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Contos-->Emmanuelle, Joaninha (um estudo) -- 23/06/2009 - 15:46 (Luis Lagarto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
EMMANUELLE, JOANINHA (um estudo)

[Luis Lagarto]


Dezoito anos em abril de 2005. Um metro e sessenta e cinqüenta e seis quilos não pessimamente distribuídos. Olhos castanhos-mutante (mais claros ou mais escuros em consonância com seu estado de espírito) e longos cabelos pretos que, contrastados à pele bastante branca, geravam freqüentes comparações com uma vocalista de nü metal muito em voga na época.

Ela subiu no ônibus tarde da noite, e teve que tocar no braço do cobrador para acordá-lo. Era firme e quente, o braço, cor de bronze, e essa percepção ocupou seus pensamentos enquanto ela entregava o bilhete escolar para o homem sonolento. Foi sentar-se no último banco da condução velha e mal-cuidada, deixando-se jogar para cima e para baixo, para um e para outro lado do banco sem acolchoamento, ao sabor dos buracos, curvas e freadas bruscas.

A avenida Vereador José Diniz corria por sob o coletivo. Em uma parada anonimizada pela má iluminação pública, um garoto subiu e foi sentar-se uns três bancos à sua frente. Da sua idade, não muito bonito, ele tentava um pouco demais passar uma imagem de "boyzinho", com a camisa de surfista branca com grafismos tribais pretos, a calça cargo preta e os tênis de cano baixo cheios de grafismos em branco e preto. As meias eram pretas. Os detalhes dos bolsos laterais da calça eram brancos. Não, não, um pouco over, ela decretou. Os cabelos castanhos dele faziam cachinhos.

Foi quando o ônibus passou como um boi raivoso em frente ao infame Shopping X que ela olhou para baixo e percebeu que seu pulso havia ficado roxo. Há longos minutos encontrava-se possuída por um instinto sado-masoquista incontrolável, tendo cedido ávida à vontade de apertar seu pulso esquerdo com toda a força que o punho direito fosse capaz de exercer. Durante o processo, uma espécie de satisfação, de saciedade, lhe sobreveio como no momento em que transpassou sua pele com um alfinete pela primeira vez. Apertou até perceber a cor fugindo das pontas dos dedos esquerdos. Sob a pressão de seus dedos a pele parecia mole e fria. Só então ela largou, e se pôs a fitar o borrão de prédios escuros que fazia as vezes de paisagem.

Joaninha chamava-se na verdade Emmanuelle, mas ganhara esse apelido por causa de um casaco vermelho com bolinhas pretas que usava na infância. Era algo a que havia se resignado, não gostava, nem se importava com o apelido. De "inseto que traz boa sorte", como afirma a sabedoria popular, ela parecia sentir-se apenas inseto.

Naquela noite, desde que saíra da escola estadual onde cursava o segundo ano do ensino médio, nos arredores do Brooklin, em direção à casa onde morava com a família nas imediações do Jabaquara, por todo o caminho ela tentou chorar por Renatinho. A vontade de apertar seu pulso (poderia muito bem cortá-lo, chegou a cogitar) veio quando percebeu que não conseguia chorar, por mais que tudo aquilo lhe machucasse.

E tudo doía muito: afinal, eram quase dois anos amando em silêncio o arrogante moleque que, por sorte ou azar, não bastasse estar na sua sala, era sempre sorteado para os mesmos grupos de trabalhos e estudos. Segregada por seu estilo um tanto obscuro demais para os limites superficiais da moda corrente, nunca encontrou naquele ambiente ouvidos que lhe compartilhassem o peso do sentimento que ela acreditava sincero, apesar de ter ficado, em momentos de maior fragilidade, com um ou outro rapaz que ela normalmente julgaria fútil.

Além do mais, ela nunca teria chance, teria? Pensou na pele cor de bronze do garoto dado a ressaltar seus atributos por meio de roupas possivelmente um ou dois números menores que o apropriado, e na tentação que era cada sorriso que ele lhe dirigia, pois que eram excelentes amigos, apesar de tudo que ela não lhe dizia. Todas as vezes que ela olhava em seus olhos castanhos esverdeados, seu coração dançava ao ritmo de emoções feitas ainda mais intensas por sua relativa inexperiência, que projetava no rapaz o mais certeiro dos alívios para todos os seus muitos problemas.

Desceu do ônibus dois pontos antes, para desfazer na caminhada a expressão de angústia que certamente despertaria a fúria do pai eternamente bêbado e rabugento. Para piorar, era quinta-feira, para ele a primeira noite do final de semana, e era certo que as coisas não estariam tranqüilas.

Não estavam. Ela ouviu os gritos da esquina, e viu vultos tanto nas janelas de sua própria casa quanto nas dos vizinhos, que sabia capazes de perder boas horas de sono, mas não o assunto do dia seguinte. Deu meia-volta, primeiro andando, depois apertando os passos, e, por fim, correndo desajeitada e ruidosamente, sem saber muito bem porquê ou para onde, os cabelos um chicote preto a castigar-lhe a nuca.

Parou junto a um telefone público em frente à estação Conceição. Tirou do bolso com a mão trêmula um papelzinho com o número do celular de Renatinho, que ele mesmo lhe havia dado meses antes por conta de um trabalho escolar particularmente complicado. Ela nunca ligou, mas mantinha o papel consigo como um troféu, ou amuleto. Por segundos sua mente ficou em branco, e ela olhou sem expressão para os números que iam e vinham conforme sua respiração ofegante os empurrava ou trazia de volta. Discou antes de decidir que o faria.

-- Alô?

-- Rê?

-- Jô? Tá tudo bem? Cê tá com uma voz esquisita... Tava correndo?

-- Rê, eu...

-- Você...?

-- É que... cê tá ocupado? Olha, eu sei que é tarde, mas é que eu... er... Você chega a que horas amanhã?

-- No mesmo horário de sempre Joaninha, que que tá pegando? Resolveu me dizer aquilo que você sempre fica adiando? Pode falar, eu estou ouvindo.

-- Eu...

-- Jô, se você não me falar, as coisas sempre vão ficar meio esquisitas entre a gente. Você sabe que eu sou seu amigo, e que estou aqui pra ajudar você no que eu puder e...

-- Rê, eu...

-- Fala.

-- O cartão tá acabando. Preciso desligar. Depois a gente se fala. Tchau.

-- Não, Jô, não desliga, escuta...

Mas já era tarde, sua capacidade de compreensão foi reduzida a zero tão logo ele disse a palavra “amigo”. Insensível, como se tivesse sido anestesiada, ela desligou sem ouvir mais nada. Deu dois passos para trás e olhou para os céus carregados de nuvens, mas ainda assim iluminados por uma lua imensa e pontuados por estrelas eventuais. Nem mesmo se aqueles céus tivessem caído sobre ela naquele momento, Joaninha-Emmanuelle poderia ter se sentido mais absolutamente esmagada pela impossibilidade de ser feliz ao lado de quem tinha o mais absoluto domínio de sua mente e espírito. Nem por um segundo considerou a hipótese de que os céus que contemplava poderiam ser mais vastos que o infinito amor que sentia.

Adolescente, ridiculamente adolescente. Reconheceu-se assim e desistiu, uma desistência tão completa que nem se poderia dizer do quê. Olhou para a avenida, e cada carro parecia conduzir um pensamento, um artigo de revista, um livro, uma música, enfim, tudo que chegou a ela por um caminho ou por outro e a ajudou a catapultar aquela estranha atração por um garoto entre tantos, para o patamar altíssimo de sentimento o mais sério e definitivo. Em cada janela acesa dos muitos prédios ao seu redor ela via uma cena da longa história dos dois: um exercício de ficção, ou de interpretação, já que não foram poucos os sinais dúbios que ela captou no rolar dos muitos meses. Por fim, num ônibus cujo letreiro ela sequer observou, ela viu um destino. Jogou-se.

Batendo de frente com a grade, ficou assim suspensa por menos de um segundo, rolando em seguida para baixo do coletivo, sendo colhida primeiro por um, depois por outro eixo. O primeiro esmagou seu crânio e, tendo um de seus braços prendido-se à roda, arrastou-a por alguns metros. O braço desprendendo-se do corpo, restou ao pneu traseiro pressionar seu abdômen de tal forma que algumas de suas entranhas explodiram com certa violência. O veículo, momentaneamente sem controle por causa da confusão do motorista diante do vulto que saltou à sua frente (seus olhos se cruzaram por um último instante), parou menos de cinqüenta metros adiante. A longa trilha avermelhada no asfalto ainda estaria ali depois de muitas semanas.

Joaninha, assim que se desprendeu do corpo, sofreu o traslado angustiante para o Vale dos Suicidas, onde vagaria sem qualquer condição de resgate por muitas décadas ainda. Ela e Renatinho não se reencontrarão no plano físico por séculos, cada segundo dos quais ela contará como sendo um milênio em si.

Quanto ao garoto, ele por meses e meses corroeu-se por causa do acontecido. Em poucos anos, prosperará, desposará a namorada com quem já estava, na época, e terá três filhos, dois meninos e uma menina que chamará de Emmanuelle.

No fundo, nunca se perdoárá por não ter dito a Joaninha que sabia do amor dela desde o primeiro dia. Tivera pela garota amizade, ou talvez algo que nem sempre era carinho, apenas... mas sempre achou que não deveriam ficar juntos. Sua capacidade de sentir felicidade sem culpa morreu com a menina, mas até o fim de sua longa vida, cuidará para que ninguém percebesse o quanto lhe custava cada sorriso.

Renatinho, então já Seu Renato, quase bisavô, morrerá numa tarde de primavera, em um parque da cidade, brincando com os netos mais novos. A ironia de esmagar junto ao peito, num gesto impensado, um pequeno inseto de casco vermelho e preto, atropelará sem dó sua alma e levará para longe sua vontade de seguir vivendo.

No astral, descobrirá que há muitos séculos vinha fazendo Emmanuelle infeliz, enquanto a garota lutava incansavelmente pelo seu amor. Inconsolável, depois de muito estudo, restará a Renato pedir para ser seu anjo da guarda, sob a condição de que ela jamais saiba -- não até que eles voltem a nascer e viver juntos.

E a ele, Renato, não poderá ser revelado que, quando finalmente se reencontrarem, descobrirão que foram, sim, feitos um para o outro, como Emmanuelle sempre soube.

Se ela não tivesse desistido...

Se ele tivesse ao menos tentado.


[LL]
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