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Contos-->O Portal de Celencar (Baseado na obra de JRR Tolkien) -- 20/04/2001 - 12:19 (Victor Barone) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este conto, ao qual batizei de “O Portal de Celencar”, foi minha primeira tentativa no campo da “Fantasy”. Leitor apaixonado de J. R. R. Tolkien procurei seguir o ritmo detalhado e misterioso de sua narrativa. O uso de elementos élficos, assim como dos “orcs”, foi retirado de suas sagas. Este conto, na verdade, pretendia ser o início de um romance. No entanto, como bom geminiano que sou, acabei abandonando o projeto. Quem sabe não o retomo em breve?



O PORTAL DE CELENCAR

O bosque ao entardecer adquiria uma tonalidade dourada, efeito causado pela luminosidade do sol contra o manto de folhas caídas que cobria a terra como um corpo vivo de cores e reflexos de fogo. Poucos animais deixavam-se enxergar na penumbra do bosque, tornaram-se ariscos por conta dos séculos de convívio com a barbárie dos muitos povos que dominaram o "seu reino". Apenas os pássaros ousavam intervir na paz silenciosa que se estendia do Lago Trark as cordilheiras de On, em Krim eram eles os senhores. Estendiam-se pelas copas das árvores em miríades de cores e formas, e seu canto enchia a densa floresta transmitindo, a quem por ventura os ouvisse, a sensação de que a vida ainda persistia.

Em meio aos diversos cantos que recheavam a mata, apenas um ruído destoava e chamava atenção destacando-se dos demais, vinha das botas do grupo que surgia entre as árvores e sombras. Aproximavam-se com cuidado acercando-se dos troncos mais grossos onde podiam permanecer ocultos de qualquer perigo que pudesse surgir das proximidades da antiga murada. Eram três figuras solitárias sob o entardecer de Eliatin. Calantir, o Alto, e seu irmão, Falamir, pertenciam ao Círculo Dulagam, que há tempos imemoriais exercia uma grande influência entre os Eliatires. O terceiro membro do grupo, Arlan Kaun, era um Elfo habitante do Clã de Thronthure, uma região isolada ao sul da Floresta Negra. O povo élfico tinha um estreito contato com as Palavras Sagradas e Arlan não era diferente, possuía um alto conhecimento sobre as escrituras de cura e domínio.

Falamir interrompeu subitamente a marcha e disse:

- Finalmente. Depois de tantas luas de buscas, conseguimos... Aqui estamos, eis as primeiras fundações...

O antigo templo de Carn Madun estava como os séculos o haviam deixado após a devastação da terra de Eliatin. Suas ruínas estendiam-se sobre o topo de uma colina íngreme que tinha, estendida a seus pés, um extenso vale de bétulas e carvalhos. A própria colina estava recheada de árvores antigas e frondosas que escondiam, sob a sombra de suas altas copas, os muros cobertos por uma espécie de hera muito densa e verde. O vale de Krin tornara-se, havia muito tempo, uma terra sem dono. Há séculos que as continuas guerras entre Eliatires e os povos do norte haviam transformado aquela bela região em um deserto verde, onde apenas viajantes solitários, ou unidades de batedores orcs se aventuravam.

- Fiquem aqui – disse Falamir -vou me aproximar um pouco mais e verificar se o local está abandonado como parece.

Após estas palavras, desapareceu sob as sombras dos carvalhos e a última visão que dele tiveram foi o brilho de sua cota resplandecendo sob os raios do sol que ainda vazavam por entre as pequenas aberturas do teto verde formado pelas árvores gigantescas. Estavam a cerca de quinhentos metros de Carn Madun, pouco acima da base da colina. Calantir sentou-se sobre um tronco e, enquanto observava ao redor, falou a Arnal.

- Foram tantos anos! Tantos anos nos separaram desta visão magnífica. Mas aí está! Aí está Arnal! Finalmente, o objetivo de nossa busca.

Mas o semblante de Arnal revelava uma sombra de apreensão que foi como um impacto direto na euforia incontida de Calantir. Seus olhos se cruzaram e a incerteza coruscava em ambos os olhares.

- Não sei, não sei!! - retrucou Arnal - Acho que após tanto tempo não consigo descobrir o verdadeiro sentido desta busca. Acho mesmo que, agora, sob os pés desta colina me falta a coragem de profanar o santuário que por tantos séculos meu povo defendeu da tirania do norte.

- Como podes pensar desta maneira - disse Calantir segurando Arnal pelo ombro - Depois do que enfrentamos, quilômetros e mais quilômetros de viagem, emboscadas, sem contar os anos perdidos de nossa juventude! Você fala como se fossemos um bando de salteadores em busca do poder. Ah, o poder! Não consegues ver ainda a diferença? Estamos aqui para recuperar algo que por direito nos pertence. Ou você acha que a força de Celencar deve ficar escondida para sempre sob um monte de pedras milenares enquanto nossos povos são diariamente esmagados contra o mar. Preste bem atenção Arnal - Calantir puxava o companheiro pelos braços - ou assumimos este risco agora ou voltamos às costas para os milênios de luta que nos permitiram viver como seres livres, não corrompidos, seres livres Arnal!

Arnal libertou-se do braço do amigo e nada disse, mas em seu rosto permanecia a mesma expressão de preocupação, talvez até mais acentuada.

Alguns minutos haviam se passado sem que os dois trocassem uma palavra sequer. O ar parecia ter se estagnado e até os pássaros haviam interrompido sua sinfonia, o sol começava a cair e, aos poucos, os ruídos do bosque começariam a ser substituídos por outros, menos agradáveis. Arnal fixara o olhar em um pequeno pássaro que bicava algo a seus pés. Era um pequeno Ziri azul, muito apreciado entre seu povo pelo belo canto que propiciava. O pássaro ciscava de um canto a outro e Arnal pareceu hipnotizado com a imagem de paz que lhe trazia a recordação de Thronthure. O pássaro bicou uma migalha e pareceu olhar para Arnal, foi neste momento que ele percebeu. Migalhas! Era de pão, sem dúvida. Arnal olhou com cuidado à sua volta e descobriu um pedaço maior de um pão preto e ressecado, era pão típico de orcs! Arlan levantou-se e olhou para Calantir como se fosse dizer algo quando, de repente, um som profundo buliu a calma que se instalava no fim de tarde do Vale de Krin, bandos de pássaros levantaram vôo, inclusive o pequeno Ziri azul que Arnal observava.

Os dois também não permaneceram parados, pois reconheceram um grito de socorro, emitido por Falamir, que ecoara forte por entre as árvores. Correram em direção ao chamado pulando por sobre raízes e desviando-se de arbustos e galhos. Calantir levava sua espada em punho e Arnal estava armado com um antigo arco do povo de Dulagan. Enquanto corriam, vislumbraram por entre um grupo de árvores uma clareira coberta pela penumbra da tarde onde um grupo lutava emitindo um tilintar de espadas em choque. Ao surgirem do interior do bosque os dois se depararam com seis guerreiros orcs. Vestiam armaduras de couro negro, e em seus focinhos deformados podia-se perceber dentes pontiagudos. Estavam armados com suas tradicionais cimitarras. Falamir estava encostado contra uma grande árvore enquanto os adversários o fustigavam, no chão havia dois inimigos mortos além de um grande lobo despedaçado - os orcs costumavam utilizar estas temíveis criaturas como montaria para as suas unidades de batedores. Falamir estava ferido e brandia sua espada com as duas mãos, de um lado para o outro, tentando evitar os golpes certeiros que visavam todas as partes de seu corpo. O auxílio chegou na hora em que tudo parecia perdido pois, já sem forças, Falamir acabava de cair de joelhos preparando-se para o golpe final.

Calantir, vendo o perigo que o irmão corria, partiu como um louco em direção ao grupo. Seu primeiro golpe zuniu no ar e decepou a cabeça do primeiro inimigo à sua frente. Enquanto isto, Arnal disparava uma flecha e, com mira certeira, transpassava a garganta de um lanceiro surpreso. Alguns orcs que cercavam Falamir abriram o combate em uma grande roda e um deles partiu em direção a Arnal que preparava uma segunda flecha. O orc, um tipo robusto, com grande pernas arqueadas e olhar enfurecido, corria com a espada erguida acima de sua cabeça emitindo um urro terrível. Estava apenas a dois passos de rasgar o crânio de Arnal quando este, com um rápido movimento, retesou seu arco e disparou sua seta contra o estômago do guerreiro que, contorcendo-se de dor, caiu arrastando-se até os pés do arqueiro. Calantir lutava contra dois adversários e, rapidamente, livrou-se de um com uma cutilada potente que rachou o escudo do orc, secionado seu braço na altura do cotovelo. Falamir, mesmo no chão, defendia-se com aguerrida habilidade, utilizando as últimas forças que lhe restavam. Quando Calantir derrubou seu último inimigo o guerreiro que lutava com Falamir embrenhou-se no bosque, sumindo entre as sombras das árvores com uma flecha de Arnal na altura do ombro.

Calantir correu de encontro a seu irmão que jazia no chão, encostado na árvore. Só então percebeu a gravidade de seu ferimento. Falamir tinha uma lança partida cravada no tórax e, apesar da potente cota de malha ter contido parte do impacto, o arremesso havia sido feito de pouca distância e a lâmina da lança penetrara profundamente na carne do guerreiro. Calantir acalentava o irmão enquanto Arnal, com um olho na mata e outro na algibeira, sacava um pacote feito de folhas cuidadosamente dobradas.

- Ajuda-me a tirar a cota de seu irmão - disse Arnal. Quebre a lança um pouco mais rente e puxe a cota com muito cuidado, talvez ainda tenhamos tempo de conter o veneno.

Os dois já haviam visto este tipo de ferimento em muitas oportunidades nas diversas campanhas das quais participaram. As armas utilizadas por seus inimigos eram, muitas vezes, embebidas em uma pasta venenosa feita de uma flor chamada Hurian, muito comum nas planícies de Khorpiant. O ferimento infeccionava e levava o ferido a um estado de delírio que terminava em dolorosa morte. Calantir obedeceu Arnal e, delicadamente, começou a serrar parte da madeira estilhaçada que se unia com a lâmina escondida dentro do peito de seu irmão. Falamir gemia de dor devido aos movimentos, e seu ferimento revelou-se muito grave. Com um movimento rápido Calantir arrancou-lhe a lança do peito, Falamir soltou um terrível grito de dor e perdeu os sentidos.

Imediatamente Arnal abriu a folha dobrada onde havia um emplastro de cor esverdeada que foi rapidamente aplicado sobre a laceração que já começava a sangrar em abundância. Era uma erva muito forte que estancava sangramentos e aliviava a dor. Enquanto Calantir observava seu irmão e vigiava a mata, Arnal preparou um chá a base de uma pequena raiz chamada Sian. O elfo ainda tinha muitas destas raízes, eram provenientes de um tubérculo raro que se espalhava por todas as regiões conhecidas. O Sian era muito útil no combate a infecções causadas por veneno. Após preparar a infusão Arnal fez com que Falamir a bebesse, mas este estava mergulhado em um torpor profundo e apresentava uma tonalidade opaca nos olhos. As sombras da noite já caíam sobre os viajantes e Arnal, temendo que o orc sobrevivente tivesse reforços pelas redondezas, levantou-se e disse:

- É melhor levarmos seu irmão para a ruína. Não é seguro permanecermos aqui, pois o inimigo pode estar próximo e em maior número que nós. Ajuda-me a carrega-lo com cuidado.

Assim levaram o ferido em direção a cidadela abandonada. O caminho foi duro pois a subida se tornava cada vez mais íngreme e tinham de passar sobre raízes e pedras com Falamir nos braços. Enquanto caminhavam sentiam todo o silêncio da noite de Eliatim a murmurar em seus ouvidos. Já se aproximavam da murada frontal quando Arnal parou e, olhando para Calantir, fez um sinal de silêncio. Rumaram em direção a um grande carvalho cujas raízes formavam uma concavidade recheada de folhas secas, ali deixaram Falamir enquanto conversavam em voz baixa.

- O quê houve? - perguntou Calantir - Viu alguma coisa?

- Tive a impressão de ter visto sombras vagando nas proximidades da muralha - respondeu o elfo.

- Orcs?

- Talvez. Melhor tomarmos muito cuidado agora - murmurou Arnal - pode haver alguma força inimiga acampada na ruína. Acho que os orcs que encontramos hoje podem fazer parte do grupo que vem nos seguindo desde as Colinas de Alacar. É melhor observarmos o terreno com muito cuidado antes de avançarmos mais.

- O quê vamos fazer? - perguntou Calantir - Ficaremos aqui parados até amanhecer enquanto meu irmão definha? De maneira nenhuma! Venha, vamos dar a volta e tentar entrar pelo lado direito da murada.

Os dois contornaram a orla do bosque, sempre atentos à ruína, em busca de algum sinal que viesse a revelar a presença do inimigo e a sua quantidade. Durante os primeiros minutos a única coisa que viram foi à escuridão rebatida contra os grandes blocos de pedra das muralhas de Carn Madun. Neste momento, uma brisa gelada vinda dos lados do Rio Tendell embalou as folhas das árvores formando um estranho ruído que, na noite de Eliatim, aguçou a apreensão dos guerreiros. Já chegavam a murada direita, parcialmente desmoronada, quando viram, do interior do bosque, uma miríade de sombras que bailavam nas pedras escuras do antigo templo, eram cerca de quinze orcs que, sentados de fronte a murada destruída, assavam alguma caça em uma pequena fogueira. A sua volta, três ou quatro lobos descansavam. Não era possível ouvir o que falavam mas um deles, um orc corpulento, com braços longos, andava de um lado para outro gesticulando.

- Veja - sussurrou Arnal - aí esta. Talvez haja mais inimigos no interior da ruína. Melhor esperarmos até o amanhecer. Não creio que eles tenham algum conhecimento sobre a importância deste local, acho mesmo que devem partir ainda nesta madrugada. Veja, estão todos com as armaduras vestidas. Apesar de tudo, estamos com um pouco de sorte, pois se o vento estivesse soprando de maneira contrária os eles já teriam nos farejado há muito tempo, não demos chance ao azar, afastemo-nos do perigo sob a proteção da noite.

- Tens razão - respondeu Calantir - não devemos ser insensatos agora. Afastemo-nos um pouco, o suficiente para não sermos farejados pelas feras. Mas pesa-me o coração não poder abrigar meu irmão sob a proteção de um teto. Mas não há alternativa, caminhemos depressa!

Assim, afastaram-se das muralhas vigiadas e pararam aos pés de uma pequena ribanceira que oferecia um abrigo razoável pois uma reentrância natural, localizada na base do monte, formava uma pequena caverna, suficientemente espaçosa para abrigar os três durante a noite. Foram lentas as horas até que os primeiros raios de sol surgissem sobre o teto verde do bosque. Enquanto Calantir velava o sofrimento de Falamir, Arnal vigiava a entrada do abrigo. Não se atreveram a fazer fogo com o inimigo tão próximo, limitaram-se a tentar aquecer o ferido com o calor de seus corpos, mas seu estado estava visivelmente pior. Mesmo na penumbra podia-se notar o tom esverdeado que sua pele havia adquirido e, além disto, tremedeiras dominavam todo o seu corpo. Certa hora da madrugada Arnal observou os dois homens a dormir. Calantir curvara-se ao cansaço da viagem e do combate dormindo com a cabeça do irmão em seu colo, seus olhos fechados deixavam transparecer pesadas marcas negras formadas pelos anos de intempéries na busca do legado de Celencar. Arnal aproximou-se um pouco mais e observou a respiração de Falamir, estava fraca e ruidosa, o elfo pois sua mão sob a fronte do moribundo e proferiu algumas palavras de sossego aprendidas havia muito tempo entre seu povo. Arnal sabia que sua ajuda era apenas uma maneira de conter o sofrimento do amigo, somente a sorte poderia definir o destino de Falamir.

Faltavam apenas algumas horas para o amanhecer quando Arnal, tirando suas mãos da fronte de Falamir, virou seu rosto em direção a entrada da pequena caverna. Um rápido movimento passara frente a seus olhos, um brilho refletido na luz da noite, um animal ou apenas sua imaginação? De certo nada que oferecesse perigo imediato, além do mais o torpor já tomava conta de seu corpo e, em poucos minutos adormecia encostado à fria parede de terra.

Assim que amanheceu Arnal acordou Calantir, este teve um sobressalto ao ser tocado pelo Grifo e perguntou.

- O quê ocorre? Sinto-o frio - Disse Calantir.

- Calma - pediu Arnal - a madrugada foi fria, por isto sentes o frio na pele de seu irmão.

E tomando as mãos de Falamir nas suas sentiu que o frio daquela pele não era causado pelo sereno da noite. Falamir morrera nas primeiras horas da madrugada, seu rosto estava sereno sob o brilho do sol. Calantir conteve um grito de angústia e fechou os olhos serrando os punhos com força como se quisesse aprisionar dentro de si toda a explosão causada pela dor daquela perda, assim permaneceu por um rápido instante. Depois abriu os olhos e estes continham uma luz, uma febre coruscante que assustou Arnal. Calantir levantou-se, pegou o irmão no colo e, olhando para o céu azulado que surgia entre tapeçarias de folhas, gritou. E sua dor voava em direção a Carn Madun quando Alon soprou sua doce brisa e a levou para longe, rumo ao ocidente.

Prepararam, no alto da colina mais próxima, uma grande pira de troncos e gravetos sobre o qual depositaram o corpo de Falamir junto a todos os seus pertences, sua cota de malha, sua longa espada e o elmo da casa de Dulagan. O sereno da madrugada ainda pairava sob a copa das árvores no vale abaixo. Em poucos lugares a neblina cedia passagem ao sol que se levantava lentamente no horizonte longínquo de Eliatin. Um cheiro fresco de mato invadiu as narinas dos dois viajantes enchendo-os com um profundo amor por aquela terra tão devastada pela guerra contínua contra a sombra do norte. Permaneceram assim, hipnotizados com a beleza de Krim, até que o sol atingiu o centro do céu. Neste momento Calantir pôs uma tocha na pira e observou as chamas com suas incontáveis línguas amareladas e azuis cumprindo seu papel purificador. Assim que o fogo dominou toda a pira, e a fumaça começou a ser um perigoso sinal para o inimigo, Arnal tomou Calantir pelo braço.

- Vamos, não há mais nada a fazer aqui. Tudo esta consumado, Falamir descansa nos braços de Vaniar. Partamos rumo a ruína e executemos nossa missão antes que o arrependimento me faça retroceder ou cometer outra loucura qualquer.

Calantir olhou Arnal e consentiu com a cabeça descendo a colina rumo ao santuário abandonado. Seu semblante começava a sustentar o tom amargo que para sempre deixaria em seu rosto uma sombra grave e profunda. Caminharam pelo bosque com atenção redobrada, sempre a espera de que o inimigo surgisse das saliências e das moitas espalhadas pelo caminho. Seguiam por entre as árvores a passo rápido quando avistaram, próxima a um pequeno regato pedregoso que lhes atravessava o caminho, uma tênue sombra agachada cujos movimentos não revelavam sua forma ou intenção. Pararam de súbito a observar a figura que se esgueirava de um lado a outro.

- É uma marmota, nada mais que isto - sussurrou Calantir.

- Não me parece que marmotas caminhem sobre as duas patas e que levem água com as mãos espalmadas até a boca - retrucou Arnal cuja visão élfica em muito superava a dos homens.

Os dois começaram a se aproximar com todo cuidado para não espantar a misteriosa criatura, avançaram cerca de dez metros acercando-se das proximidades do regato. Uma grande pedra lhes serviria de esconderijo se conseguissem atravessar um curto terreno cheio de folhas caídas sem despertar a atenção da criatura. Apesar do dia claro e do forte sol, as sombras da floresta propiciavam um seguro refúgio a identidade da presa que, para Calantir, não passava de uma ilusão de ótica formada pelos raios do sol refletindo na água e nas pedras. Mesmo assim, o instinto de preservação do guerreiro era muito forte para que ele desprezasse a possibilidade de um perigo real.

Os dois se agacharam e começaram a avançar lentamente rumo a grande pedra que se encontrava a menos de cinco metros de distância. Na posição que estavam não conseguiam ter uma boa visão do riacho, mas se conseguissem se aproximar ficariam em uma privilegiada posição para observação. Estavam praticamente sob o pedregulho quando Calantir sentiu, sob seus pés, uma leve pressão. Um galho seco estalou alto e, quase que instantaneamente, um farfalhar de mato ecoou do outro lado do riacho. Enquanto Calantir tentava se recuperar da frustração de ter revelado sua posição de modo tão infantil, Arnal levantava a cabeça com o intuito de ter ao menos uma visão da figura que os havia levado àquela situação quase que ridícula, mas a única coisa que viu foram os ramos mais baixos de um arbusto que balançava de um lado para o outro como se uma lufada de vento houvesse passado a seu lado.

Após uma hora de caminhada começaram a se aproximar das cercanias da colina e armaram-se de cuidados redobrados para não serem percebidos por qualquer perigo que pudesse surgir. O episódio do riacho havia deixado uma fagulha de desconfiança em ambos os viajantes e, apesar de não terem descoberto pegadas ou qualquer vestígio suspeito, seus sentidos estavam aguçados ao máximo. Em pouco tempo chegaram novamente a colina que abrigava as ruínas de Carn Madun. Subiram pela encosta mantendo sempre a direção da murada oeste onde haviam observado os orcs, na noite passada. Não ousavam pronunciar nenhum som a não ser o provocado por sua respiração, Calantir caminhava na frente, com sua espada em punho, enquanto Arnal segurava seu arco de aço oco, com uma flecha pronta a ser utilizada.

Desta maneira subiram a colina até aproximarem-se de uma distância de aproximadamente trinta metros da murada principal, observaram com toda atenção a estrutura que, há milênios, abrigava o Círculo de Celencar. Era a primeira vez em mais de cem anos que membros dos povos livres pousavam seus olhares nas pedras que representavam um símbolo de sua luta contra a dominação dos povos do norte. Desde a queda dos exércitos de Eliatin Central, no ciclo de 3520, membros dos povos livres não tinham acesso a esta região. Com este pensamento em sua mente Calantir avançava rumo à murada oeste quando foi contido por um sinal de silêncio de Arnal. O elfo erguera a cabeça e observava o templo com todo o cuidado.

- Talvez ainda permaneçam inimigos no interior da ruína. Aproximemo-nos com muito cuidado.

Caminhando a passo rápido, avançaram até o local onde os orcs haviam acampado. Havia restos de um gamo desossado pelo chão e os resquícios de uma fogueira marcavam a relva. A murada oeste media pouco mais de duzentos metros de comprimento e era a primeira muralha de defesa de Carn Madun. A hera dominava quase toda e estrutura, e subia por quase seis metros de altura deixando apenas pequenas janelas que revelavam a negra pedra da qual era composta a construção. A murada principal ficava a norte e eles precisavam avançar nesta direção para verificar se o antigo portão ainda existia, neste caso teriam de encontrar uma brecha na muralha que lhes permiti-se penetrar no pátio principal rumo ao santuário. Não foi preciso. Esgueiraram-se pela murada com as costas coladas à hera até dobrarem o paredão lateral, rumo ao muro frontal, quando se depararam com um grande amontoado de pedras. Um trecho com mais de 15 metros havia desabado formando um monte de escombros com uma altura superior a dois homens. Logo à frente viram o antigo portão que durante séculos havia sido um bastião intransponível para as forças inimigas. Agora estava completamente destruído, restos das grossas toras de madeira, apodrecidas pela incansável ação do tempo, formavam um grande monte de entulho misturadas às placas de aço que sustentavam a estrutura. A abertura formava um arco de pedra através do qual podiam ver um pátio coberto de relva que se estendia por vinte ou trinta metros. Logo adiante erguia-se a muralha interna de Carn Madun, esta encontrava-se intacta a não ser pela porta principal, cujo grande portão desabado revelava ao longe o pátio principal.

Ao transpassarem o arco de pedra sentiram um leve tremor a lhes percorrer o corpo, foi como se todos seus antepassados estivessem a murmurar em seus ouvidos os séculos de lamentos proferidos no interior da cidadela sagrada. O vento soprou forte e foi como milhares de vozes a gritar em uníssono frases desconexas cujo sentido não conseguiram decifrar. De repente, como por encanto, tudo cessou. Calantir e Arnal estavam estáticos logo abaixo do arco de pedra, Arnal foi o primeiro a voltar a si e um rápido tremor o lançou de volta a realidade.

- Este lugar guarda as recordações de muitas vidas. Posso sentir seus pensamentos a deslizar por todo o local. - Arnal tocava a murada com as mãos. - Sejamos breves aqui.

Rumaram em direção a entrada da muralha interna e, ao progredirem em seu avanço, começaram a vislumbrar com mais facilidade o grande pátio central onde se erguiam o santuário e a cidadela. Aproximaram-se com cuidado tomados por um respeito que tinha o peso de milhares de anos de tradição e resistência. Caminharam e cada passo representava as centenas de anos de conflitos que haviam transformado o povo de Eliatir em nômades errantes expulsos de suas terras.

Várias pequenas construções de pedra estendiam-se por sobre a relva do pátio interno. Haviam abrigado cavalos, soldados, monges, lavradores e artesãos. Em seus tempos de glória Carn Madun acolhia centenas de pessoas que vinham das aldeias e cidadelas da região para realizarem suas feiras anuais e seus festivais de arte. Agora tudo o que restava era a solidão das pedras negras cujo silêncio pesava sobre os espíritos que ainda persistiam em habitar o local. Cerca de cinqüenta construções circundavam o templo de Carn Madun, uma avenida de rocha esculpida cortava a cidadela e rumava em linha reta até o arco de pedra que, outrora, sustentava um grande portão de aço. O templo de Carn Madun era uma larga torreta de três andares cujo interior reunia milhares de anos de cultura Eliatir. Obras de arte, bibliotecas, documentos antiqüíssimos, quase tudo fora destruído quando da queda da fortaleza no ciclo de 3519. Os poucos documentos e peças salvos foram transportados para lugar seguro durante a evacuação da cidadela. Caminharam pela avenida rumo ao templo. Á sua volta cada casa de pedra, cada rocha ou resto de vegetação pareciam conter um grito de socorro há muito proferido. Carn Madun exercia, mesmo após trezentos anos de abandono, um forte impacto sobre quem observasse suas fachadas cobertas de inscrições sagradas.

A estrutura, de quase dez metros de altura, havia sido incendiada e depredada durante os primeiros anos da ocupação dos povos do norte, certos pontos apresentavam sinais de desabamento interno mas seu aspecto ainda sustentava uma força surpreendente. Arnal ergueu as mãos tocando a pedra negra, seus longos dedos alisaram as inscrições em baixo relevo, que cobriam cada centímetro do templo. Seus lábios semicerrados impregnaram o local com palavras de paz. Enquanto Arnal anunciava aos deuses sua chegada Calantir observou o negro túnel que levava ao interior do templo, seguia por três ou quatro metros, terminando aos pés de uma escadaria larga, protegida por uma densa penumbra. As paredes internas, outrora repletas de obras e símbolos sagrados, estavam nuas.

Apenas a negra pedra refletia um facho de luz solar que surgiu após alguns momentos, parecendo vir de algum ponto onde a parede ruíra. Os raios do sol incidiam retos sobre a parede logo acima de Calantir revelando a beleza das gravuras em relevo que adornavam os patamares intermediários do templo. Calantir avançou rumo ao primeiro andar sentindo um torpor a lhe dominar o corpo, seus dedos pareciam formigar e somente um pensamento dominava sua mente: "É o fim da procura!". A luz vinha de um desmoronamento no canto esquerdo da parede, onde uma cortina de luz surgia pela fresta e parecia criar uma divisão entre o mundo real, escada a baixo, e um mundo desconhecido, repleto do poderio mágico, que começava no degrau seguinte. Com esta ilusão bailando em sua mente ele avançou.

Arnal abriu os olhos saindo do estado de transe no qual havia mergulhado por instantes, suas mãos coladas ao paredão do templo, estavam úmidas e pegajosas, um líquido vermelho brotava das junções entre os blocos de pedra, o templo sangrava. Na mente sensitiva do elfo o templo sangrava e lhe avisava sobre o perigo iminente que surgia de algum local ainda não identificado. Ele olhou a sua volta vendo apenas a grande avenida cercada pelas estruturas abandonadas. Ao longe, como dois olhos sobrepostos, estavam os arcos de acesso às muradas da cidadela. Seu olhar pairou sobre o olhar pétreo da muralha e então ele compreendeu. Num giro de corpo rápido penetrou no templo e começou a subir a escadaria pulando os degraus de três em três. Passou rapidamente pelo portal de luz e continuou por mais alguns lances de escada até emergir em um grande salão repleto de escombros enquanto gritava a plenos pulmões uma palavra de despertar. Foi o suficiente para trazer de volta Calantir que jazia de pé, completamente dominado pelo olhar hipnótico do Ciclope que, a menos de cinco metros do guerreiro, preparava-se para golpear sua vítima.

A criatura, com pouco mais de dois metros de altura, vestia um gibão de couro e em suas mãos um pesado porrete pendia balançando de um lado para outro. Ao ver Arnal irromper pela escadaria o Ciclope moveu-se com grande agilidade partindo de encontro a Calantir. O guerreiro só teve tempo de pender o corpo para o lado enquanto a clava da criatura girava no ar rumo a sua cabeça. O golpe zuniu, passando pelo ombro esquerdo de Calantir, e atingindo de raspão seu antebraço. Arnal preparava seu arco quando um violento safanão da criatura o atirou contra a parede deixando-o desacordado no chão úmido. Neste momento Calantir, recuperando-se do primeiro golpe, afastou-se da parede tentando levar o combate para o centro do salão, onde teria espaço para recuar se preciso. A criatura enfurecida partiu mais uma vez contra o guerreiro, sua clava descreveu uma curva por cima de sua cabeça, mas desta vez Calantir esquivou-se com perícia, contra-atacando com uma certeira cutilada na altura do abdome do ciclope. Gravemente ferida a fera urrou de dor enquanto seu sangue negro jorrava da profunda laceração. A criatura dobrou-se sobre si mesma por um momento, Calantir esperava no centro do salão segurando sua espada com ambas as mãos. O ciclope levantou a cabeça fitando Calantir com seu único olho instalado no centro da ampla testa.

Apoiando-se em uma coluna de pedra projetou seu corpanzil num último e desesperado golpe, a clava girou no ar mais uma vez rumo a cabeça do guerreiro que, com um passo seguro, saiu do trajeto do gigante deixando somente a afiada lâmina a barrar-lhe o caminho. O ciclope desabou girando no ar e caiu de costas sobre o duro chão de pedra.

Arnal permanecia desacordado, o golpe do ciclope o havia atingido em cheio e sua face esquerda apresentava um grande hematoma. Calantir molhou um pedaço de pano passando-o no rosto do amigo e, enquanto tentava reanimá-lo, observou seu rosto atentamente. Parecia não ter idade definida embora Calantir soube-se que já beirava os quatrocentos e cinqüenta anos. Para os elfos o tempo não passava da mesma forma que para os homens, sua vida era muito mais longa, podiam viver até mil anos sem nunca envelhecer externamente. Apenas em seu interior se acentuavam grandes transformações. Sua noção de maturidade e velhice era completamente diferente. Para o povo élfico, a idade era contada pela quantidade de conhecimentos que acumulavam em sua existência, assim, quanto mais sábios, mais velhos eram em seu interior. A busca do saber entre o povo élfico era um processo infinito, o sentido de sua existência estava mergulhado na busca incessante do conhecimento. Esta caminhada só terminava no momento no qual chegavam ao conhecimento do "todo", neste momento cansavam-se de sua existência e partiam, de vontade própria, para o plano que não se vê. Calantir divagava sobre as crenças élficas quando Arnal moveu levemente as pálpebras, um instante depois estava desperto a observar a sala na qual se encontravam e, olhando o corpo do ciclope estatelado a alguns passos, disse:

- Achei que havia cansado da eterna busca, mas vejo que meu descanso ainda não chegou. Sua habilidade com a espada já nos tirou de muitas dificuldades nos últimos dias guerreiro, espero que não seja mais necessário que a desembainhes tão cedo!

Vistoriaram a sala após um ou dois minutos de descanso, estavam em um grande salão em forma de meia lua. Próximo à saída da escadaria uma grande extensão da parede interna havia desabado, formando um monte de escombros. Os raios do sol entravam na sala formando cortinas de luz que se espalhavam pelos recantos do aposento. No chão havia cacos de uma grande ânfora, Calantir curvou-se e pegou um grande pedaço no qual ainda podia-se ver parte do desenho que adornava a peça. Parecia representar uma celebração onde várias figuras humanas erguiam ramos de trigo, outras carregavam ânforas de vinho sob um fundo estilizado onde se podia reconhecer as muralhas da cidadela. - Lembranças de um passado há muito perdido - pensou Calantir.

A única saída do salão era uma reentrância ovalada, localizada no ângulo oposto ao da escada. Os dois caminharam em direção a entrada, observando com atenção as sombras que bailavam pelas paredes do corredor que se seguia. Os primeiros aposentos à esquerda estavam obstruídos pelos escombros de um grande desabamento que revelava, em meio à penumbra, um pedaço do terceiro pavimento. A direita havia uma sala parcialmente iluminada. Pequenas janelas circundavam as paredes revelando, sob a luz que filtravam, os restos de uma antiga e agitada cozinha. Uma grande fornalha ocupava todo um canto do aposento e o teto sobre ela estava escurecido por anos de funcionamento, as paredes ainda possuíam restos de afrescos ao estilo Eliatir e no chão, quase no centro da sala, havia um alçapão de ferro.

Arnal segurou a argola e puxou com força. Apesar de enferrujadas e endurecidas pelo tempo às dobradiças cederam e revelaram o início de um corrimão que deveria estar apoiado sobre uma escada. No entanto a escada de madeira há muito havia ruído deixando isolado o porão. Embora a visão de Arnal fosse apropriada para a penumbra na qual se encontravam já se fazia necessário um pouco de iluminação. Calantir achou um toco de madeira suficientemente grande para servir de tocha, pedaços de pano foram enrolados em sua ponta formando uma bucha compacta. Arnal retirou de sua mochila uma pequena bolota escura a qual esfregou sobre a bucha, a resina do Baô era um excelente agente inflamável além de ter o poder de reter a chama e conservar o fogo por mais de trinta minutos. Enquanto o elfo terminava de untar a tocha, Calantir preparava sua pederneira e após dez minutos uma boa chama iluminava o caminho dos aventureiros.

O porão servia como depósito e, da abertura na cozinha, se viam vários ganchos pela parede, no centro havia um defumador de pedra e no gancho acima dele uma peça mumificada de carne seca exalava um odor de coisas antigas. A altura não passava dos dois metros e Arnal preparou-se para saltar:

- Fique aqui enquanto eu pego o pacote - disse a Calantir - fique atento pois algo me diz que aquele ciclope não era um simples viajante, talvez haja mais inimigos nas redondezas.

Arnal pendurou-se na beirada do alçapão e deixou-se cair. O porão tinha cerca de dez metros quadrados e estava repleto de fungos. Montes úmidos formados por restos de grãos haviam gerado uma massa viva de cogumelos de todas as cores e formas. Em uma parede cinco ânforas permaneciam seladas. Arnal caminhou até elas e viu o selo que indicava a procedência do produto

- Vinho Sagrado de Vishu! Não acredito! - Arnal sacou seu punhal e retirou o selo cuidadosamente, o aroma da bebida mágica permanecia delicado mesmo após trezentos anos. De sua mochila o elfo sacou uma pequena cuia de prata a qual mergulhou no vinho. Bebeu-o com gosto deixando que o calor do álcool lhe trouxesse a mente lembranças de fartura e paz.

- Vamos com isto! - Gritou Calantir - Não temos todo o tempo do mundo!

Arnal, fora do campo de visão de Calantir, guardou rapidamente sua cuia e continuou a explorar o local. Em uma das paredes havia três reentrâncias nas quais estavam colocadas três bacias de latão.

Arnal aproximou-se e retirou a bacia da reentrância à sua esquerda, havia em sua superfície quatro pequenas depressões arredondadas nas quais o elfo encaixou seus dedos, exercendo uma leve pressão. Como num passe de mágica uma portinhola abriu-se na lateral do buraco revelando um pequeno compartimento - É isto! - disse Arnal. Dentro do cofre um pequeno embrulho estava depositado. Envolto em um pano poído pelo tempo havia uma chave de aço. Rapidamente o elfo guardou-a na algibeira e dirigiu-se a abertura no teto. Com um salto agarrou-se ao braço de Calantir que já o aguardava para iça-lo até a cozinha.

- Você achou? - perguntou Calantir.

- Sim, aqui está - respondeu Arnal mostrando-lhe uma grande chave - afinal os escritos estavam corretos. Agora falta muito pouco, sejamos breves.

Saíram do aposento e continuaram caminhando pelo corredor, logo chegaram ao seu fim onde as entradas das duas últimas salas se defrontavam. Tomaram a entrada à esquerda que revelou-lhes um salão cônico onde uma escada de pedra levava ao terceiro pavimento. Alguns postigos nas paredes deixavam penetrar a luz do sol. Arnal dirigiu-se a uma das janelas e observou o exterior, a cidadela parecia se curvar perante a força do santuário, o sol cruzava rapidamente o céu e logo a noite chegaria lançando suas sombras sobre toda a região.

- É chegado o momento - disse Arnal - somente esta escada nos separa de nosso destino. É hora de decidirmos se tudo aquilo que buscamos durante tantos anos não passou de um sonho absurdo ou se, realmente, está em nossas mãos a responsabilidade de assumirmos o legado de Celencar.

- De minha parte tenho a mente limpa. - disse Calantir - Irei até o final para recuperar o que em parte pertence a meu povo.

- Embora uma sombra de dúvida ainda me domine, sei que agora é por demais tarde para recuarmos. - acrescentou Arnal - Só espero que Vaniar nos guie e nos apóie para que não sucumbamos a tão grande poder.

Desta forma os dois se dirigiram rumo a escada e galgaram seus degraus antigos até o terceiro pavimento onde se depararam com um grande aposento parcialmente desabado. O salão ocupava toda a extensão do terceiro andar e tinha suas paredes cobertas por pinturas e símbolos sagrados. A luz da tocha de Calantir bruxuleava formando figuras estranhas que se sobrepunham às paredes da sala. O teto, apesar de ter cedido em certas partes, revelava uma cobertura de pedras que isolava o aposento dos raios do sol. Neste local Arnal e Calantir reconheceram o grande Salão da Sabedoria. No centro da sala, sob um pequeno patamar de pedra, agora vazio, ficava a cadeira de Alederur, o último Mestre de Carn Madun. A sua volta uma grande bancada de madeira (também desaparecida) servia de assento para as dezenas de peregrinos que vinham à cidadela em busca de respostas para suas dúvidas. Não foi preciso reler o pergaminho que Arnal trazia, cuidadosamente protegido, em um tubo de marfim atado ao seu cinturão. Após tantos anos de busca os dois já sabiam o caminho a ser percorrido agora.

Calantir caminhou até uma junção entre as paredes a sua frente. Um afresco cobria toda a sua extensão revelando uma paisagem repleta de árvores na qual figuras delicadas vagavam por uma alameda de carvalhos. O guerreiro tocou a parede e deslizou sua mão por todo o afresco até que ela repousou sobre uma pequena saliência na rocha. Calantir forçou o ponto e, imediatamente, a parede a sua frente cedeu e girou em ângulo oposto ao homem deixando à vista uma passagem estreita que, sob a iluminação da tocha, revelava uma escadaria íngreme que se perdia nas profundezas do santuário. Os dois se olharam e a tensão estava estampada em ambos os rostos.

Calantir seguiu na frente com Arnal logo atrás. Enquanto desciam os degraus Arnal tocou as paredes como se quisesse sentir a vida impregnada nos grandes blocos de pedra. Havia umidade nas paredes e, em alguns pontos, colônias de fungos púrpuras se alastravam formando uma visão fantástica.

- Este local possui uma força muito grande - sussurrou - espero que tenha me preparado suficientemente para este momento.

Pouco tempo após começarem a descida Arnal estancou de súbito e, pedindo silêncio a Calantir, pôs-se a ouvir com atenção. Alguns ruídos vinham do alto da escadaria e agora o próprio Calantir também se punha a escutar o que julgou ser um som de vozes. Alguns segundos se passaram antes que os dois identificassem as supostas vozes como o rude dialeto dos orcs.

Permaneceram estáticos, quietos, até ouvirem, desta vez de forma bem nítida, uma exclamação de surpresa que culminou com um som de botas se chocando contra o chão em acelerada marcha. - Descobriram a passagem, deixei-a aberta! - gritou Arnal. Os dois começaram a descer a escadaria rapidamente enquanto seus perseguidores praguejavam em um rosnar que, rebatido naquelas pedras esquecidas, ganhava uma potência temerária. A longa escada em espiral descia para as profundezas do santuário em um enroscar que parecia não ter fim e, quanto mais desciam, mas sentiam próximas as vozes dos inimigos. De repente, como por encanto, a escadaria desapareceu dando lugar a um pequeno corredor cujas argolas nas paredes sustentavam tochas fossilizadas. No final do corredor, uma grande porta de aço isolava o aposento seguinte.

- Rápido, a chave! - gritou Calantir enquanto os orcs se aproximavam rapidamente.
Arnal puxou de sua algibeira a chave de aço que havia retirado do compartimento secreto do porão.

Nas mãos do elfo a chave pareceu resplandecer e, rapidamente, foi passada para as mãos de Calantir. Enquanto o homem encaixava a chave na fechadura da grande porta de aço, Arnal preparava seu arco a espera dos inimigos que deveriam surgir da escadaria há qualquer momento.

- Parece estar emperrada! - gritou Calantir - Abra maldita! Abra!

Neste momento, o primeiro orc surgiu na escuridão. Era um tipo especialmente forte e trajava uma cota de malha que descia até os seus joelhos. Arnal, que já o esperava com a corda do arco retesada, disparou sua seta que com um ruído sibilante atravessou o corredor como um raio para interromper seu trajeto na garganta do inimigo. O corpo rolou os últimos degraus até cair na entrada do corredor. Arnal já preparava outra seta quando ouviu Calantir gritar.

- Consegui! Venha Arnal, a porta está aberta!

Arnal já se virava quando dois orcs surgiram da escadaria. Calantir estava com a metade de seu corpo dentro do corredor seguinte e Arnal já ia disparar outra seta quando um dos inimigos arremessou sua lança. Num rápido movimento de corpo o elfo desviou-se da arma que se espatifou contra a porta de aço, enquanto Calantir, quase agachado, penetrava na segurança do corredor isolado. O homem puxou com força a porta e, assim que o elfo entrou, girou a chave rapidamente trancando os inimigos no corredor. No mesmo instante os dois aventureiros ouviram as batidas dos punhos dos orcs contra a porta de aço. A fúria dos inimigos seria contida por aquela barreira por algum tempo.

Assim que se viram em segurança os dois desabaram no chão ofegantes e tensos. Logo, após alguns segundos, se deram conta do estranho brilho que era emanado do fundo do novo corredor no qual ingressaram. Há pouco mais de dez metros de distância, um belíssimo portal de prata, coberto de símbolos antigos, emitia uma luminosidade ofuscante que iluminava e revelava, aos olhos perplexos dos viajantes, os detalhes daquele pequeno corredor onde apenas um seleto grupo de sacerdotes já havia pisado. As paredes eram de um tipo de pedra diferente do restante da construção. Eram grandes blocos lisos, de tonalidade levemente esverdeada. Toda a superfície das paredes, inclusive o teto, era coberta de inscrições gravadas em baixo relevo. Mas, apesar da imponência dos detalhes, o que mais impressionava era o portal de prata. Nem mesmo o barulho provocado pelos golpes dos orcs contra a porta de aço pode quebrar o encanto que o portal de prata provocava. Foram se aproximando com reverência e observaram a aura de magia e força que era despendida pelo Portal de Celencar. Tinham a nítida impressão de que os símbolos gravados na fachada de prata moviam-se num redemoinho de formas nebulosas que mudavam sua configuração a cada segundo. A impressão era de que o portal não era construído em material sólido, mas sim em um material volátil, mágico! Hipnotizados defronte ao portal sentiram uma paz avassaladora a dominar-lhes os sentidos. Permaneceram como que encantados pela força mística que emanava quando um forte estrondo fez-se ouvir as suas costas. O trabalho dos orcs havia recomeçado com mais intensidade e, ao que parecia, eles haviam arranjado algum tipo de aríete para derrubar a porta.

Arnal olhou para Calantir e disse - É chegado o momento! Tenho de ser rápido agora.

O elfo pendurou seu arco nas costas e, concentrando-se, levantou os braços acima de sua cabeça proferindo, em alto tom, um longo encanto em antigo dialeto. Enquanto sua voz era emitida, um longínquo tremor, vindo de lugares mais profundos do que a imaginação dos homens pode supor começou a se fazer sentir, tornando-se mais forte à medida que Arnal proferia sua conjuração.

Enquanto seus lábios se moviam os orcs avançavam em seu trabalho. A porta, cujas dobradiças haviam se enfraquecido com o tempo, já cedia em alguns pontos de sua junção com a parede. Calantir preparava-se para o combate quando pequenos pedaços de pedra e areia começaram a cair do teto. Calantir virou-se para Arnal e já ia dizer que se apressasse quando reparou que, do corpo do elfo, começava a fluir um luz azulada que rapidamente o cobriu como uma membrana, concentrada mais intensamente em suas mãos. Arnal estava entregue ao transe e sua voz soava profunda, igualando-se com a fúria do tempo que se manifestava a sua volta sob a forma de um violento tremor que se acentuava cada vez mais. Calantir já havia lançado seu corpo contra a porta de aço que ameaçava ceder a qualquer momento. Um dos orcs havia introduzido seu braço pela fresta que surgia, quando Arnal de súbito cessou sua conjuração. Calantir olhou-o e partiu em sua direção quando um tremor, que se confundiu com o tremor de terra que sacudia o templo, dominou o corpo iluminado do elfo, liberando uma fulgurante luz branca que cegou Calantir e os orcs, que acabavam de derrubar o portão de aço e preparavam-se para arremessar suas lanças contra os dois aventureiros.

Num segundo que pareceu estender-se por longos minutos, a luz concentrada nas mãos de Arnal explodiu como um raio e foi disparada de encontro ao portal de prata fundindo o corpo do Grifo ao nebuloso redemoinho que havia se formado no portal. Calantir sentiu-se atraído como um imã em direção a massa luminosa na qual havia se transformado o corpo do amigo, enquanto os orcs, cegos pela luminosidade, entravam em pânico com as pedras que agora desabavam de todos os lugares numa fúria destruidora. Calantir aproximou-se de Arnal e tocou seu corpo. No mesmo instante a membrana luminosa estende-se para seu corpo e os dois foram sugados para o portal e jogados no vácuo do tempo, no olho do furacão, num caminho sem fim aprisionado na magia dos antigos mestres enquanto, as suas costas, no momento final, o mundo desabava sob o peso de Carn Madun.
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