,
e pareceu ter recobrado a tranqüilidade, mas uma tranqüilidade gélida, sinistra,
sepulcral. Parecia que sua alma se tinha aniquilado sob a violência daquele golpe
esmagador, e que de Isaura só restava o fantasma.

- Estou morta, meu pai!... não sou mais que um cadáver... façam
de mim o que quiserem...

Foram estas as últimas palavras que com voz fúnebre e sumida
proferiu naquele lôbrego recinto.

- Vamos, minha filha, disse Miguel beijando‑a na fronte. Não te
entregues assim ao desalento; tenho esperança de que hás de viver e
ser feliz.

Miguel, espírito acanhado e rasteiro, coração bom e sensível,
mas inteiramente estranho às grandes paixões, não podia compreender
todo o alcance do sacrifício que impunha à sua filha. Encarando a
felicidade mais pelo lado dos interesses da vida positiva e material, não
pelos gozos e exigências do coração, ousava conceber sinceras
esperanças de mais felizes e tranqüilos dias para sua filha, e não via que,
sujeitando‑a a semelhante opróbrio, aviltando‑lhe a alma, ia esmagar‑lhe o
coração. Queria que ela vivesse, e não via que aquele ignominioso
consórcio, depois de tantas e tão acerbas torturas por que passara, era o
golpe de compaixão, que, terminando‑lhe a existência, vinha abreviar‑lhe
os sofrimentos.
Malvina achava‑se no salão, e ali esperava o resultado da
conferência que Miguel fora ter com sua filha. Rosa e André, de braços
cruzados junto à porta da entrada, também ali se achavam às suas ordens.
Malvina sentiu um doloroso aperto de coração ao ver assomar na
porta o vulto de Isaura, arrimada ao braço de Miguel, lívida e desfigurada
como enferma em agonia, os cabelos em desalinho, e com passos
mal seguros penetrar, como um duende evocado do sepulcro, naquele
salão, onde não há muito tempo a vira tão radiante de beleza e mocidade,
naquele salão, que parecia ainda repetir os últimos acentos de sua
voz suave e melodiosa.
Mesmo assim ainda era bela a mísera cativa. A magreza fazendo
sobressaírem os contornos e ângulos faciais, realçava a pureza ideal e a
severa energia daquele tipo antigo.
Os grandes olhos pretos cobertos de luz baça e melancólica eram
como cirios funéreos sob a arcada sombria de uma capela tumular. Os
cabelos entornados em volta do colo, faziam ondular por eles leves
sombras de maravilhoso efeito, como festões de hera a se debruçarem
pelo mármore vetusto de estátua empalidecida pelo tempo. Naquela
miseranda situação, Isaura oferecia ao escultor um formoso modelo da
Níobe antiga.

- Aquela é Isaura!... oh!... meu Deus! coitada! - murmurou
Malvina ao vê‑la, e foi‑lhe mister enxugar duas lágrimas, que a seu pesar
umedeceram‑lhe as pálpebras. Esteve a ponto de ir implorar clemência
a seu esposo em favor da pobrezinha, mas lembrou‑se das perversas
inclinações e mau comportamento, que Leôncio aleivosamente atribuíra
a Isaura, e assentou de revestir‑se de toda a impassibilidade que lhe
fosse possível.

- Então, Isaura, - disse Malvina com brandura, - já tomaste a
tua resolução?... estás decidida a casar com o marido que te queremos
dar?

Isaura por única resposta abaixou a cabeça e fitou os olhos no
chão.

- Sim, senhora, - respondeu Miguel por ela - Isaura está resolvida
a se conformar com a vontade de V. S.a.

- Faz muito bem. Não é possível que ela esteja a sofrer por mais
tempo esse cruel tratamento, em que não posso consentir enquanto
estiver nesta casa. Não foi para esse fim que sua defunta senhora
criou‑a com tanto mimo, e deu‑lhe tão boa educação. Isaura, apesar de
tua descaída, quero‑te bem ainda, e não tolerarei mais semelhante
escândalo. Vamos dar‑te ao mesmo tempo a liberdade e um excelente
marido.

- Excelente!... meu Deus! Que escárnio! - refleliu Isaura.

- Belchior é muito bom moço, inofensivo, pacífico e trabalhador;
creio que hás de dar‑te otimamente com ele. Demais para obter a
liberdade nenhum sacrifício é grande, não é assim, Isaura?

- Sem dúvida, minha senhora; já que assim o quer, sujeito‑me
humildemente ao meu destino. Arrancam‑me da masmorra - (continuou
Isaura em seu pensamento), - para levarem‑me ao suplício.

- Muito bem, Isaura; mostras que és uma rapariga dócil e de juízo.
André, vai chamar aqui o senhor Belchior. Quero eu mesma ter o
gosto de anunciar‑lhe que vai enfim realizar o seu sonho querido de
tantos anos. Creio que o senhor Miguel também não ficará mal satisfeito
com o arranjo que damos a sua filha; sempre é alguma coisa sair do
cativeiro e casar‑se com um homem branco e livre. Antes assim do que
fugir, e andar foragida por esse mundo. Isaura, para prova de quanto
desejo o teu bem, quero ser madrinha neste casamento, que vai pôr
termo a teus sofrimentos, e restabelecer nesta casa a paz e o contentamento,
que há muito tempo dela andavam arredados.

Ditas estas palavras, Malvina abriu um cofre de jóias, que estava
sobre uma mesa, e dele tirou um rico colar de ouro, que foi colocar no
pescoço de Isaura.

- Aceita isto, Isaura, - disse ela, - é o meu presente de noivado.

- Agradecida, minha boa senhora, - disse Isaura, e acrescentou
em seu coração: - é a corda, que o carrasco vem lançar ao pescoço da
vítima.

Neste momento vem entrando Belchior acompanhado por André.

- Eis‑me aqui, senhora minha, - diz ele, - o que deseja deste
seu menor criado?

- Dar‑lhe os parabéns, senhor Belchior, - respondeu Malvina.

- Parabéns!... mas eu não sei por quê!...

- Pois eu lhe digo; fique sabendo que Isaura vai ser livre, e...
adivinhe o resto.

- E vai‑se embora decerto... oh!... é uma desgraça!

- Já vejo que não é bom adivinhador. Isaura está resolvida a
casar‑se com o senhor.

- Que me diz, patroa!... perdão, não posso acreditar. Vossemecê
está zombando comigo.

Digo‑lhe a verdade; ai está ela, que não me deixará mentir.
Apronte‑se, senhor Belchior, e quanto antes, que amanhã mesmo há de
se fazer o casamento aqui mesmo em casa.

- Oh! senhora minha! divindade da Terra! - exclamou Belchior
indo‑se atirar aos pés de Malvina e procurando beijá‑los, - deixe‑me
beijar esses pés...

- Levante‑se daí, senhor Belchior; não é a mim, é a Isaura que
deve agradecer.

Belchior levanta‑se e corre a prostrar‑se aos pés de Isaura.

- Oh! princesa de meu coração! - exclamou ele atracando‑se ás
pernas da pobre escrava, que fraca como estava, quase foi à terra com
a força daquela furiosa e entusiástica atracação. Era para fazer rebentar
de riso, a quem não soubesse quanto havia de trágico e doloroso no
fundo daquela ímpia e ignóbil farsa.

- Isaura!... não olhas para mim? aqui tens a teus pés este teu
menor cativo, Belchior!... olha para ele, para este teu adorador, que
hoje é mais do que um príncipe.., dá cá essa mãozinha, deixa‑me
comê‑la de beijos...

- Meu Deus! que farsa hedionda obrigam‑me a representar! -
murmurou Isaura consigo, e voltando a face abandonou a mão a
Belchior, que colando a ela a boca no transporte do entusiasmo, desatou a
chorar como uma criança.

- Olha que palerma! - disse André para Rosa, que observava de
parte aquela cena tragicômica. - E venham cá dizer‑me que não é o
mel para a boca do asno!

- Eu antes queria que me casassem com um jacaré.

- Este meu sinhô moço tem idéias do diabo! quem havia de
lembrar‑se de casar uma sereia com um boto?

- Invejoso!... você é que queria ser o boto, por isso está aí a
torcer o nariz. Toma!... bem feito!... agora o que faltava era
que o nhonhô te desse de dote à Isaura.

- Isso queria eu!... aposto que Isaura não vai casar de livre
vontade! e depois... nós cá nos arranjaríamos... havia de enfiar o
boto pelo fundo de uma agulha.

- Sai daí, tolo!... pensa que Isaura faz caso de você?...

- Não te arrebites, minha Rosa; já agora não há remédio senão
contentar‑me contigo, que em fim de contas também és bem bonitinha,
e... tudo que cai no jequi, é peixe.

- É baixo!... agüente a sua tábua, e vá consolar‑se com quem
quiser, menos comigo.





Capítulo 21

- Então, Leôncio, - dizia Malvina a seu esposo no outro dia
pela manhã, - deste as providências necessárias para arranjar‑se esse
negócio hoje mesmo?

- Creio que é a centésima vez que me fazes essa pergunta,
Malvina, - respondeu Leôncio sorrindo‑se. - Todavia pela centésima vez
te responderei também, que as providências que estão da minha parte,
já foram todas dadas. Ontem mesmo mandei um próprio a Campos, e
não tardarão a chegar por aí o tabelião para passar escritura
de liberdade a Isaura com toda a solenidade, e também o padre para
celebrar o casamento. Bem vês que de nada me esqueci. Tratem de estar
todos prontos; e tu, Malvina, manda já preparar a capela para se
efetuar esse casamento, que pareces desejar com mais ardor, - acrescentou
sorrindo, - do que desejaste o teu próprio.

Malvina saiu do salão, deixando Leôncio em companhia de um
terceiro personagem, que também ali se achava, por nome Jorge, a
quem o leitor ainda não conhece. Dizendo que era um parasita, ainda
não temos dito tudo.
Este gênero contém muitas variedades, e mesmo cada individuo
tem sua cor e feição particular. Era um homem bem apessoado,
espirituoso serviçal, cheio de cortesia e amabilidade, condições
indispensáveis a um bom parasita. Jorge não vivia da seiva e da sombra de
uma só árvore; saltava de uma a outra, e assim peregrinava por
longas distâncias, o que era da sua parte um excelente cálculo, pois
proporcionava‑lhe uma vida mais variada e recreativa, ao mesmo tempo que
tornava sua companhia menos incômoda e fatigante aos seus numerosos
amigos. Conhecia e entretinha relações de amizade com todos os
fazendeiros das margens do Paraíba desde São João da Barra até São
Fidélis. A crer no que dizia, andava sempre cheio de afazeres e
dando andamento a mil negócios importantes, mas estava sempre pronto a
prescindir deles a convite de qualquer desses amigos para passar
uns oito ou quinze dias em sua companhia.
Na solidão em que Leôncio se achou depois de seu rompimento
com Malvina, Jorge foi para ele um excelente recurso quando se achava
na fazenda. Servia‑lhe de companheiro não só à mesa, como ao jogo e
à caça: entretinha‑o a contar‑lhe anedotas divertidas e escandalosas,
aplaudia‑lhe os desvarios e extravagâncias, e lisonjeava‑lhe as ruins
paixões, enquanto Leôncio, que o acreditava realmente um amigo, fazia
dele o seu confidente, e comunicava‑lhe os seus mais íntimos
pensamentos, os seus planos de perversidade, e os mais secretos
negócios de família.
Para melhor entrarmos no mistério dos planos atrozes e ignóbeis,
das satânicas maquinações de Leôncio, ouçamos a conversação íntima,
que vão tratar estes dois entes dignos um do outro.
- Até que por fim, Jorge, achei um meio engenhoso e seguro de
aplanar todas as dificuldades. Desta maneira espero que tudo se vai
arranjar ás mil maravilhas.

- Seguramente, e já de antemão te dou os parabéns pelos teus
triunfos, e aplaudo‑te pela feliz combinação de teus planos.

- Mas escuta ainda para melhor poderes compreendê‑los. Com
este casamento ficam satisfeitos os desejos de minha mulher, sem que
Isaura escape de todo ao meu poder. Como o pai dela está debaixo de
minha restrita dependência, eu saberei reter junto de mim esse estúpido
jardineiro com quem caso‑a, e depois... tu bem sabes, o tempo e a
perseverança amansam as feras mais bravias. Entretanto a atrevida
escrava receberá o castigo que merece sua inqualificável rebeldia. Era‑me
absolutamente necessário dar este passo, porque minha mulher
recusa‑se obstinadamente a reconciliar‑se comigo, enquanto eu conservar
Isaura cativa em meu poder, capricho de mulher, com que bem pouco
me importaria, se não fosse... - isto aqui entre nós, meu amigo; confio
em tua discrição.

- Podes falar sem susto, que meu coração é como um túmulo
para o segredo da amizade.

- Bem; dizia‑te eu, que bem pouco me importaria com os arrufos
e caprichos de minha mulher, se não fosse o completo desarranjo em
que desgraçadamente vão os meus negócios. Em conseqüência de uma
infinidade de circunstâncias, que é escusado agora explicar‑te, a minha
fortuna está ameaçada de levar um baque horrendo, do qual não sei se
me será possível levantá‑la sem auxilio estranho. Ora meu sogro é o
único que com o auxilio de seu dinheiro ou de seu crédito pode ainda
escorar o edifício de minha fortuna prestes a desabar.

- Em verdade procedes com tino e prudência consumada. Oh!
teu sogro!... conheço‑o muito; é uma fortuna sólida, e uma das casas
mais fortes do Rio de Janeiro; teu sogro não te deixará ficar mal. Quer
extremosamente à filha, e não quererá ver arruinado o marido dela.

- Disso estou eu certo. Mas isto ainda não é tudo; escuta ainda,
Jorge. O meu rival, esse tal senhor Álvaro, que tanto cobiçou a minha
Isaura para sua amizade, que não teve pejo de seduzi‑la, acoutá‑la e
protegê‑la pública e escandalosamente no Recife, esse grotesco
campeão da liberdade das escravas alheias, que protestou me disputar
Isaura a todo o risco, ficará de uma vez para sempre desenganado de
sua estulta pretensão. Vê pois, Jorge, quantos interesses e vantagens se
conciliam no simples fato desse casamento.

- Plano admirável na verdade, Leôncio! - exclamou Jorge enfaticamente.
- Tens um tino superior, e uma inteligência sutil e fértil em
recursos!., se te desses á política, asseguro‑te que farias um papel
eminente; serias um estadista consumado. Esse Dom Quixote de nova
espécie, amparo da liberdade das escravas alheias, quando são bonitas,
não achará senão moinhos de vento a combater. Muito havemos de
nos rir de seu desapontamento, se lhe der na cabeça continuar sua
burlesca aventura.

- Creio que nessa não cairá ele; mas se por cá aparecesse, muito
tínhamos que debicá‑lo.

- Meu senhor, - disse André entrando na sala, - aí estão na
porta uns cavalheiros, que pedem licença para apear e entrar.

- Ah! já sei, - disse Leôncio, - são eles, são as pessoas que
mandei chamar; o vigário, o tabelião e mais outros... bom! já não nos
falta tudo. Vieram mais depressa do que eu esperava. Manda‑os apear e
entrar, André.

André sai, Leôncio toca uma campainha, e aparece Rosa.

- Rosa, diz‑lhe ele, - vai já chamar sinhá Malvina e Isaura, e o
senhor Miguel e Belchior. Já devem estar prontos; precisa‑se aqui já da
presença de todos eles.

- Estou aflito por ver o fim a esta farsa, - disse Leôncio a seu
amigo, - mas quero que ela se represente com certo aparato e solenidade,
para inculcar que tenho grande prazer em satisfazer o capricho de
Malvina e melhor iludir a sua credulidade; mas - fique isto aqui entre
nós, - este casamento não passa de uma burla. Tenho toda a certeza
de que Isaura despreza do fundo d`alma esse miserável idiota, que só
em nome será seu marido. Entretanto ficarei me aguardando para
melhores tempos, e espero que o meu plano surtirá o desejado
efeito.

- Cá por mim não tenho a menor dúvida a respeito do resultado
de um plano tão maravilhosamente combinado.

Mal Jorge acabava de pronunciar estas palavras, apareceu à porta
do salão um belo e jovem cavalheiro, em elegantes trajos de viagem,
acompanhado de mais três ou quatro pessoas. Lêoncio, que já ia
pressuroso recebê‑los e cumprimentá‑los, estacou de repente.

-Oh!... não são quem eu esperava!... murmurou consigo. - Se
me não engano... é Álvaro!...

- Senhor Leôncio! - disse o cavalheiro cumprimentando‑o.

- Senhor Álvaro, - respondeu Leôncio, - pois creio que é a
esse senhor, que tenho a honra de receber em minha casa.

- É ele mesmo, senhor; um seu criado.

- Ah! muito estimo... não o esperava... queira sentar‑se... quis
então vir dar um passeio cá pelas nossas províncias do Sul?...

Estas e outras frases banais dizia Leôncio, procurando refazer‑se da
perturbação em que o lançara a súbita e inesperada aparição de Álvaro
naquele momento crítico e solene.
No mesmo momento entravam no salão por uma porta interior
Malvina, Isaura, Miguel e Belchior. Vinham já preparados com os
competentes trajos para a cerimônia do casamento.

- Meu Deus!... o que estou vendo!... - murmurou Isaura, sacudindo
vivamente o braço de Miguel: - estarei enganada?... não... é ele.

- É ele mesmo... Deus!... como é possível?

- Oh! - exclamou Isaura; e nesta simples interjeição, que exalou
como um suspiro, expressava o desafogo de um pego de angústias, que
lhe pesava sobre o coração. Quem de perto a olhasse com atenção
veria um leve rubor naquele rosto, que a dor e os sofrimentos pareciam
ter condenado a uma eterna e marmórea palidez; era a aurora da
esperança, cujo primeiro e tímido arrebol assomava nas faces daquela,
cuja existência naquele momento ia sepultar‑se nas sombras de um
lúgubre ocaso.

- Não esperava pela honra de recebê‑lo hoje nesta sua casa, -
continuou Leôncio recobrando gradualmente o seu sangue‑frio e seu ar
arrogante. - Entretanto há de permitir que me felicite a mim e ao
senhor por tão oportuna visita. A chegada de V. S.a. hoje nesta casa
parece um acontecimento auspicioso, e até providencial.

- Sim?!... muito folgo com isso..,.mas não terá V. S.a. a bondade
de dizer por quê?...

- Com muito gosto. Saiba que aquela sua protegida, aquela
escrava, por quem fez tantos extremos em Pernambuco, vai ser hoje
mesmo libertada e casada com um homem de bem. Chegou V. S.a.
mesmo a ponto de presenciar com os seus próprios olhos a realização
dos filantrópicos desejos, que tinha a respeito da dita escrava, e eu da
minha parte muito folgarei se V. S.a. quiser assistir a esse ato, que ainda
mais solene se tornará com a sua presença.

- E quem a liberta? - perguntou Álvaro sorrindo‑se sardonicamente.

- Quem mais senão eu, que sou seu legitimo senhor? - respondeu
Leôncio com altiva seguridade.

- Pois declaro‑lhe, que o não pode fazer, senhor: - disse Álvaro
com firmeza. - Essa escrava não lhe pertence mais.

- Não me pertence!... - bradou Leôncio levantando‑se de um
salto, - o senhor delira ou está escarnecendo?...

- Nem uma, nem outra coisa, - respondeu Álvaro com toda a
calma: - repito‑lhe; essa escrava não lhe pertence mais.

- E quem se atreve a esbulhar‑me do direito que tenho sobre ela?

- Os seus credores, senhor, - replicou Álvaro, sempre com a
mesma firmeza e sangue‑frio. - Esta fazenda com todos os escravos,
esta casa com seus ricos móveis, e sua baixela, nada disto lhe pertence
mais; de hoje em diante o senhor não pode dispor aqui nem do mais
insignificante objeto. Veja, - continuou mostrando‑lhe um maço de
papéis, - aqui tenho em minhas mãos toda a sua fortuna. O seu passivo
excede extraordinariamente a todos os seus haveres; sua ruína é
completa e irremediável, e a execução de todos os seus bens vai lhe ser
imediatamente intimada.

A um aceno de Álvaro, o escrivão que o acompanhava apresentou
a Leôncio o mandado de seqüestro e execução de seus bens. Leôncio,
arrebatando o papel com mão trêmula, passeou rapidamente por ele os
olhos faiscantes de cólera.

- Pois quê! - exclamou ele, - é assim violenta e atropeladamente
que se fazem estas coisas! porventura não posso obter alguma
moratória, e salvar minha honra e meus bens por outro qualquer meio?...

- Seus credores já usaram para com o senhor de todas as
condescendências e contemporizações possíveis. Saiba ainda demais,
que hoje sou eu o principal, se não o único credor seu; pertencem‑me, e
estão em minhas mãos quase todos os seus títulos de dívida, e eu não
estou de ânimo a admitir transações nem protelações de natureza alguma.
Dar seus bens a inventário eis o que lhe cumpre fazer; toda e
qualquer evasiva que tentar será inútil.

- Maldição! - bradou Leôncio, batendo com o pé no chão e
arrancando os cabelos.

- Meu Deus!... meu Deus!... que desgraça!... e que... vergonha!...
exclamou Malvina, soluçando.





Capítulo 22

Deixemos por um momento suspensa a cena do capítulo antecedente,
e interrompido o diálogo entre os dois mancebos. Eles ai ficam
em face um do outro, como o leão altivo e magnânimo tendo subjugado
o tigre daninho e traiçoeiro, que rosna em vão debaixo das possantes garras
de seu antagonista. É‑nos preciso explicar por que série de circunstâncias
Álvaro veio aparecer em casa do senhor de Isaura, a ponto de vir burlar os
seus planos atrozes, mesmo no momento em que iam ter final execução.
Depois que Isaura lhe fora arrebatada, Álvaro caiu na mais acerba
prostração de ânimo.
Ferido em seu orgulho, esbulhado do objeto de seu amor, escarnecido
e vilipendiado pela arrogância de um insolente escravocrata, entregou‑se ao
mais sombrio desespero. Mal soube o seu revés, o Dr. Geraldo correu em socorro
daquela nobre alma tão cruelmente golpeada pelo destino. Graças aos cuidados
e conselhos daquele tão solícito quão inteligente amigo, a dor de Álvaro foi‑se
tornando mais calma e resignada. Por suas exortações Álvaro chegou mesmo a
convencer‑se que o melhor partido que lhe ficava a tomar nas difíceis conjunturas
em que se achava, era procurar esquecer‑se de Isaura.
Todo o esforço que fizeres, - dizia‑lhe o amigo, - em favor
da liberdade de Isaura, será rematada loucura, que não terá outro resultado
senão envolver‑te em novas dificuldades, cobrindo‑te de ridículo e
de humilhação. Já passaste por duas decepções bem cruéis, a do baile,
e esta última ainda mais triste e humilhante. Quase te fizeste réu de
polícia, querendo disputar uma escrava a seu legítimo senhor. Pois bem;
as seguintes serão ainda piores, eu te asseguro, e te farão ir rolando de
abismo em abismo até tua completa perdição.
Atendendo a estas e mil outras considerações de Geraldo, Àlvaro
procurou firmar o espírito e a vontade no propósito de renunciar ao seu
amor, e a todas as suas pretensões filantrópicas sobre Isaura. Foi debalde.
Depois de um mês de luta consigo mesmo, de sempre frustradas
veleidades de revolta contra os impulsos do coração, Álvaro sentiu‑se
fraco, e compreendeu que semelhante tentativa era uma luta insensata
contra a força onipotente do destino. Embalde procurou, já nas graves
ocupações do espírito, já nas distrações frívolas da sociedade, um meio
de apagar da lembrança a imagem da gentil cativa. Ela lhe estava sempre
presente em todos os sonhos d`alma, ora resplendente de beleza e
graça, donosa e sedutora como na noite do baile, ora pálida e abatida,
vergada ao peso de seu infortúnio, com os pulsos algemados, cravando
nele os olhos suplicantes como que a dizer‑lhe:

- Vem, não me abandones; só tu podes quebrar estes ferros que
me oprimem.

O espírito de Álvaro firmou‑se por fim na íntima e inabalável
convicção de que o céu, pondo em contato o seu destino com o daquela
encantadora e infeliz escrava, tivera um desígnio providencial, e o
escolhera para instrumento da nobre e generosa missão de arrebatá‑la à
escravidão, e dar‑lhe na sociedade o elevado lugar que por sua beleza,
virtudes e talentos, lhe competia.
Resolveu‑se portanto, fosse qual fosse o resultado, a prosseguir
nessa generosa tentativa, com a cegueira do fanatismo, senão com o
arrastamento de uma inspiração providencial.
Álvaro partiu para o Rio de Janeiro. Ia ao acaso, sem plano
nenhum formado, sem bem saber o que devia fazer para chegar aos seus
fins; mas tinha como uma intuição vaga de que o céu lhe depararia
ocasião e meios de levar a cabo a sua empresa. O que queria em
primeiro lugar era colocar‑se nas vizinhanças de Leôncio, a fim de
poder colher informações e investigar se porventura algum recurso haveria
para obrigar o senhor de Isaura a manumiti‑la.
Desembarcou na corte com o fim de dirigir‑se brevemente para
Campos. Antes porém de partir para seu destino, procurou colher entre
as pessoas do comércio algumas informações a respeito de Leôncio.

- Oh! conheço muito esse sujeito, - disse logo o primeiro
negociante, a quem Álvaro se dirigiu. - Esse moço está falido, e em
completa ruína. Se V. S.ª também é credor dele, pode pôr as suas barbas
de molho, porque as dos vizinhos estão a arder. Essa casa bem liquida,
mal dará para um rateio, em que toque cinquenta por cento a cada credor.

Esta revelação foi para Álvaro como um relâmpago que se abre aos
olhos do viandante extraviado em noite tormentosa, mostrando‑lhe de
repente e bem ao perto o albergue hospitaleiro que demanda.

- E V. S.ª porventura é também credor desse fazendeiro? - perguntou Álvaro.

- Infelizmente, e um dos principais...

- E a quanto montará a fortuna do tal Leôncio?

- A menos de nada, presentemente, pois como já lhe disse, o seu
passivo excede talvez em mais do dobro a todos os seus bens.

- Mas esse passivo mesmo, em que soma é calculado pouco mais
ou menos?

- Calcula‑se aproximadamente em quatrocentos e tantos a quinhentos
contos, enquanto que a fazenda de Campos, com escravos e todos os mais
acessórios, não excederá talvez a duzentos. Já temos tido com esse fazendeiro
todas as atenções possíveis, e lhe temos dado mais moratórias do que a lei
concede; não somos obrigados a mais, e agora estamos resolvidos a cair‑lhe
em cima com a execução.

- E quais são os outros credores? V. S.ª quererá indicar‑mos?

- E por que não? - respondeu o negociante, e passou a indicar
a Álvaro os nomes e moradas dos demais credores.

De feito, a casa de Leôncio, já desde os últimos anos da vida de
seu pai, ia em contínuo regresso e desmantelamento. O velho
comendador, entregando‑se no último quartel da vida a excessos e
devassidões, que nem na mocidade são desculpáveis, vivendo quase sempre
na corte, e deixando quase em completo abandono a administração
da fazenda, havia já esbanjado não pequena porção de sua fortuna.
Por efeito da má administração, não só as safras começaram a escassear
consideravelmente, como também o número de escravos foi‑se reduzindo
pela morte e pelas freqüentes fugas, sem que tanto o comendador
como seu filho deixassem de substituí‑los por outros novos, que iam
comprando a prazo, tornando cada vez mais pesado o ônus das dívidas.
Depois da morte do comendador, as coisas foram de mal a pior.
Leôncio, com a educação e a índole que lhe conhecemos, era o homem menos
próprio possível para dirigir e explorar um grande estabelecimento agrícola.
Seus desvarios e extravagâncias, e por último sua nefasta e insensata
paixão por Isaura, fizeram‑no perder de todo a cabeça, arrojando‑se em um plano
inclinado de despesas ruinosas, sem cálculo nem previsão alguma. Com os
enormes dispêndios que teve de fazer em conseqüência da fuga de Isaura,
mandando procurá‑la por todos os cantos do império, acabou de cavar o
abismo de sua ruína. Em pouco tempo o jovem fazendeiro estava de todo
insolvável, sem um real em caixa, e com uma multidão de letras protestadas
na carteira de seus credores. Quando estes acordaram e se lembraram de lhe
abrir a falência e executar os seus bens, compreenderam que mal poderiam
embolsar‑se da metade do que lhes era devido, e, portanto, trataram com
sofreguidão de promover os meios executivos, antes que o mal fosse a mais.
Depois de conferenciar com os credores de Leôncio, propôs‑lhes a
compra de todos os seus créditos pela metade do seu valor. Para evitar
qualquer odiosidade, que semelhante procedimento pudesse acarretar
sobre sua pessoa, declarou‑lhes que nenhuma intenção tinha de vexar
nem oprimir o infeliz fazendeiro, que pelo contrário era seu intuito
protegê‑lo e livrá‑lo do vexame de uma rigorosa execução judicial,
e deixá‑lo ao abrigo da miséria. E realmente, a despeito da aversão e
desprezo que Leôncio lhe merecia, Álvaro não pretendia levar ao último
extremo os meios de vingança, que por um acaso as circunstâncias tinham
posto em suas mãos. Era ele dez vezes mais rico do que o seu adversário, e
de muito bom grado, se não houvesse outro recurso, por um contrato
amigável daria uma soma igual a toda a fortuna deste, pela liberdade de
Isaura.
Agora, que o destino vinha pôr em suas mãos toda a fortuna desse
adversário caprichoso, arrogante e desalmado, Álvaro, sempre generoso,
nem por isso desejava vê‑lo reduzido à miséria.
Os credores não hesitaram um momento em aceitar a proposta.
Com razão preferiram saldar suas contas por um modo fácil e expedito,
em dinheiro contado, recebendo a metade, do que sujeitando‑se às
despesas, delongas e dificuldades de uma execução em escravos e bens
de raiz, quando nenhuma probabilidade havia de que no rateio
pudessem obter mais de metade.
Senhor de todos os títulos de divida de Leôncio, isto é, de
toda a sua fortuna, Álvaro partiu para Campos a fim de promover por sua
conta a execução dos bens do mesmo, e munido de todos os papéis e
documentos, acompanhado de um escrivão e dois oficiais de justiça,
apresentou‑se em pessoa em casa de Leôncio para intimar‑lhe em
pessoa a sentença de sua perdição.

- Oh! maldição! - exclamara Leôncio, arrancando os cabelos em
desespero, depois que ouvira dos lábios de Álvaro aquele arresto esmagador.
Atordoado e quase louco com a violência do golpe, ia sair correndo pela porta
a fora.

- Espere ainda, senhor, - disse Álvaro detendo‑o pelo braço. -
Agora quanto à escrava de que há pouco se falava, o que pretendia
fazer dela?

- Libertá‑la, já lhe disse, - respondeu Leôncio com rudeza.

- E mais alguma coisa; creio que também me disse que ia casá‑la;
e, desculpe‑me a pergunta, haveria para isso consentimento da parte
dela?

- Oh! não! não!... eu era arrastada, senhor! - exclamou Isaura
resolutamente.

- É verdade, senhor Álvaro, - atalhou Miguel, ela ia casar‑se,
por assim dizer, forçada. O senhor Leôncio, como condição da
liberdade dela obrigava‑a a casar‑se com aquele pobre homem que V. S.ª
ali vê.

- Com aquele homem?! - exclamou Álvaro cheio de pasmo e
indignação, olhando para o homúnculo que Miguel lhe indicava com o
dedo.

- Sim, senhor, - continuou Miguel, - e se ela não se sujeitasse
a esse casamento, teria de passar o resto da vida presa em um quarto
escuro, incomunicável, com o pé enfiado em uma grossa corrente,
como tem vivido desde que veio do Recife até o dia de hoje...

- Verdugo! - bradou Álvaro, não podendo mais sopear sua
indignação. - A mão da justiça divina pesa enfim sobre ti para punir tuas
monstruosas atrocidades!

- O que vergonha!.., que opróbrio, meu Deus! - exclamou Malvina,
debruçando‑se a uma mesa, e escondendo o rosto entre as mãos.

- Pobre Isaura! - disse Álvaro com voz comovida, estendendo
os braços à cativa. - Chega‑te a mim... Eu protestei no fundo de minha
alma e por minha honra desafrontar‑te do jugo opressor e aviltante,
que te esmagava, porque via em ti a pureza de um anjo, e a nobre e
altiva resignação da mártir. Foi uma missão santa, que julgo ter recebido
do céu, e que hoje vejo coroada do mais feliz e completo resultado.
Deus enfim, por minhas mãos vinga a inocência e a virtude oprimida, e
esmaga o algoz.

- Deixe‑se de blasonar, senhor! - gritou Leôncio agitando‑se em
gesticulações de furor: - isto não passa de uma infâmia, uma traição, e
ladroeira...

- Isaura! - continuou Álvaro com voz sempre firme e grave: -
se esse algoz ainda há pouco tinha em suas mãos a tua liberdade e a
tua vida, e não tas cedia senão com a condição de desposares um ente
disforme e desprezível, agora tens nas tuas a sua propriedade; sim, que
as tenho nas minhas, e as passo para as tuas. Isaura, tu és hoje a
senhora, e ele o escravo; se não quiser mendigar o pão, há de recorrer à
nossa generosidade.

- Senhor! - exclamou Isaura correndo a lançar‑se aos pés de
Álvaro; - oh! quanto sois bom e generoso para com esta infeliz
escrava!... mas em nome dessa mesma generosidade, de joelhos eu vos
peço, perdão! perdão para eles...

- Levanta‑te, mulher generosa e sublime! - disse Álvaro estendo‑lhe
as mãos para levantar‑se. - Levanta‑te, Isaura; não é a meus pés, mas sim em
meus braços, aqui bem perto do meu coração, que te deves lançar, pois a
despeito de todos os preconceitos do mundo, eu me julgo o mais feliz dos
mortais em poder oferecer‑te a mão de esposo!...

- Senhor, - bradou Leôncio com os lábios espumantes e os
olhos desvairados, - aí tendes tudo quanto possuo; pode saciar sua
vingança, mas eu lhe juro, nunca há de ter o prazer de ver‑me implorar
a sua generosidade.

E dizendo isto entrou arrebatadamente em uma alcova contígua à
sala.

- Leôncio! Leôncio!... onde vais! - exclamou Malvina precipitando‑se
para ele; mal, porém, havia ela chegado à porta, ouviu‑se a explosão atroadora
de um tiro.

- Ai!... - gritou Malvina, e caiu redondamente em terra.

Leôncio tinha‑se rebentado o crânio com um tiro de pistola.






Autor: Bernardo Guimarães
Produção Visual: Carlos Cunha
















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