Todo ser humano necessita contar vantagens para amaciar o seu ego, em todas as atividades profissionais ou esportivas.
Era comum, nas nossas cirurgias tranqüilas, sem anormalidades, na sua fase final, conversarmos sobre política, economia e, principalmente, futebol.
O alvo principal das nossas gozações era sempre o mesmo anestesista, por ser uma pessoa séria e que sempre reclamava da vida.
Uma das histórias preferidas, contada com ironia por mim, coadjuvado pelo auxiliar e que deixava o anestesista louco de raiva, era a do “menino de Piracicaba”.
O anestesista, não podendo sair da sala, era obrigado a escutar a narrativa dezenas de vezes. A única coisa que podia fazer era nos insultar quando já tenso e irritado.
Assim, eu começava:
“Doutor João, quando eu tinha 23 anos, cursando o terceiro ano de Medicina, eu e meus colegas jogávamos futebol na praia da Boa-Viagem, em Niterói, sempre à tarde, quando as aulas já haviam terminado. Após uma dessas peladas, um rapaz da minha idade, que eu nunca tinha visto, aproximou-se e perguntou:
‘Você morou em Piracicaba?’.
‘Sim’, respondi. ‘Quando tinha sete anos de idade; por quê?’.
Aí, ele se explicou:
‘Eu estudo Odontologia aqui em Niterói, e ao ver a sua maneira de jogar e driblar, veio em minha mente a imagem de um garoto que jogava num pequeno campo próximo à estação da Paulista, em Piracicaba. Era um craque, um verdadeiro artista da bola’.
Então, modestamente, falei:
‘Realmente eu jogava diariamente nesse campinho’.
“Viu, João, a minha satisfação foi aquele rapaz reconhecer-me após tanto tempo, pela minha maneira de jogar”. E continuei na gozação: “Hoje ele deve ser um dentista famoso e quando vê um grande craque jogando deve lembrar-se daquele gênio da bola que tanto o impressionou em sua infância”.
Ao terminar a história, eu sempre levantava a voz em direção ao anestesista e dizia para o auxiliar, meu cúmplice:
“Craque nasce feito, depois é só mostrar o seu grande futebol”.