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Contos-->A Bela Pálida -- 06/08/2009 - 22:41 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ela em frente à janela ampla de sua casa corria o pente nos cabelos difusamente desarrumados pela noite, sem que propriamente tivesse descansado alguma coisa. Não que não quisesse, porque não conseguiria dormir mesmo depois do que soubera algumas horas atrás, lendo a carta que recebera de longe com as últimas palavras que ela gostaria de ler. Elas vinham escritas em fina linguagem, com palavras escolhidas a dedo para não machucá-la (como se isso fosse possível) e ela lera incrédula as figuras de linguagem, o rebuscamento adequado, o decoro contido sem que a verdade estampada pudesse ser melhor que o conteúdo formal da mensagem.

Sentira muita raiva dele que se escondera em tons e sub-tons, esmero de escrita sem que deixasse de ser acovardado;disso ela sabia bem, que ele jamais assumiria uma postura que não fosse esta e nem poderia deixar de ser pela sua situação mas pelo menos esperava que fosse mais direto, menos comedido, menos reservado e pelo menos uma vez o amaldiçoou antes de esfrangalhar o manuscrito em mil pedaços. Podia sentir as lágrimas que escorriam pelos cantos dos olhos como mil pedaços de vidro em pó amalgamados em dor e em fel. Ela podia rememorar, vendo seu reflexo nos vidros da extensa janela, o tremor que a acometera quando finalmente admitiu para si mesma que o odiava agora mais do qua a tudo no mundo.

Exatamente neste segundo, ela se mirava no reflexo pálido e se perguntava como tudo pudera mudar de maneira tão abrupta sem aviso prévio, sem que ela pudesse controlar nada nem notar as sutis diferenças que marcam a transição da plena paixão para a pura indiferença. Agora isso já não importava pois o que a deixava aflita era como se deixara enganar tão facilmente por palavras que voltavam neste momento como doces socos em seu estômago, como jabs de um pugilista delicado ou suaves facadas em suas costas! Ninguém em sã consciência conseguria dormir e ela que se jactava de ter excelentes noites conheceu a primeira de muitas outras em que se pegaria pensando se valeria a pena novamente se envolver de maneira tão penosa com outros semelhantes seres desprezíveis. Ela que se gabava de sua independência nunca se sentira tão só e tamanha era a sensação de abandono e impotência que por dias a fio nada comeu e não se importava com nada mais até que um telefonema irritante a despertou do estupor que a tomara. Era alguém que procurava trabalho e oferecia seus serviços como pajem ou acompanhante numa voz jovem e até esganiçada para quem queria ter um emprego onde se exigia antes de tudo extrema paciência e dedicação. Quase fraquejou e pediu ajuda, o que certamente não era seu perfil. Dispensou a jovem com um estalar de dedos no telefone e ouviu um sonoro “obrigado “ antes de desligar. Educação, esmero, polidez, respeito, tudo que diz respeito aos outros e a si mesma, sempre contida, sem alardes: Como tinha vontade de vestir sua melhor roupa, se maquiar de maneira exagerada e ir à rua central da cidade onde a cortejariam certamente os mais brutos e rudes homens e ela em grande estilo de sóbria dama da noite o desprezaria quando chegasse a sua vez... Suas mãos acariciavam os lençóis recém-trocados na esperança de que aquele que escrevia tão bem e se portava como deveras um cavalheiro pudesse finalmente trocar sua casa por aquela mais ampla e confortável que era a sua moradia mas não, ele se decidira pelo previsível, evitara a tempestade e seguira o caminho mais fácil.
Nada que fizesse agora poderia remediar a situação imposta. Como em um jogo de xadrez, ele dera um lance e cabia a ela a resposta agora, embora soubesse de antemão que já houvesse entregado a rainha ao adversário, sentindo pena de si mesma pela fragorosa derrota. Como no jogo de tabuleiro, eles dois haviam trocado as peças mais fáceis ao começarem, lá pelo meio andaram trocando as torres e ao final, ele havia abandonado o castelo e ela haveria de sofrer a solidão dos aflitos. A racionalidade nestas horas nos abandona, pensava ela, porque pouco importa aonde se chegou, o que se colhe é amargo. Conhecer um desfecho assim é sempre doloroso e ela sabia muito bem que não haveria volta, pelo menos dela, jamais, mesmo que ele se arrastasse feito um ferido, mesmo que implorasse jamais concederia o perdão.

Lufadas de vento sacudiam a alta janela, estremecendo as venezianas e fazendo ruídos sibilantes nos cantos mal vedados. Bem lhe dissera o antigo proprietário que algumas janelas não estavam devidamente vedadas e se fazia necessário algum reparo, mas para ela o vento que vinha de fora reforçava o triste sentimento que brotava de dentro.

Então ligara para sua mãe que ao notar as inflexões de sua menina, acorrera à casa que ela comprara com o dinheiro da herança da tia que a declarara única herdeira. Ela se vira, de uma hora para outra, administrando bens e um razoável montante de dinheiro que permitia que ela vivesse em paz, sem depender de ninguém, pelo menos por duas gerações, tanto assim que comprara uma casa para sua mãe cheia de jardins, onde ela vivia com o pai enfermo. A mãe sempre a consolava e alertava para os possíveis interesseiros de plantão que sempre apareciam nestas horas. Quando menos se espera, brota a erva daninha, gostava de repetir sua mãe e ela esperta acolhia os conselhos da velha senhora, sábia e dona de um faro que era proporcional à sua idade.

--Filha, não fique assim!
--Como não posso ficar assim, minha mãe? Como se ele me levou parte de minha alma?
--Eu sempre digo...
--Não, mamãe, ele definitivamente não era aproveitador. Só não sabia que ele era covarde!
--Coloque-se na situação dele!
--Como assim?
--O que falariam dele? Um homem, certamente mais velho que você, meio mal arrumado para o que aparenta ter, de repente sai de sua casa e vai viver o resto dos dias com uma moça que dele não depende! Isso não está nos manuais.
--Não faz sentido! A única atitude que teria de tomar...
--Não cobre dele o que você jamais teria feito, se é que conheço bem a minha filha!
--Está bem. Acho que o pressionei um pouco...
--Assim você perderá mais do que pensa.
--Mas mamãe! Eu o quero perto de mim!
--Não preciso lhe lembrar que sua tia só foi generosa quando percebeu que perderia você; aí resolveu que seria sua herdeira!
--Você nunca me deixa esquecer isto! Como poderia?
--Apenas pense, espere, escute seu coração. Não o entregue a qualquer um, como ela o fez! Ela era minha irmã, acabou sozinha e rica. Não a conheceu como eu a conheci. Ela adorava ver você e nos últimos dias...

Nos últimos dias abandonou-se ao livre pensamento; já não podia se levantar sem ajuda de modo que tudo o que fazia dependia de sua fiel governanta. Ela sabia que partiria em breve deste mundo, sem nenhuma misericórdia divina, sem ar e sem poder fugir. Na realidade nenhum de nós fugirá para lugar algum, o fim sempre se aproxima mais e mais e ela o sentia no pescoço, às suas costas como uma presença palpável e próxima. Queria apenas descansar, apenas dormir um pouco e nos poucos momentos em que dormia tinha sonhos coloridos onde se via com sua sobrinha sempre presente, mais do que uma filha, talvez a sua verdadeira herdeira, aquela que gostaria de ter tido como filha—Como invejava sua irmã, doce e meiga, mas limitada, pouco atrevida e tão dependente de seu marido mesquinho! Era hora de ela chamar seu advogado, companheiro de tantas horas e anos, para fazer o acerto que dela se esperava. Faria justiça não porque gostasse de sua irmã, mas porque adorava a menina de cabelos encaracolados e olhos claros que poderia ter saído dela. Poderia, mas não foi, nunca foi sua filha e por isso invejava sua irmã até nesses momentos finais. O que fez a seguir colocou a linda menina definitivamente no caminho da fortuna; nunca mais dependeria de ninguém como sua mãe ou outras tantas submissas que ela conhecia. Se precisasse poderia escolher, no entanto ela sabia que isto talvez lhe trouxesse mais dificuldades do que ela supunha encontrar...
Ela conhecia a história de sua tia, a mais nova das cinco irmãs que ousara escolher o caminho da independência, da ousadia. Não esperava casar-se e a todos dizia que seria a última coisa que faria:

--São vis os homens. Quando não estão nos traindo, estão pensando em maneiras de nos enganar!

Como ela estava certa, sua tia parecia uma pessoa mais interessante do que sua mãe, rica em pensamentos, dona de seu destino e tão solitária, tão frágil... Como ela agora. Ao contrário de sua tia ela não admitia ter alguém permanentemente em sua casa, como uma governanta ou algo assim; preferia liberar as empregadas ao final da tarde para que pudessem espairecer e ficava sozinha á noite. Isso não a assustava de forma alguma.

--Quer que lhe prepare um lanche, querida?
--Aceito, mãe.
--Você está pálida. Sei que está sofrendo agora.

O azul do céu quase que a invadia em lampejos e se via com a tia no balanço pendurado à árvore que gemia com o peso das duas, ela rindo e seus cabelos ao vento, como lindos pedaços de sol acobreados sobre uma pele tão branca que se dizia que seria quase capaz de ser transparente se quisesse. Diziam seus amigos de escola que ela era feita de leite, outros diziam que tinha os cabelos de ouro e sua tia adorável dizia que seus olhos eram brilhantes, ouvia-a rir no doce balançar sob o sol da tarde, quando ela a vinha buscar para um longo passeio à sombra do arvoredo que se espalhava na rua de sua propriedade. Sua mãe também tinha ciúmes porque achava que sua filha se estragaria com os mimos de sua irmã, o que se provou errado com o passar do tempo que a tornou mais e mais inteligente e bela. As manchas verdes que via iam e vinham, suas mechas se confundiam com as nuvens batidas pelo poente e as risadas emudeciam o passaredo. A Bela Pálida. Era assim que sonhava sua tia, enfermiça, triste com a doença que a consumia; seus olhos viam a menina como uma suave continuação sua que passara pela irmã como um acidente. Daí as duas se darem tão bem, talvez aquela coisa de almas gêmeas, separadas por um lapso de tempo, era assim que pensava a mulher que se via balançando sozinha à beira de um penhasco, a luz dos olhos da sobrinha a salpicar de azul os seus dias mais leves.

--Precisa de algo, tia?
--Apenas fique comigo, assim, perto. Nada mais!

A sua mão fina havia sido a de uma pianista sem ser virtuose. Enchia de notas musicais a casa que se preparava para receber as visitas nos tempos idos, quando ela era dona de si e não esse trapo. Recordava de suas ordens, preparando aqui uma mesa, adornando os guardanapos e os talheres para mais um jantar regado a música e literatura, coisa que sua sobrinha sorvia com avidez, tamanha a sede de sabedoria e esperteza.

--Conte uma história para mim, Bela Pálida?
--Era uma vez uma mulher linda como a lua, a pele alva como um reflexo num lago de noite calma, a olhar de sua janela ao longe, sonhando com o namorado que se fora e a deixara só com ela mesma...

Teria ela notado inflexões na voz da sobrinha ou a história havia se realizado? Como poderia ser se assim ela se via, à beira de uma janela, acometida de uma raiva que supusera esquecida? Como ele pudera fazer isto com ela que se entregara com tanto amor e dedicação? Ah, mechas lindas de luz a encher o quarto e a sala, ah perfume que se basta a si mesmo, a mistura de odores característica de uma casa habitada por alguém doente, ah calor que a abandona dia a dia e olhando-a contar a história eis que pousa em sua cabeça aloirada uma coroa que flutuava assim como que perdida e foi assim que ela fechou os olhos para dormir e se foi para sempre.
Antes de dormir, a mãe no quarto de hóspedes, fechou as cortinas que antes a lembravam da dor da separação.

Um círculo havia se fechado.
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