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Contos-->Ela Sempre Volta -- 27/09/2009 - 20:17 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Na calada da noite, eu atiro a guimba do cigarro ao mar que em suaves movimentos recusa mais um pedaço de lixo da humanidade, como as garrafas que enchem o cais e bóiam desobedientes ao vento e ao léu. Só olho para o céu e está claro, quase sem nuvens. Posso ver além que luzes delineiam um horizonte flutuante e fugidio, talvez os barcos de pesca que animavam minha infância doce e curta, talvez as marcações para que os grandes navios não encalhem no estreito canal que leva ao porto. Os barcos têm de ser guiados pelos rebocadores que os levam ao ancoradouro e muitos permanecem na fila, esperando o momento de atracarem ou de desembarcar suas cargas que enchem de containeres as ruas de todo o bairro que cerca os arredores. Lá vivem os antigos pescadores em casas que definham, os marujos que suados voltam de grandes viagens no sumidouro do mundo; vive uma fauna de mulheres de tipos exóticos sempre perfumadas esperando seus antigos donos e novos clientes. Vive uma corja que se esconde e sai à noite enquanto eu miro o espelho flutuante que é este mar a refletir o meu rosto e as luzes de várias cores do barco iluminado que chegou com turistas europeus. Posso ouvir a algaravia, os pequenos excitados com a possibilidade de descerem à terra depois de dias de prisão forçada no navio de cruzeiro e as mocinhas empenhadas em mostrarem predicados aos nossos famosos machos latinos, os velhos esperançosos de reencontrarem os antigos parentes perdidos.

Passa o jorro do farol, a cena toda iluminada pelo lampejo azul da lâmpada renovada, uma espécie de flash que fixa em minha retina a sombra do grande barco e o nome, pintado em garrafais letras no casco, Andrea Del Mare. Nome de mulher? Homem? Conheço Andréias, Andreas. A última que conheci foi bem aqui, onde meus pés teimam em permanecer grudados como se uma espécie de cola os fixasse ali ou como se um amálgama de águas vivas os prendesse em suas cintilantes fosforescências (mais uma lembrança da infância, as redes iluminadas pelas águas-vivas, os polvos e lulas e os peixes que iam direto para a mesa dos felizardos que vinham enroscados com as grossas cordas do arrastão, os gritos roucos do dono da armadilha imensa que pegava toda uma praia); É o bastante para eu acender outro cigarro, enchendo o peito da acre fumaça e sentindo a nicotina que amarela minhas unhas penetrar pelos vasos, pela rede de alvéolos e pelos lábios duros de tanto esperar.

Onze da noite.

De onde vem tanta gente? Como eles povoam este mundo onde se perdeu minha Andréia? Como ela estará depois de tantas promessas não cumpridas? Como navegará agora minha amada que se foi assim, de supetão, quando lhe deu na telha? Sorvo a fumaça que azul se confunde com o arroxeado do céu e se mistura aos miasmas do ar pesado e quase fosco das paragens do atracadouro, um cheiro meio que de mijo, meio que de suor, talvez de um galpão abandonado. Um lugar cheio de ratos e vida, água podre e golfinhos que teimam em pedir comida a nós, os reis da terra firme. Nós, estreitos e sós, que ousamos acreditar nos cantos de tantas sereias, nos iludimos tanto com tantas Andréias Del Mare.

Onze da noite e tudo não passa de um momento, de um segundo, como o flash do farol que volta a iluminar os cantos do mundo com seu clarão de segurança. O suave barulho das águas a baterem chegando em ondas vindas não se sabe de onde, talvez tenham bordejado a África, quiçá passando por Canários, Cabo Verde e Açores ou o próprio estreito de Gibraltar e venham grudadas ao casco cheio de conchas e parasitas que os turistas não vêem porque mergulhado no fundo; isto ninguém vê, a vida brota nos meandros mais escuros e estreitos, nas quilhas mais improváveis pula um lindo Delfim, mas este é um peixe das profundas águas que só os pescadores pacientes sabem pescar, não os amadores com suas pequenas varas que teimam em enrolar-se umas às outras na beirada da praia.

Suspiro e sorvo o ar da madrugada que se insinua, são onze da noite, o farol passa de novo seu arrastão e colhe os olhares esgazeados das damas noturnas, dos cansados marujos, das velhinhas que descem as escadas rumo à terra firme, amparadas pelos netos que gritam infames piadas e pelos carregadores de malas—não sei quantas descem ou para que sirvam.

Gosto de imaginar o que farão em terra, quais hotéis encherão, quantos dormirão em tantos quartos; gosto de ver as moças passando carregando impossíveis sombrinhas (faz muito sol nestes trópicos) e seus namoradinhos recém-adquiridos na viagem e que logo se diluirão pelas praias ou ruas da cidade que eu vejo daqui, os jardins iluminados a perder de vista; quantos se esconderão entre as árvores para roubarem beijos à amada como eu fiz com minha dama? Quantos durarão mais do que um verão ou sucumbirão às mais doces tentações que existem de diversas formas e alturas esperando qual caranguejos nas suas tocas e guarda-sóis?

Onze da noite e tudo não passa de um clarão, um arrastar de nuvens cheias de águas vivas; a vida não passa de um lampejo qual um farol que teimamos em seguir e que guia nossos destinos até o fim, até o final de nossos tempos que não obedece ao tempo marcado e sim a um Tempo mais que perfeito, no batimento descompassado de nossos corações ao ver os olhos da menina, no suave despertar dos sentidos pelo beijo que se segue infinito e depois, com um clarão, nos faz voltar ao frio ar que se espraia trazendo as brisas marinhas às minhas narinas, junto com os últimos farrapos da orquestra que ainda toca a bordo do grande barco.

Eu gostaria de estar lá dentro, talvez a achar a minha querida enrodilhada com um capitão qualquer, bêbada de alegria; talvez amasiada com um estrangeiro de olhos distantes a lhe prometer mundos e fundos, iludindo e confundindo a cabeça cheia de cachos que pousou um dia em meus ombros. Ah, sim, isso mesmo: Cachos aloirados. Eu queria ouvir os acordes da canção e voltar os olhos para ela e ela perceber num instante, num lampejo de um flash de alguma máquina fotográfica—ou seria o farol distante a sinalizar o Tempo certo—que eu não merecia estar aqui à beira, os lábios ressequidos, as mãos vazias, esperando que ela voltasse assim, meio de surpresa, meio que pedindo desculpas.

Aí eu dançaria com ela como estou dançando sozinho na beira do porto, cigarro na boca, a guimba quase queimando o filtro, uma valsa inconseqüente e linda e os olhos dela brilhariam e diriam:

--Eu te amo.

Beberíamos champanhe, vodca, comeríamos a lula que ela adorava; esparramaríamos nossa louça no quarto, misturaríamos nossos corpos aos sons dos motores do navio que nos levaria de volta ao Estreito, desembarcaríamos em Madagascar e gozaríamos feito loucos.
Gosto de pensar no que seria se não fosse sua doce ausência, se eu não fumasse tanto, se a água não fosse tão viscosa e se eu tivesse mais rumo no mundo.

Desce uma moça vistosa desacompanhada. Posso ver os seus cabelos, posso adivinhar seu olhar; é o local que sempre combinamos.

Gosto de pensar assim.

Ela sempre volta no fim.
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