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Contos-->Inferno Verde -- 01/07/2009 - 14:54 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não é preciso ir muito longe para se encontrar cara a cara com sua própria sorte, perto da margem da floresta que se acerca de nosso acampamento. Estávamos em missão de reconhecimento das cercanias, uma vez que nosso governo decidiu demarcar as terras próximas da fronteira, coisa que, por incrível que pareça, nunca fora feita até então, de modo que aquelas terras eram uma mistura explosiva de tráfico de drogas, grileiros sem limite algum, tribos desconhecidas e muitos animais que habitavam a temida floresta que alguns habitantes do local chamavam de “inferno verde”. O mais conhecido de todo era José, que todos respeitavam pela idade e pelas histórias que contava.

--Inferno Verde, pois sim, é isso mesmo que é.

--Por que, José?

--Conta a lenda...

Era a senha para todos se aproximarem, para ouvir as lendas do local que aquele campônio sabia contar como ninguém. Descendente de índios e brancos expedicionários que haviam se embrenhado por aquelas matas sem nunca mais voltar e sem deixar traço algum de sua presença, ele apimentava suas histórias com as lendas do local e com a mitologia da selva que aprendera desde cedo com seus pais, até ser capturado por uma missão que fora tentar achar vestígios da desaparecida e funesta anterior. Ele acabara sendo vendido como escravo para uns fazendeiros que plantavam arroz na região; pela força que ele tinha, pelos conhecimentos que adquirira do contato com duas civilizações opostas, ele fez sua têmpera e acabou homem livre, tarde demais para constituir uma família e com autoridade suficiente para ser respeitado além de seus domínios.

“Conta a lenda que uma missão foi mandada para cá pela corte de Dom Pedro, na tentativa de fazer contato com as civilizações da floresta, com a intenção de reparar alguma coisa da imensa matança e desterro a que tinham sido submetidas outras tribos pelo país afora, na Colonização que viera certeira com a catequização, a sífilis e a simples dizimação de populações inteiras que se colocassem em seu caminho. A expedição era comandada por um certo Capitão Belfort, homem de duras feições, barba cerrada e olhos duros, sempre apegado às ordens que vinham pelos mensageiros e que demoravam meses a chegar, com as chuvas que derramavam sua bênção, junto com os mosquitos, as trepadeiras que em dias ocultavam os caminhos, as formigas que devoravam a ração do batalhão inteiro e os esturros das onças que rondavam os pobres coitados que sobreviviam para trazer as confusas papeladas da corte real. Era com certo desdém pelo pálido homem que lhe entregava os papéis timbrados que Belfort os recebia e lia primeiramente ávido de novas notícias, para em minutos se tornar amargo e em certo tempo, destilar mau-humor e raiva pelo que acabara de ler.

--Pois sim! Certamente!

--Que foi capitão?

Era seu sobrinho que resolvera acompanhar o bilioso tio em sua expedição definitiva.

--Como, o que foi? Como, o que foi? Arre!

--Diga, capitão.

--A corte não me mandou o estoque de víveres que eu pedi. Certamente acham que podemos comer das comidas que esses pobres comem, não têm mais respeito pelos militares. Não consideram nossa tarefa importante; havemos de dar uma resposta à altura a essa sociedade que despreza nosso poder.

Dizia isso com as mãos crispadas, a direita sobre a espada de aço e a esquerda amassando os papéis de maneira brusca. Era uma cena a que seu sobrinho Thiago se acostumara, não sem certa razão, pois que a reserva de víveres escasseava, com os ataques das imensas formigas que de noite à calada se compraziam das iguarias, cansadas que estavam de comer folhas e lombos de animais mortos pela majestosa mata.

--Alferes!

--Sim, capitão?

O pobre alferes, ainda abatido pela última febre palustre, acorria ao local da tenda sempre atento.

--Teremos de diminuir o consumo de comida. Diga aos mateiros para procurarem mais palmito, confisquem se acharem rações dos nativos e os que resistirem ponha a ferros.

Todos ouviam seus gritos e já sabiam: Racionar comida, mesmo à custa da vida de um e outro, até dos doentes que tiritavam de frio em meio aos delírios do impaludismo. A solução seria deixar alguns deles em povoados não tão próximos ou evitar os traiçoeiros mosquitos, protegendo-se à noite com os mosquiteiros (o que nem sempre se mostrava eficaz, tal a sede com que eles procuravam braços ou tornozelos à mostra.)

José pigarreava um pouco, respirava e tirava um rolo de fumo de corda, cortando com sua faca um pedaço que mascava e outro que picava para fumar mais tarde, quando terminasse a história. Os olhos se fixavam nele; sabia dominar as atenções, era um showman da floresta, um mateiro manhoso, uma inteligência arguta demais para um homem tão rústico e alguns duvidavam de suas origens. Havia alguns que diziam ele ter parte com o demônio da floresta, nunca visto, mas pressentido por muitos quando a chuva era ameaçadora e as águas dos rios saiam de seus leitos, carregando colheitas de meses e reses guardadas a peso de ouro pelos poucos que as tinham. José sempre tinha as suas a salvo, antes mesmo do ronco da chuva chegar. Dizia ele que sabia ler a cor do vento, quando este se tornava cinzento, ele corria e apanhava o que podia de sua horta e guardava em altas árvores, assim como alguns porcos que eram saborosos pratos vivos.

“Roncava o estômago de Thiago e ele não ousava desobedecer ao tio, que ordenara que comessem uma refeição por dia enquanto progrediam em sua missão, pelo menos até os mateiros trazerem o resultado de seu botim. Os soldados cortavam a mata espessa com seus facões, os mateiros que ficaram orientavam a trilha mais certa; Outros colocavam marcas de madeira que não tardariam a ser encobertas pela verdejante cobertura natural das folhagens. Ele via o trabalho com fascinação porém de algumas bocas contritas ouvira o sibilo da insatisfação, da descrença e da discórdia. Eles não sabiam de sua posição, ele se misturara aos outros como soldado por ordem do próprio tio que desejava esmagar qualquer levante antes que se tornasse sequer uma possibilidade.

--Que é isso que fazemos? Mil morcegos chiam de noite, formigas devoram nossa comida, mosquitos nos enchem de febre e ainda temos de colocar estes marcos. A quem servirão? O que pretende a corte com esses míseros pedaços de pau?

Manuel, ou Mané, era um brioso mulato que não se curvava nunca e aqui ele tinha a voz que sempre precisara no quartel, afeito sempre às tarefas mais humildes, quer seja pela sua cor, quer pela insubordinação. Traficava comida no acampamento pois sempre dava um jeito de ganhar dinheiro dos companheiros. Olhos ardilosos, ele convencia uns e outros da absoluta precariedade de toda a situação.

--Há dias perdemos mais um para a febre de delírio. Quantos mais deverão morrer para que o capitão aborte esta missão, para que voltemos para nossa casa e paremos de inventar que isto que fazemos é importante?

--Mané, se não o fizermos, seremos considerados desertores. Ou seremos aniquilados aqui mesmo ou seremos fuzilados à volta para casa. Eu não quero morrer agora!

Mané o olhava de soslaio, sempre desconfiado, porém sem saber que ele era mais do que aparentava ser.

--Meu caro, não morreremos agora, mas em breve encontraremos nosso destino, se continuarmos a nos embrenhar por este matagal de merda.

A floresta como que ouviu sua praga que ecoou seca nos troncos de árvores ancestrais. Um grito se fez ouvir. Mané e Thiago se levantaram e com seus fuzis, foram até o lugar onde sumira um mateiro, tragado sabe-se lá por qual bicho do mato.

--Ele estava ali, bem na minha frente! De repente, como se uma mão o agarrou, ele sumiu em segundos.

O silêncio confirmava os temores de todos. Um animal não faria aquilo de modo tão abrupto, talvez fosse uma espécie de sinal, dado por alguém que não queria ser visto.

--Vamos acampar aqui. Quero sentinelas armados cada dois metros. Atirem a qualquer movimento!

Ali mesmo parou a expedição e nem mesmo as aves piavam agora, ao cair da tarde. O vento, rouco, agitava as longínquas copas num anúncio de chuva que se avizinhava. Roncos surdos e clarões se tornavam freqüentes e os soldados montaram as barracas em tempo recorde. Logo caia a monção e todos se recolhiam exceto as sentinelas, visíveis apenas pelos seus vultos fugidios.

--Eu digo e repito: Vamos morrer nesta inutilidade.

--Não fale assim, sinhô Mané. Traz maus agouros!

Mais pálido que de costume, o alferes protegia o amigo sibilante até porque sabia de parte da verdade do que ele dizia, recusando-se a reconhecer a horrível procedência daquelas palavras. Thiago sentia uma estranha opressão no peito e rezou ao pensar em sua mãe aflita com sua decisão de partir para a selva com o tio. Não conseguira demovê-lo e ela o beijara como em uma despedida.

**********************************

A tenda do capitão estava cheia de oficiais, a decidir o que fariam a seguir.

--Digo senhores e tenho comigo a certeza de que encontramos algum tipo de tribo ou civilização. Senão, como explicar as marcações que encontramos envelhecidas, cobertas de musgo, com caracteres irreconhecíveis?

--Isso pode ser de outra expedição!

--Não tenho ciência de tal coisa.

--Ao que eu saiba, esta é a primeira e única.

--E a clareira?

--Uma tribo antiga.

O capitão agora falava de maneira decidida.

--Lendas, mitos. Este povo é cobarde. Não são mitos que vão me demover! São fatos!

--De fato, o mateiro sumiu!

--O outro deve estar dormindo de pé! Não se some assim sem ninguém ver nada!

Coçando furioso o braço, em mais uma picada que recebera de uma espécie de monstro voador em miniatura, irritado com os boatos de um possível motim e finalmente com os víveres que demoravam a chegar, o capitão se convencia de que ali deveriam ficar e observar melhor o terreno por onde pisavam. Mais tarde isto se revelou de extrema utilidade. Ele jamais imaginou o que viria a seguir e nem seus companheiros de tenda tampouco.

Os olhos todos acompanhavam os gestos de José, que deixava a platéia eletrizada com suas palavras diretas, ditas com o olhar fito nas faces dos seus ouvintes, entre uma mascada e outra cusparada com o naco de fumo que ressumava ao sabor de sua terra natal. Ele se lembrava vagamente das cachoeiras e dos lagos em que mergulhava, ele se lembrava do antigo pajé e das cantorias noturnas de sua triste aldeia; também o assaltavam as memórias dos longos dias de cativeiro, onde nada comera até que viesse algum senhor de fazenda que o levasse para bem longe.

“A chuva batia nas cabanas, desmesurada e o vento de rouco se tornara um uivo nas copas das árvores; eles sabiam de sua intensidade pelo que podiam ver das copas açoitadas das pobres árvores que eram fustigadas pela fúria da natureza.

--Tá vendo, sinhô Mané? O senhor que provocou!

--Alferes, deixe de ser supersticioso! Já lhe falei, não sou eu que atraio azar. É nossa situação, arre! Nossa situação é insustentável, sob todos os pontos de vista! Não sairemos com vida desta maldita floresta, deste inferno verde!

Thiago, com sua discrição, saiu sem ser visto e foi com muito cuidado deixar um bilhete para seu tio, com o contato que combinara. Graças a isto, seu tio ficou sabendo da iminência de um motim ou coisa parecida, de modo que ele deu um jeito de sumir com o Manuel que destilava suas intenções faz algum tempo. Duas sentinelas foram destacada para pô-lo a ferros e na hora em que foi preso, ele olhava com raiva para seus captores.

--Logo, vocês que me prendem vão ser os primeiros que vão querer me fazer companhia!

Thiago achou que eles estavam com um ar estranho mesmo. Nesta mesma noite, em meio à chuva, dez homens da melhor estirpe saíram correndo do acampamento, inclusive os dois sentinelas suspeitos; o capitão Belfort ficou com dez homens a menos, mas rapidamente reuniu o que restara da expedição e intimou a todos:

--Quem é cobarde, que saia agora, porque amanhã de manhã mesmo, se é que o sol vai nascer para nós de novo, amanhã mesmo partiremos para as encostas que avistamos há duas semanas... Estamos perto de uma importante descoberta! Estes que fugiram, não sei se estão com o juízo acertado, mas de uma coisa tenho certeza: Desgarrar-se agora é chamar a morte, porque aqui onde estamos é território desconhecido, habitado por gente estranha e de hábitos nunca estudados; qualquer passo em falso aqui será o selo de nossa destruição. Portanto, mais do que como seu capitão, eu vos peço a colaboração porque juntos seremos mais fortes e espalhados, seremos somente uns desgraçados a morrer à míngua!

As sentinelas voltaram a seus postos, apagaram-se os lampiões e fecharam-se as tendas. Não havia um só coração que não estivesse com medo ali, agitados pelos acontecimentos recentes e alguns com inveja do Manuel.

--Eu, com inveja? Ele é louco, dez homens soltos nesta mata. Até onde você acha que eles irão?

--“Andarão em círculos na escuridão”.

--“Beberão água das folhas cheias de aranhas!”

--“Ferverão de febre e delírio!”

Silêncio na cabana.

No dia seguinte, a chuva diminuiu e eles puderam ver uma nesga do sol batendo nas folhas imensas das árvores brilhantes e altíssimas. Levantaram acampamento e começaram a longa marcha pela floresta mágica, enquanto os dez dissidentes iam na direção que achavam ser oposta à deles, pouco armados e com víveres roubados há meses secreta e metodicamente. O capitão entrevia com seu binóculo a mancha escura de algumas montanhas ao longe. Nunca havia visto montanhas tão verdejantes. Ele via que suas encostas eram bordejadas pela floresta, altas árvores e uma coisa lhe chamou a atenção: Um filete de fumaça. Seriam os desertores? Seria uma civilização da mata? Que tipo de gente podia viver assim em meio a esta luxúria verde e azul?

--Alferes! Por favor, anote!

--Sim senhor!

--Avistada fumaça na beira da selva, junto às montanhas. Sinal de possível presença humana.

--Sim senhor!

***************************************

Do outro lado, dez homens andavam em círculos, bebiam água de folhas forradas de teias de aranha, ferviam em febre e delírios; dois haviam caído em armadilhas da natureza, um deles despencando de uma ribanceira escondida na mata e outro quebrando a perna ao escorregar fugindo de uma cobra imensa. Manuel, o corajoso desertor, via seus companheiros progressivamente caírem sob a febre enlouquecedora, sob as picadas de moscões infernais, pisando em formigas ancestrais e vorazes com suas mandíbulas e sob o medo das conseqüências de seu ato insano. Ele sabia que sua escolha fora a mais difícil, porém tinha consigo que morrer de pé é melhor que se curvar à doce prisão que se lhe era oferecida, só que aos seus colegas de fuga tresloucada passara a imagem de quem tinha todas as respostas e sabia o caminho de casa, como se fosse possível achar o rumo em meio à verde entonação do sol poente. Um de seus homens julgou ter visto um vulto humano, próximo de uma grande árvore que não se permitia ver sua copa; o vulto, segundo ele, era ornado de estranhas tatuagens e tinha os olhos pintados de negro em torno, com um cocar dourado como se fosse feito do nobre metal e ao seu lado havia uma linda jovem que ora os olhava abismados, ora se reclinava e cochichava ao ouvido dele como se os julgasse, como se os considerasse menores, talvez até mesmo sabendo que eram desertores, sabe-se lá o que tinha em mente a donzela de lindo corpo. Parecia uma princesa, talvez fosse uma menina, talvez uma virgem e...

--Cale-se! Já vê coisas!

--Eu vi, juro que vi!

--Capiau de merda, viu é o que esta floresta quis que visse! Aqui, tudo é ilusório, tudo é feito de sonhos, os sonhos se materializam a quem quer que os imagine! Seja homem! Não caia na tentação de sua mente, não se deixe enganar.

Mané deu um safanão no cabra que parecia ter acordado de um pesadelo, mais uma vítima da febre, pensou o rebelde mulato.

--Esse não dura muito. Dos dez, sobram sete!

Eles andavam em círculos, porque quando iam em frente, pareciam cruzar as mesmas árvores e ouvir os mesmos pios, ver as mesmas folhas cheias de bichos e se enredar nas mesmas teias de aranhas e cipós. Ouvia-se o sibilo das cobras em sua incansável caçada de roedores, o murmúrio das formigas devorando a folhagem de uma árvore de grosso tronco tripartido. Em círculos voavam os pássaros e eles, cada vez mais fracos, trombavam consigo mesmos antes de conseguir uma melhor orientação. Uns haviam perdido os víveres, outros bebiam da água afogueados pela febre maligna. Mais outros estavam entrevados pelo medo e Manuel, já consciente do iminente fim, via que seus companheiros estavam mais do que cansados e confusos, mais do que amedrontados.

Olhou para frente e viu que seu colega tinha razão: Perto da borda da mata, lá estava a linda donzela, uma tanga minúscula a lhe cobrir as partes, curvas que há muito ele não via, ao lado de um vulto de olhos chamejantes. Era verdade enfim, existiam pessoas ali e seu capitão tinha razão, afinal era um sonho realizado. No entanto, Manuel não contou a ninguém o que viu, apenas apertou o passo, animando seus companheiros de fuga.

Ele pensou ter ouvido passos na mata. Apenas pensou, um rápido raio de luz passou entre as folhas e ele caiu de borco, sem emitir um ai, enquanto os outros silenciosamente eram massacrados, sem terem a mínima idéia de onde vinha o perigo.

Manuel se levantou e gritou, como se na última exalação ele pudesse romper os grilhões da morte que já o agarrava pelos tornozelos:

--PREFIRO MORRER DE PÉ!!

A multidão que ouvia José quedou silenciada, alguns murmúrios de pena, outros revoltados; muitos torciam por Mané, o brioso mulato que ousara provar com a própria vida que vale a pena ser livre, até na pior de todas as horas. Olhavam a imensidão da mata que se sobrepunha à civilização, resistindo aos avanços do homem, inundando as margens assoreadas dos rios com água fértil de estrume e fezes de homens e peixes, desfazendo casas na fúria da ventania, aniquilando postes com velhos galhos que caem das alturas. Os olhos se voltaram para ele, fascinados com a história que sabiam ser real em parte, em parte enriquecida pela memória do prestigiado guru; todos sabiam que parte dele era índia, parte era branca. Daí, muitos começavam a duvidar da sorte que os expedicionários restantes teriam.

“Bebendo água da chuva nas folhas recheadas de aranhas invisíveis, comendo insetos nos ocos das árvores imensas, andando em círculos de febre e delírio, escorregando em direção ao nada e a lugar algum.”

*************************************

--Alferes!

--Sim, meu capitão.

--Anote: Avistada clareira com cabanas de prováveis habitantes da floresta. Anote, anote!

O pobre alferes tremia muito de febre, não conseguia escrever e o mais que podia ver era turvo pelas falsas realidades que se criam no delírio do impaludismo. Ora via o capitão com uma boca imensa, ora via de longe as ordens que julgava que podia obedecer. Ele já não sabia mais o que era real, o que era fantasia e em quem confiar. Thiago teve de arrancar a pena de sua mão para poder garatujar seus comentários e os gritos de seu tio.

--Vamos tentar fazer contato.

--Acho pouco prudente. Seria melhor enviarmos alguém, talvez dois de nós. Os outros ficam em torno para uma possível fuga.

“Bebendo água das folhas...”

--Meu Deus, que sede infernal!

--O calor é insuportável. O capitão vai levar seu sobrinho para a exploração e o contato. Será que vai dar certo?

--Tudo depende de como será a primeira vista entre os dois grupos.

“... Aranhas invisíveis...”

--Quê você disse? Você é real?

--Claro que sou! Eu existo ainda!

--Que bicho enorme!

--Qual? Aonde?

--Bem aí! (e apontava estranhas direções e vagos vultos das sombras de sua existência)

“... Delírios...”

*******************************

Eles podiam sentir o orvalho da cachoeira que roncava bem perto, no limite da aldeia isolada, de onde brotava um riacho de águas claras e onde formosas moças tomavam banho seminuas. A chegada deles atraiu um olhar de vigilância, mas é como se já os conhecessem, de modo que foram entrando na aldeia e se formou lentamente um círculo de onde eles três jamais poderiam sair sem ter de passar por todos...

Thiago, seu tio e um oficial graduado em ciências estavam no meio da clareira, quando assomou uma linda moça, acompanhada pelo pajé ou o que quer que fosse; a primeira coisa em que pensaram foi: “Que faz uma princesa aqui, tão longe?” tal era a cor diferenciada de sua pele. Seus olhos, no entanto, eram amendoados, denunciando suas origens. Perto dos outros, ela se destacava pelo porte. Não foi sem um frio na barriga que todos sentiram quando os olhos dela pousaram nos de Thiago. Sabiam que ali, terminava um ciclo e começava outro, talvez para sua desgraça, talvez para todo o sempre. O que fluiu entre os dois ninguém sabe, porque só eles devem saber o que sentiram um pelo outro. Num murmúrio, entre lábios, ele foi apartado dos outros dois e seguiu com ela para local desconhecido, enquanto seu tio, coração apertado, já sabia que nunca mais veria seu sobrinho. Isto o dilacerou por dentro e de tal forma que por um momento pensou em atirar e mandar seus atiradores dispararem contra os inocentes e acabar com aquela cena indizível. Ele deveria saber, no entanto, que o silêncio das folhas verdes e luminosas guardava bem mais para seus atiradores do que só a seiva e o sumo. Inerme, sem reação, foram os dois levados à cabana principal da aldeia. Os índios eram altos, haviam duas qualidades deles, os mais subservientes que eram os que cuidavam deles dois ( e talvez do sobrinho dele) e os altos, pintados com estranha simbologia, calados, astutos e nitidamente superiores aos outros serviçais. Eles davam as vozes de comando, aqui e ali. Entraram na alta cabana, que parecia mais uma hospedaria, inundada de cheiro de ervas e flores, com uma espécie de tina para que eles se banhassem e assim o fizeram. A porta da palhoça foi fechada e eles sentiram um sono pesado e arrebatador. Um sono dos justos.


Jose se tornou soturno ao contar esta parte, pausando suas palavras e causando espanto com o que contava. Mascava o fumo de corda com método, saboreando as sensações que causava nos pobres mortais que o ouviam falando de deuses da mata, de tribos escondidas, de expedicionários aventureiros e de homens da mata, com suas formosas princesas; suas quedas de água, suas aldeias encravadas nas matas luxuriantes, seus caminhos cheios de marcos de pedra, suas paixões imorredouras, suas vidas persistentes de sobrevivência diária, as tempestades imensas, as cobras disfarçadas, as aranhas do tamanho de uma mão peluda, os macacos que andavam em bandos, as formigas venenosas, as plantas que abraçavam pequenos animais, lagoas de peixes fosforescentes, lagos iluminados por réstias de sol e a princesa que iluminava a todos com sua luz quase divina. Todos a viam em suas mentes, todos podiam imaginar a sua beleza ímpar. Todos quiseram estar no lugar de Thiago, em sua peregrinação para achar os caminhos do amor que ela lhe mostrou, como se mostra a senda de um tesouro a um caminhante sedento de ouro.

--Então, semeada pelo estrangeiro, logo que ela pode sumiu sem deixar vestígio e seu jovem amante a acompanhou, encantado com tudo o que aprendera, para ser o rei do futuro planeta verde que se aproximava rapidamente.

Dito assim, de chofre, eles viajaram nas pernas de Thiago, perdidamente apaixonado por ela, que correspondia aos seus arroubos com mais amor, mais carinhos, mais luxúria...

E os dias se tornaram meses e os meses se tornaram anos. Ninguém nunca mais ouviu falar da expedição fracassada; dela só restaram os marcos de outra, e mais outra, e mais uma, e mais outra e outra, tantas que os marcos afundavam uns em cima dos outros, escritos em diferentes línguas, caracteres ancestrais, de antes mesmo de a floresta existir em sua exuberância eterna. Thiago e a princesa habitaram a floresta de linda gente. Quando foram chamados por Tupã, eles receberam a merecida dádiva por terem se apaixonado por tanto tempo e feito tão bem à floresta e aos seus filhos, tanto que hoje habitam, eles dois, as estrelas onde ela tem os olhos brilhantes de amor e ele tem a face tingida de paixão nas nuvens de poeira das estrelas que surgem de madrugada, sempre que o sol nasce enrubescido de amor pela sua linda acompanhante no céu, povoado de seus rebentos celestes.

Todos respiraram aliviados. Menos Jose. Ele terminou de contar a história e foi para sua casa, onde o esperavam os pincéis para que pudesse se pintar e as tintas rituais que o transformariam no que realmente era, para que ele pudesse desmantelar mais uma expedição e fizesse o inferno verde avançar até que o último homem invasor das terras de Santa Cruz tivesse se desvanecido e seus companheiros tomassem conta das ruas desertas que se tornariam antigas lendas de seu povo de antes.

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