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cronicas-->CARTAS ou Elogio da Vadiagem -- 08/01/2000 - 01:11 (José Belizário Nunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Novembro, 1999 - Este mês, chegou carta do meu país, o Nordeste. Antes elas vinham pelo correio, ou em mãos, trazidas por pessoas de confiança, como as letras de càmbio e as cartas de crédito no fim da Idade Média. Agora, vêm pela Internet, esse aparato fantástico de comunicação que multiplicou por um milhão, ou mais, a fúria epistolar do meu povo.

Todas as cartas me comovem, menos as de baralho e as de cobrança. As de baralho, porque foram feitas para o blefe e só dizem a mentira; as de cobrança, porque foram criadas para o martírio e só dizem a verdade.

O fato é que desde o dia antigo em que, em algum ponto da rodovia que vai de Salgueiro a Missão Velha, o apóstolo Paulo teve o insight famoso, envolveu-se no episódio da conversão, selou a correspondência e despachou duas epístolas aos Coríntios, tudo se faz por carta no Nordeste: fecham-se negócios, as pessoas namoram e ficam noivas, casam-se e descasam-se, festejam o amigo e xingam o inimigo, como é justo e natural.

Diz-se, com um elevado grau de cinismo, que quem inventou o cinto da castidade inventou também o abridor de latas, e quem inventou a carta criou, no mesmo instante, a violação de correspondência. Mas, nós, os de lá, não tememos esse tipo de coisa. Tudo, em nós, é magro e transparente, os canalhas e os heróis, os sanchos e os quixotes, de forma que, mesmo espiados, ninguém nos vê, porque nada temos de extraordinário, nada a esconder, nada nos corações ou nas mentes que possa provocar histeria, inveja ou ilusão de ótica.

Assim, as cartas dos meus parentes só trazem notícias mansas. Exceto quando ocorre uma grande tragédia, dessas que ultrapassam todos os limites da razão e do comedimento, e que é preciso relatar. É o caso, recente, da filha de um gerente de banco, moça já feita porém um tanto desastrada, que achou o prazer de pecar e "perdeu-se" no carnaval fora-de-época. Ou o de uma tia remanescente, velhíssima, centenária até, que tentou subir no telhado de casa para salvar seu papagaio de papel, caiu da escada e quebrou a alcatra. Ora, imaginem se é possível um cristão cair de uma escada e quebrar a alcatra! Logo essa parte do corpo, que não é um osso, senão um músculo, por sinal muito bom para fazer churrasco e carne-de-sol.

De qualquer modo, é muito perigoso subir em escadas, principalmente para as pessoas velhas, cujo equilíbrio é por natureza instável. A escada não tem, obviamente, a malícia e a obstinação humanas, porém imita a pessoa-gente em muitas coisas: igual ao homem, a escada tem dois pés, dois braços, as costelas simétricas e é capaz de trair. Pior que o homem, os pés da escada não caminham, os braços não abraçam, nem se agitam para dar adeus. Na escada, a segurança da aparente posição de sentido é só aparência mesmo, estratagema para engabelar os incautos.

A última carta dos meus parentes, essa de novembro, fala bastante das peripécias de um primo velho, Abdias Nunes Tavares, personalidade admirável, de grande importància e saber. Fixemo-nos um pouco nessa figura. Tão esperto é esse camarada (smart, ele se diz) que acaba de chegar aos oitenta anos de idade, de bem com a vida e com ele próprio, sem trabalhar um dia sequer. Foi talvez pensando que um dia ele viesse a existir que o mulato anarquista Paul Lafargue, genro de Karl Marx, escreveu o folheto clássico onde teoriza sobre o que deveria ser o homem moderno e feliz, Direito à Preguiça.

O primo Abdias, com esse nome de profeta do Velho Testamento, diz que não trabalha com medo de acidentar-se. Sempre atento às estatísticas, em que confia bastante, alega que só no ano passado, apesar dos esforços do governo e da cautela dos empresários, ocorreram 3 milhões de acidentes de trabalho no País e quase nenhum acidente de praia. Ninguém morreu ou se feriu jogando sinuca, comendo uma feijoada no sábado, tocando violão ou cantando Cabelos Cor de Prata, de Rogaciano Leite e Sílvio Caldas. "Trabalhar é um perigo", adverte. "A palavra trabalho", disse-me ele, quando o vi pela última vez, redigindo, em latim, as suas memórias de jogador, Alea jacta est, "vem de tripalium, uma lança de três bicos que os patrícios romanos usavam para martirizar os escravos. Está associada, portanto, e desde a antiguidade, a essa noção espúria de que a salvação do homem só pode ser alcançada pela via do suplício". E tem mais: quem trabalha geralmente acorda cedo, o que é anti-higiênico e anti-social. Está cientificamente comprovado que o sono matinal, entre as sete e as nove da madrugada, é o que faz maior bem à pessoa, acalma o espírito, recarrega as energias do corpo e fortalece o caráter. Quem se levanta cedo da cama está sujeito a levar uma rajada de vento, ficar troncho de uma banda, apanhar uma coriza, contrair meningite.

Meu primo, de vez em quando, tem ataques de desalento e chega a admitir que de algum modo o trabalho enobrece. Mas, logo se recompõe e contrargumenta que vive muito melhor quando toma posição contra o trabalho e a favor do capital bem distribuído. "Para que serve o trabalho?", perguntou-me. "Para ficar rico", respondi. "E para que serve ficar rico?", indagou outra vez. "Para ser vadio", rebati. "Então", retornou ele, matando a pau a solidez das minhas contestações, "eu posso queimar etapas, tornar-me o que já sou, vadio, sem passar pelos desconfortos do trabalho e da riqueza".

O ócio absoluto é impossível, só os mortos conseguem atingi-lo. Na verdade, o primo Abdias, em vez da quietude completa, passa os dias entregue a atividades mais produtivas: lê tratados de estatística e probabilidade, pratica jogos de azar e ganha apostas bizarras. O vício do jogo foi adquirido na escola, através do tal hábito das estatísticas. De fato, 99% dos exercícios didáticos de estatística são perniciosos, na medida em que estão sempre associados à retirada de bolas de urnas, extração aleatória de cartas de baralho e ao lançamento de dados. A estatística é pois uma disciplina do demónio, filha do vício e não da virtude. Tudo indica que o berço da estatística foi a mesa de um cassino. Seja como for, meu primo velho não leva a sério estas considerações éticas; faz seu jogo, alea jacta est, e tudo bem. Uma vez, já na meia idade, ganhou uma aposta incrível: conseguiu morder os dois olhos. Um, o olho direito, era de vidro; foi só retirá-lo da caixa ocular e colocá-lo entre os dentes. Para morder o olho esquerdo, são, ele fez o caminho contrário: fleugmático, removeu a dentadura postiça e... crau!

Esse parente, o profeta Abdias, é uma pessoa por quem tenho grande estima e consideração, mesmo porque o encontro em toda parte e nos lugares mais inusitados: ele é a própria imagem daquele jogador meio romàntico e meio trágico, de mãos tensas e ambiciosas, que Stefan Zweig descreveu em uma das novelas de TRÊS PAIXÕES. Com certeza Stefan Zweig não conheceu pessoalmente o primo velho, mas é possível que tenha conhecido (e romanceado) pelo menos um pedaço da sua história, pois a metade do mundo a conhece, de Santana de Ipanema, em Alagoas, a Cajazeiras do Rolim, na Paraíba.

Em suma, é por tudo isso que me comovo, curto e sofro as cartas do Nordeste. Elas me transportam ao mundo do meu povo, de onde não deveria ter saído. Por equívoco, pensei encontrar longe dele o paraíso, um território onde houvesse apenas duas estações do ano, uma do Descanso e outra do Prazer; uma terra onde as casas fossem feitas de queijo, as portas de goiabada, o leite corresse nos riachos e os cavalos comessem flores. Isto é o que todo migrante procura, mas, por desgraça ou por encanto, não encontra jamais.






José Belizário Nunes, 63, é escritor. Nasceu em Piancó, Paraíba, e vive em Brasília.
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