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Contos-->Esquinas Interiores (pequeno conto de vida fácil) -- 23/06/2009 - 18:20 (Luis Lagarto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Esquinas Interiores

[Luis Lagarto]


Cansadíssima da própria vida, ela se apóia na parede e sua pele é como uma extensão das rugas e ranhuras da pintura antiga, talvez primeira e única da pequena casa geminada construída nos anos 1920 ou 1930, porta e janela numa fileira de portas e janelas de uma ponta a outra do quarteirão. Sua casa é a terceira, azul-bebê, como se adivinha onde ainda há tinta. Ela mora ali desde 1963.

A mão que toca a parede com uma suavidade quase paradoxal é grossa, mas as unhas estão bem-feitas, resultado ainda do escambo do dia anterior. Ela sempre fez bem cabelos, e em troca a vizinha de duas casas abaixo faz-lhe as unhas. Outra lhe paga em ovos (tem galinhas no quintal, que ironia), outra lhe costura vestidos como que está agora usando, na verdade um conjunto de mini-saia de cetim vermelho-carmim (reaproveitado de uma saia dentro da qual essa vizinha fez calar toda uma boite, tendo até mesmo a banda silenciado o jazz para que ecoasse no assoalho lustroso cada passo daquele monumento que nem em suas crises depressivas mais profundas sonhava com a decadência que os anos lhe trariam) e uma blusinha de chita com babados, muitos babados, nas mangas, na barra, na gola, por sobre os botões. A estampa que mistura azuis e marrons (os botões são brancos) ignora a sandália prateada de alças frouxas que sobem entrelaçadas até o joelho, e a bolsinha de crochê de um vermelho impossivelmente mais gasto que o do vestido.

Entre a blusinha e a minissaia, pele, muita pele amarelada, onde se armazenam quilos esquecidos que os tecidos não contêm, e que transbordam e se multiplicam e fazem do umbigo à mostra uma pequena boca que se abre e fecha conforme ela respira com a dificuldade de quem fuma desde os oito anos incompletos. Seus imensos peitos geralmente arfam, num balanço irregular. Entre eles, quando se aproxima a vista, há pelinhos, o decote não faz questão de esconder três pequenas queimaduras de cigarro. Sutiãs são um luxo que ela não se admite.

Um pouco abaixo das estrias adivinha-se a calcinha de um algodão que... não, não se pode chamar de branco. O elástico espia por fora da costura, e vê-se que lhe pesam os meses (anos?), pois que já não cumpre função nenhuma. Sustentam a peça a saia e o pequeno cinto de couro branco de fecho dourado.

A dita sandália lhe disfarça bem as varizes e a depilação malfeita, assim como a meia-calça desfiada (há um furo atrás, na coxa esquerda, bem em cima, mas a barra da saia o cobre quase por inteiro). Dos saltos de madeira carcomida, só o direito ainda é confiável, e por isso ao fazer pose ela sempre se inclina nessa direção. Agora, por exemplo, ela está com a perna esquerda dobrada um pouco para trás, o pé no degrau de entrada de seu casebre, brincando com a porta entreaberta que range com voz de bruxa quando vem de encontro ao seu calcanhar, e range outra vez quando ela a chuta para trás.

(Nesse abrir e fechar da porta entrevê-se todo o mofo da mobília barata adquirida em meados dos anos 70. E o bolor das paredes. E o gato idoso, preto e franzino. E o rádio, só AM.)

No meio da tarde, a alguns metros da agitação da avenida principal, ela espera pelos fregueses, novos ou de sempre: office-boys que pagam com vale-transporte ou refeição, um ou outro engravatado a fim de relaxar enquanto digere o almoço (estes, ao contrário dos garotos, jamais cogitam deitar-se com ela, atendo-se a interações fugazes de menor contato), velhos impotentes que se recusam a aceitar a passagem dos anos, e que geralmente a destratam quando não conseguem executar qualquer função. Nomes, nomes, ela já ouviu todos. Interessa-lhe o dinheiro no bolso.

Vez por outra aparece um homem gentil, um ou outro até bonito. Eles lhe chamam de “meu bem”, cheiram seus cabelos e elogiam o cheiro doce do condicionador barato -- nem reclamam do perfume de dois reais que ela passa entre um cliente e outro (não se pode passar o dia todo tomando banho, enfim). Um desses até a pediu em casamento, jurando que a tiraria dali. Ela sorriu e deixou que ele falasse. Embora menos bizarra que muitas (e ela conhecia muitas), essa era só mais uma fantasia. Ela já ouviu falar de algumas garotas cuja vida tomou esse caminho, mas no caso dela... Eles nunca voltam. E para que voltariam? Ali, ela sabia mais dos maridos que suas digníssimas esposas: seu colchão de molas era um confessionário, e ela assim foi receptáculo de muitas verdades, suficientes para sufocar seu desejo de juntar-se ao time desses milhões de pobres-coitadas.

Ainda assim, em 68, teve um que... não, melhor não pensar nisso.

A tarde passa de seu auge, e já dá seus primeiros sinais o fluxo de pessoas que saem do serviço. Mais moleques, mais janotas, menos velhos – esses vão para a sopa/novela/cama. Ela confere no espelhinho rachado sua maquiagem, cada vez mais pesada com o passar dos anos – e quantos anos! O cabelo em caracóis quase duros de tanto condicionador lhe cai sobre o rosto e por um momento parece ter movimento ou vida. A base, com o calor, se transformou em uma pasta, mas pelo menos cobre os buracos de suas bochechas. O arremate é com generosas aplicações de blush marrom. O batom vermelhíssimo lhe exagera os lábios e realça a verruga logo abaixo do nariz: “olha, eu não sou a cara da Marilyn?”, brinca ela com as amigas. No espelhinho, aparecem os pelos que saem da protuberância enegrecida, e eles brilham com a luz do sol. Arreganhando os dentes, vê que uma sombra vermelha lhes macula o amarelo. Batom. Ela limpa com os dedos, e no processo percebe que seu hálito poderia estar melhor... Mas como juntar dinheiro para fazer todas as obturações? Guarda o espelho, pega um chiclete, masca imaginando-se por isso mais interessante, já que não atraente.

Atraente... Delícia. Era assim que aquele tio a chamava. Engraçado quando a gente entende as coisas de um jeito diferente quando tem seis anos. Ainda mais em Rondônia, onde se vivia tão à parte do tempo, do mundo, de tudo.

E então dobra a esquina um provável cliente. Ela se apruma, limpa a garganta e prepara o inevitável, “vem, gatinho, fazer neném comigo, vem?” (ela já se cansou do “psiu”, batido). De peito erguido e vastas cadeiras balançando, ela vai ao encontro dele.

O que ela não sabe, nem desconfia, é que ela não existe, não como um ser independente. Ela é só um pensamento, uma idéia, ela e todas as suas companheiras.

Coisas de minha cabeça, que já de algum tempo está uma zona.


[LL]
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