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Contos-->Eastwood Interrompido -- 23/06/2009 - 18:35 (Luis Lagarto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
EASTWOOD INTERROMPIDO

[Luis Lagarto]


Como não se trata de apontar culpados ou inocentes, ou violar privacidades, não utilizaremos aqui o nome que se lê em seus documentos: batizemo-lo de Clint. Isso deverá bastar aos bons entendedores, que, se quiserem, podem encerrar aqui a leitura desta pequena narrativa – a estes, nada mais precisará ser dito.

Aos demais, prossigamos informando que Clint é um dos milhões de usuários de trens de subúrbio de um grande centro brasileiro.

Mais do que um meio alternativo de deslocar-se do trabalho para casa (há ônibus intermunicipais que fazem o mesmo trajeto), aquele era um de seus passatempos favoritos: tinha essa atração por trens desde pequeno; as paisagens diferentes das avenidas de sempre, o cheio de óleo queimado às vezes subindo dos freios gastos, o barulho que os eixos duplos fazem ao passar por entroncamentos.

De uns anos para cá, a percepção da inexorabilidade intrínseca dos trens tornou o interesse ainda mais potente, e o meio de transporte ainda mais magnético, irresistível: não se pára um trem. Não como um meio de transporte rodoviário qualquer em que um pisar de freios pode salvar vidas e evitar desastres. Trens são quase forças da natureza, adentrando a plataforma comandando ventos e sons, e fazendo evidente o esforço extremo que é parar – a condescendência que há em diminuir o poder absurdo dos faróis, nocivo às frágeis vistas humanas, e quase relutantemente estacionar para que bípedes adentrem ou sejam expelidos de suas entranhas, às centenas, aos borbotões, plenos de vácuos, deseducados, pequenos deuses em potencial, todos, estação após estação, dia após dia, ano após ano (que alguns trens se acercam dos trinta anos de atividade ininterrupta).

Por que ninguém se espanta com o fato de que, em horários de pico, composições com 12 carros chegam a carregar de uma só vez por volta de 3.600 pessoas, se não mais, por viagem? Quantas cidades interioranas têm populações menores que uma composição ferroviária em horário de pico? Há que se respeitá-los, os trens, esses potentados de ferro, aço e alumínio que, em que pese a fixidez dos trilhos, multiplicam ao infinito as possibilidades de destinos, fazendo do cotidiano ir-e-vir dos moradores dos subúrbios um paradoxo sublime, de tão delicada complexidade que levaria às lágrimas qualquer marxista que dele se desse conta mais profundamente: às mais negligenciadas massas, o mais poderoso dos meios de transporte, o mais enigmático, o mais potencialmente devastador, o mais diariamente prenho de desastres apocalípticos e escabrosos.

O coração do interesse de Clint nos trens residia exatamente nesse potencial destrutivo. Todos os dias, invariavelmente, a cada trem que se aproximava, seu passatempo era fazer esse potencial trabalhar para si, utilizá-lo para resolver definitivamente, ainda que apenas em sua imaginação, o mais excruciante de seus muitos problemas: sua continuada permanência entre os ditos “vivos”.

Porque Clint era assim: um suicida. Pensava-se muitas outras coisas, também, mas talvez fosse essa sua maior vocação. Contudo, nascido em uma sociedade que moralmente, por um lado, não se firma, apenas masturba-se por meio de intricadas peças teatrais apresentadas por réus, vítimas, advogados, promotores e juízes, mas que, por outro lado, condena veementemente liberdades como o auto-extermínio, e preso a outros níveis de moralidade menos fugazes e sujeitos a erro que os meramente humanos, Clint tinha poucas saídas melhores que o exercício mental de altíssima gratificação gráfica, qual seja o de imaginar-se pulando na frente da composição tão longo ela entra na plataforma, de forma que seu corpo vá sendo impiedosamente estraçalhado e deixado aqui e ali até que o trem pare de vez, bêbado de outra morte, o sangue jorrado como que deixando corado o alumínio e o aço em vista de tantas entranhas expostas, enchendo a situação de conotações freudianas incômodas porquanto explícitas, inequívocas.

Jogava-se mentalmente de muitas formas, e em muitos momentos. Muitas vezes olhava para todos os outros passageiros e imaginava-lhes a reação: não raras haviam sido as histórias reais de mortes sobre os trilhos que lhe chegaram aos ouvidos, narradas com algum julgamento, mas sempre muito asco e horror.

O horror.

O horror que lhe parecia continuar vivendo.

Clint apaziguava sua alma matando-se todos dias, dessa ou daquela estação, com mais ou menos espalhafato, terminando em maiores ou menores pedaços. Não lhe importava o certo inferno de um eventual pós-suicídio – permitia-se saborear aquele momento imaginário de fim, e só. Depois adentrava o vagão, anônimo e conduzido como qualquer outro passageiro, e ia para casa ou onde quer que tivesse que ir, com o coração um pouco menos doído.

Mas, naquela tarde de domingo, quando entrou no último vagão e sentou-se, haviam mudado tudo, e ele até que se conteve por alguns minutos. Abriu um caderno, tentou escrever alguma coisa, mas a vista foi-se turvando conforme a primeira lágrima travava uma batalha colossal contra sua vontade e forçava-se para fora de seus olhos, já pronta para fazer-se seguir de um sem-fim de outras lágrimas, querendo comandar um choro convulsivo e ridículo.

Não.

Era respirar fundo e tentar mais uma linha, mas à menor lembrança seus olhos enchiam-se novamente, e era preciso parar de escrever para secá-los com os dedos, como se os espremesse: nos primeiros minutos, foi gesto suficiente fazer assim.

Mas a lembrança recorria, e por mais que os ombros se mantivessem firme em suas posições, livres de trepidações, o fluxo salgado e quente já fazia necessária a intervenção da manga da camisa de flanela, mesmo que a cada minuto ou dois, utilizando ora o punho, ora um fechar do braço por sobre o rosto, escondendo-o por inteiro (assim secavam-se os dois olhos, com a vantagem de evitar ainda mais a visão dos demais passageiros, diminuindo-lhes de certa forma a existência naquele momento inconveniente).

E tentar outra linha. Mas o escrito tornava a lembrança inevitável, e mais lágrimas sobrevinham, e algo era preciso ser feito.

Chorou, então, como se deve, no mais absoluto silêncio e com o rosto baixo, escondido das vistas dos quatro ou cinco passageiros que certamente viam a cena, mas atinham-se ao excelente senso de não intervir. Por algumas estações ele permaneceu assim, secando as lágrimas tão logo emergiam, o rosto absolutamente fechado, os lábios firmemente contraídos em um “u” invertido, apenas uma ou outra inspiração mais funda, para manter o nariz seco, que chora-se também, muitas vezes, pelos olhos e pelo nariz, outra condição humana ridícula.

O controle veio logo e, no momento do desembarque, a face dura não convidava a menor simpatia de quem quer que fosse, e fez seu papel na inibição de qualquer curiosidade quanto aos olhos provavelmente vermelhos.

Por dentro, estava seguro de sua hombridade, porque, ainda que inegavelmente tivesse chorado, fê-lo como se deve: do único jeito possível: the American way. Como nos bons e velhos tempos. Porque o homem moderno é um mito.

Hoje em dia, Clint não pratica mais seu exercício, impedido que foi quase em definitivo pelo estranho fato que ele não encontra alternativa de qualificação além de “sutil intervenção do Divino”.

É que, naquela tarde de domingo, enquanto preparava-se para imaginar-se jogando-se no vão enquanto o trem ainda passava (uma morte ainda mais horrível, essa, de arrasto), caiu do teto da composição, quase a seus pés, no exato local em que sua visão se fixava, uma pequena flor roxa -- para ele, um sinal indiscutível de que, para Alguém, sua vida tem alguma importância.
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