Usina de Letras
Usina de Letras
67 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62243 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10450)

Cronicas (22538)

Discursos (3239)

Ensaios - (10370)

Erótico (13570)

Frases (50641)

Humor (20032)

Infantil (5440)

Infanto Juvenil (4770)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140811)

Redação (3308)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6198)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->A Hora e a Vez de Dona Lúcia -- 23/06/2009 - 12:08 (Luis Lagarto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A HORA E A VEZ DE DONA LÚCIA

[Luis Lagarto]



Não importava quantas vezes Lúcia se esforçasse para pensar em outra coisa: de nada adiantava. Ali, no cantinho de seu olhar, ele continuava sentado num silêncio meio assustado, atraindo sua atenção como o mais poderoso dos ímãs.

Tudo era desculpa para vagar pela sala, obviamente não sem um estágio obrigatório pela pequena recepção improvisada. Café, já era o quinto, o líquido preto não lhe descia mais pela garganta. Droga de telefones que resolveram não tocar mais. Que papéis eram aqueles, espalhados sobre a mesa? Alguém chamando? Não? Bem que ela poderia tomar mais um cafezinho.

A presença do rapaz a ouriçava. Coisa de solteirona. Cinira.

Angustiada, sentou-se por fim à frente de sua velhíssima máquina de escrever, obsolescência à qual estava acorrentada por questões que ela mesma não sabia mais como responder. Deixou passar tantas oportunidades, acompanhou desde o começo o surgimento do computador, observou cética enquanto ele dominava a cena, pensou que fosse uma moda passageira. Agora estava ali. Sub-secretária executiva bilíngüe anacrônica, num desses escritórios do centro da cidade que parecem ter estacionado na década de 60. De bom, tinha ao seu lado as graças do chefe Alberto Carlos, e a sempre ambígua simpatia da Secretária Responsável, dona Noêmia. Suspirou, se bem que mais pelo garotão moreno de calça de moletom e cavanhaque que por sua situação profissional desoladora.

Arrumando-se até conseguir uma posição mais confortável e discreta, deixou seu olhar perder-se sobre a anatomia do jovem sentado no pequeno e já prejudicado sofá preto da ante-sala. Esqueceu-se de seus trinta e tantos anos, esqueceu-se das colegas de trabalho que já cochichavam entre si, atentas a cada movimento seu. Invejosas! Metade da idade, o dobro da frustração! Ignorou-as, sentia-se leitora da Capricho, babando pelo gato do mês. Esqueceu-se do tempo e de onde estava, sonhava acordada.

— Bíceps, quero dizer, pois não? — levantou num salto ao ouvir a voz do chefe da repartição.

— Mande o Sr. Reginaldo entrar, Dona Lúcia, faz favor?

Reginaldo, aos olhos dela, levantou-se em câmera lenta, em close, em detalhes proibidos para menores. O moletom azul-escuro era uma festa para seus olhos famintos. Reparou na postura do candidato à vaga de office-boy, e reconheceu logo maneirismos de militar. Dezenove anos no máximo. Enquanto ele passava pelo estreito corredor, fitou os olhos castanho-claro, sedutores, a boca carnuda logo abaixo do bigode ralo que se unia ao fios que desciam até o queixo... De repente, verão no meio do inverno, nossa, que sala mais abafada... Mas o calor só foi insuportável mesmo quando pôs os olhos nos pelos que escapavam pela gola da camiseta, prodigiosamente combinando com os que cobriam seus braços fortes. Lúcia mal conteve um soluço, um arrepio, engoliu em seco e começou a suar frio: tremia.

— Cueca, digo, pois não, Sr. Alberto Carlos?

— Um cafezinho para o jovem aqui, por favor?

— Com açúcar, né, Reginaldo? — completou solícita Dona Noêmia, ao que o rapaz assentiu constrangido.

Menos de meio segundo depois ela surgia na porta falando rápido e um pouco alto para disfarçar a tensão que o pires em suas mãos trêmulas denunciava, mas a voz que perguntava “está bom assim?” tremia também, formando um todo quase convulsivo. Dona Noêmia, como era de seu costume, a condenava com os olhos brilhantes de raiva e censura, que contrastavam com um sorriso ostensivo, agressivo, quase uma demonstração de presas. Como sorria, essa mulher! Para quê tanto?

Foi então que o soldado em dia de folga levantou os olhos e sorriu em agradecimento, encarando Lúcia pela primeira vez, fazendo fluir para dentro dela, sem saber, toda a sua imagem, toda sua essência, tomando-a de assalto e destruindo suas defesas. Dona Noêmia parou de sorrir. Lúcia perdeu-se no infinito do momento, congelando a cena, apertando a tecla pause de sua vida para absorver tudo o que via. Não havia reparado na camiseta justa dele. E que pose era aquela?, as pernas tão abertas e AHH! Depois de anos se desviando, finalmente! Ela sempre odiou o tapetinho da entrada, não só por ser velho e gasto, mas pelo perigo que representava, ali sobre o assoalho mais do que liso. Uma dia aconteceria: distraiu-se e caiu acrobática de cara no colo do garotão, mas não sem antes bater com força a cabeça na quina da mesa no meio do caminho.

A realidade tornou-se imediatamente para ela uma espessa e indefinível escuridão. Quem? Onde? Braços poderosos a seguravam. Sentia-se tão mais leve... Um toque suave por todo seu corpo... como... seda! Ela estava vestida como uma odalisca?

— Ela está acordando, Califa! Está viva! Glória a Alá!

Alá, Alá, entoou um coral de vozes masculinas. Quem puxava, com os olhos tomados de alegria, não era outro senão Reginaldo, envolto em turbantes e túnicas brancas. Ele era o chefe da guarda do califa Alberto Carlos! Era piada? Então por que parecia tão certo? Seu nome... Rahel! Sim! O que quer dizer “Lúcia”? Porque estava chamando seu amado Mohamed de “Reginaldo”? Oh, Alá! Sim! A preferida do Califa Sehli Aff Hasel estava de volta!

— Vejo que minha preferida vive, e se recupera de seu delírio! — disse o exultante Califa. — Eu ordeno que este momento seja festejado até o nascer do próximo dia, e depois até o anoitecer, e que assim seja por três dias. Ao fim desse período, farei de Rahel minha nova esposa.

Um calafrio percorreu a espinha da formosa odalisca. Como concretizar agora seu amor por Mohamed sem despertar a ira do Califa? Como suportar o ódio da esposa mais velha de Aff Hasel, a maquiavélica Shalia? Mohamed percebeu a natureza de seus pensamentos, refletindo a mesma preocupação em seus olhos da cor dos desertos. Antes, porém, que pudessem trocar palavra, dois guardas se puseram entre eles, com a missão de pôr em pé a odalisca.

— Dance, minha querida, dance! Meus olhos querem beber sua beleza, embriagar-se com essa visão do Paraíso prometido! Dance! Música! Bebida! Eu ordeno que todos se alegrem. Mohamed, ela não é maravilhosa? E será minha em breve, toda minha.

O chefe da guarda tremeu de ódio e frustração ao fitar os olhos cheios de luxúria do velho Califa, que passou a bolinar as esposas mais próximas, sussurrando obscenidades em seus ouvidos, degradando-as como se fossem reles objetos de seu prazer. Shalia ria alto, apesar do sorriso que chegava a incomodar de tão ostensivo, não conseguia esconder em seus olhos o ódio por aquela que ameaçava roubar sua posição. Mohamed sentia as vibrações que ela emanava, e só fazia sentir-se pior. Olhava para Hasel e depois para Shalia, que respondia aos seus olhares com aquele sorriso abominável, e enchia-se de desgosto. A todo instante sua mão fechava-se sobre a empunhadura de seu sabre. Se pudesse, pensava, terminaria com seu tormento ali mesmo, mas estaria apenas chamando a morte pelas mãos de seus subordinados, todos comprados pelo ouro sujo de Hasel. Sentia-se impotente e angustiado.

E assim a noite toda Rahel dançou, e, com poucos períodos de descanso, dançando prosseguiu pelos três dias a fio. A cada nova música, a cada nova dança, ficava mais difícil esconder por detrás de seu sorriso alvo e perfeito toda a tristeza a constringir seu coração, que via chegando mais perto o momento de perder para sempre o amor para o qual havia nascido.

Ao anoitecer do último dia, quando poucas horas faltavam para que o casamento se consumasse, ela estava desolada em sua pequena tenda, deixando correr em silêncio as últimas lágrimas pelo seu amargo destino, quando lançou-se pelo pequeno espaço adentro seu amado Mohamed, veloz e sorrateiro como uma cobra a deslizar pelas areias do Saara.

Não houve tempo para palavras, pensamentos, ponderações. Um abraço forte e intenso calou-lhes os corações, e um beijo como nunca houve nem antes nem depois, seus lábios. Mais rápidas que a razão ou o medo, suas mãos arrancaram vestes, seus corpos se encontraram, e todo o ardor da paixão acumulada em longos anos ali mesmo se consumou, gravando-se para sempre em suas almas: a pele dourada de Mohamed, e toda a força de seus músculos, vibrando em uníssono com a delicadeza alva de Rahel; a terra e a flor tomada, a espada e a virtude conquistada, não, cedida, entregue, com mais amor do que jamais se pensou possível para uma alma humana.

Mas a felicidade foi um instante, um momento intenso e breve como um relâmpago. Antes que pudessem entender o que havia acontecido, os gritos dos guardas os arrancaram dos braços um do outro, e assim que deram conta do que lhes acontecia, estavam, nus, à frente de Hasel e sua corte, às vistas do sorriso odioso de Shalia. E como ela sorria, vitoriosa! Seu plano frutificava, enfim. Estava vingada pela humilhação de anos atrás. Lembrou-se de quando o jovem foi promovido a capitão da guarda, e ela se interessou por sua vitalidade e força, enamorando-se dele. Mas seu coração já pertencia à bela odalisca, e fiel a ela ele continuou por todo esse tempo. Então, ele preferia a juventude de Rahel a toda experiência que ela acumulou em seus tantos anos. Ele a achou velha e feia? Não merecedora de sua masculinidade? Pois bem, que essa masculinidade desapareça, então, e nem ele mesmo dela usufrua!

Mohamed e Rahel caíram na armadilha de Shalia, que em seu ardil havia facilitado aquele último encontro somente para expor ao Califa a traição de seus dois preferidos. Mohamed, que era como um filho! Rahel, a mais nova preferida! Era suprema e absoluta a sua vingança! Sabia que jamais conseguiria convencer Hasel a matar os dois, mas satisfez-se com as penas que receberiam: Rahel seria oferecida à guarda, para que todos os homens se satisfizessem quantas vezes desejassem. E quanto a Mohamed...

— Você, que eu amava como a um filho e me traiu, quanto desgosto me traz! — o Califa fez uma pequena pausa, pondo suas mãos sobre o peito, numa expressão de amargura. — Eu deveria, pelas nossas leis, matá-los da maneira mais dolorosa, mas não sou assim tão cruel. Em sinal de clemência, eu sentencio Rahel a ser possuída por todos os meus homens, mas não sem antes presenciar o castigo daquele que ela escolher para me trair, o filho que de mim ela roubou. Que entrem os escravos.

A estas palavras, dois escravos carregando uma tina de água fervente adentraram a tenda onde se reuniam a corte e toda a guarda, que já apresentava sinais de evidente antecipação do que para a odalisca era um castigo e, para eles, um prêmio.

Dois desses guardas aproximaram-se do então amordaçado, amarrado e nu Mohamed e lhe afastaram as pernas, fazendo com que ele caísse sentado no chão, expondo toda a sua virilidade ao presentes. Ao perceber a aproximação dos escravos, compreendeu o significado da sua sentença e desesperou-se, debatendo-se como um animal contra os três guardas que o seguravam, e que mal podiam em conjunto com sua força descomunal. Dois outros vieram acudir, e, na confusão, sua mordaça se soltou, e ele pôde gritar a plenos pulmões seu amor por Rahel. Não foi sem luta que os cinco homens conseguiram imobilizá-lo no chão, as pernas afastadas, exposto e frágil, prestes a pagar o mais alto dos preços pelo simples descuido de amar demais.

Fervendo em ódio, Shalia deu o sinal. A pele dourada do soldado, banhada em suor, refletia a luz das velas com dramática intensidade. Houve um pausa na respiração de todos e uma consternação geral. Hasel olhava fixo, mas não podia esconder sua dor. Shalia exultava, abandonando a dissimulação de todos os dias para naquele momento revelar aos que quisessem ver sua natureza sórdida, a essência da mais pura maldade. Ela sorria. Rahel não encontrava forças dentro si, apenas rezava e chorava. Seu olhar de amor profundo foi a última coisa que Mohamed viu antes da escaldante cascata de água fervente atingir seu baixo ventre. Toda a alma de Rahel se desfez no grito lancinante do soldado, que ecoou por todos os desertos, gelando os corações dos que naquele instante erravam pelas areias frias na escuridão da noite.

Morta por dentro, Rahel pouco se importou com a saída da corte, acompanhando com olhos pesados de dor quando o corpo inerte de seu amado foi rolado para um canto, deixando pedaços de sua carne grudados no chão, e cobrindo de poeira a horrível cicatriz que havia restado entre suas pernas. Não se importou, tampouco, quando os mais de oitenta guardas a rodearam, para receber sua “recompensa”. Suas vestes foram rasgadas, seu corpo, violado, tanto, de tantas formas e com tanta violência, que quando seus sentidos se foram, foi como uma benção. Recebeu a escuridão como quem abraça a mais profunda paz.

De repente, contudo, voltou a sentir seu corpo, incomodada pela posição em que ele estava. Não conseguia respirar, como se a houvessem amordaçado novamente, cobrindo também seu nariz. Podia sentir o cheiro dos soldados, mas não quis sequer amaldiçoá-los, como seria direito seu. Abriu a boca para tentar puxar algum ar, mas quando inspirou...

— Ai!

— Dona Lúcia! O que a senhora pensa que está fazendo?

A voz irritante e descabidamente alta de Dona Noêmia trouxe a funcionária de volta a si sem prepará-la para o choque de encontrar-se toda torta, de joelhos, com o cara enfiada nas intimidades do rapaz que tentava ajudá-la, sem saber como. Ela percebeu o que havia mordido quando tentou respirar alguns segundos antes. Colocando-se de pé, Dona Lúcia procurou em vão por um meio de desaparecer daquela cena extremamente desconcertante. Tentou, mas não pôde evitar uma olhada rápida para o exato local de seu pouso, e sentiu-se enrubescer quando percebeu a estratégica mancha de batom, bem por cima do...

Tomada pela mais absoluta vergonha, arrumou seu vestido, que havia então subido mais que a decência recomendava, expondo suas pernas fortes e bem torneadas, a camisa de botões entreabertos, e o penteado destruído que mal escondia o galo em crescimento na lateral de sua testa. Assim, com os cabelos soltos, parecia outra mulher, tão mais nova que ela mesma.

Reginaldo a observava indecifrável. Seus olhos carregavam uma mensagem que não cabia ali naquela situação, e mesmo que coubesse, não poderia estar sendo dirigida para ela, Lúcia. Poderia? Era um olhar tão... convidativo? E no canto de seus lábios, se aquilo era um sorriso, era o mais discretamente sem-vergonha que ela jamais havia visto. Não, não, ela devia estar ficando louca, efeito da batida que a deixou desacordada... por quanto tempo mesmo? Ecoavam em seus ouvidos nomes estranhos. Morra-o-quê? De repente parecia conhecer Reginaldo há anos.

O peso dos olhares de total reprovação de seus superiores, contudo, a esmagava, e não podendo mais suportá-lo, Lúcia murmurou um pedido de desculpas aos presentes e retirou-se. pensando no tanto que teria que ouvir depois. Fingiu que suas colegas não existiam, bem como seus sorrisinhos irônicos e maliciosos, e seus desprezíveis cochichos.

Terminada a entrevista, com inúmeras desculpas pelo vexaminoso comportamento de D. Lúcia, o rapaz enfim saiu, já com emprego novo. Desta vez não teve coragem de olhar quando ele passou pelo corredor em direção à saída. Assustou-se quando ouviu um “psiu”, e mais ainda quando o rapaz chamou-a, a voz grave e forte fazendo-a tremer de cima a abaixo.

— Dona Lúcia, a Sra. pode me ajudar aqui por favor? Estou meio perdido. — e, quando ela estava já no corredor externo, fora do alcance dos atentíssimos olhos e ouvidos das colegas, continuou — Desculpe, mas eu queria perguntar, a Sra. se machucou muito? Eles nem ligaram para a Sra., fiquei sem saber se falava alguma coisa.

— É, eles são assim mesmo, quando há gente de fora por perto. Quanto a mim, estou bem, só com um pouco de dor de cabeça... Eu é que acho que devo ter te machucado. Desculpa, viu, é que eu sou tão desastrada... Que vergonha!

— Não há porque envergonhar-se, — disse o rapaz. E, aproximando-se mais do ouvido da funcionária que, de repente, não cabia mais em si, sussurrou num tom inconfundível: — Na verdade eu adorei essa marquinha.

E, para enfatizar, olhando no fundo dos olhos dela, sorrindo de novo indecifrável e ainda assim inconfundível, pôs as duas mãos sobre o moletom, esticando o tecido por sobre a mancha de batom, fazendo evidente tudo quanto se passava em sua mente. Piscou, cúmplice, e despediu-se com um “até amanhã” enquanto seguia corredor abaixo em direção às escadas, plenamente consciente de que era seguido pelos olhares da nova colega de trabalho.

Lúcia, como se houvesse recebido um sopro de vida nova, sentia seu coração bater diferente, forte e viçoso como a promessa que tomava a bela forma daquele garoto. Enquanto voltava para sua mesa, seu corpo enchia-se com o calor o de mil desertos, e sua alma dançava com uma alegria que há muito tempo ela pensava haver esquecido.


[LL]
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui