CHEGAR AOS OITENTA
Délcio Vieira Salomon
volto pelos caminhos
à procura de mim
Drummond – (Solilóquio da renúncia)
Aos oitenta
não tenho a cara lúdica dos oito
nem a sisuda dos quarenta.
Mas honestamente confesso:
- sou o mesmo.
Este o mistério da vida
que só a dialética
consegue explicar.
Cresci, amadureci, envelheci.
Mas dentro de mim
há a mesma criança
com muito cuidado conservada.
Sei: não sou mais aquele moleque
da Rua Diamantina
da década de trinta
em Beagá.
Sinto, porém,
que a criança que fui,
ainda que superada,
ainda que apagada,
jamais anulada
existe em meu modo de ser.
Olhos vivos
sempre pra frente
na inquietude
que não lhe concede
olhar o passado
para se lamentar
e, qual Terezinha de Lisieux
(por coincidência
nascida no mesmo dia
em que vim ao mundo),
quer tudo abraçar.
Sim, esta criança
ainda permanece em mim
a despertar no velho
lições de esperança.
O tempo não permite
reduzir o que vivi
ao nada.
Antes pelo contrário
aquele tempo
é eterno presente
em contínua renovação.
Este o legado
que aos oitenta
a vida me traz.
Tal como César
cruzei meu Rubicão particular,
para deixar aos filhos
e aos netos
a mesma mensagem
da travessia:
Vim, vi e venci.
Vim, porque aqui cheguei
com o mesmo entusiasmo
da partida.
Vi, porque a vida me concedeu
enxergar diferente o mundo
e tornar a visão da experiência
em sabedoria.
Afinal não posso me queixar.
Tudo de bom a própria vida me proporcionou.
E venci, porque não me abateram
as perdas e os infortúnios,
justo por ver constantemente
diante de mim
a ditosa imagem de todos
a quem muito quero.
Particularmente daquela
que o amor
tornou a mãe
de meus filhos,
e, sobretudo,
desta mulher
que hoje acendradamente
amo.
Jamais desatei os laços
a me prender às pessoas
que circulavam no comércio afetivo
da constelação familiar.
Mãe, sempre atenta e generosa,
como não te lembrar?
Pai, o destino quis que morresses
antes de te conhecer.
Mesmo assim
em minhas lembranças
vivo sempre estás.
Irmãos, avós, tios, sobrinhos,
- muitos já foram
poucos ainda restam -
a todos os guardo
no sacrário do coração.
Sem esquecer os amigos
aos quais tanto devo ...
e quanto!
Chegar aos oitenta
sei, a poucos é dado.
E se hoje tenho
este privilégio
merece ser comemorado.
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