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Contos-->Retribuições -- 23/06/2009 - 11:49 (Luis Lagarto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
RETRIBUIÇÕES

[Luis Lagarto]



A cena abre em uma área verde semi-deserta, apesar dos muitos prédios que se vê ao longo da linha do horizonte: a zona oeste da cidade de São Paulo. É uma quarta-feira silenciosa e cinzenta. coberta pela tristeza úmida e fina de uma garoa que descia dos céus desde as cinco da manhã daquele dia. O fluxo infinito de carros nas duas mãos da Marginal Pinheiros riscava com luzes amareladas ou vermelhas a monocromia vespertina, e emprestava, como trilha sonora, uma sintonia vaga de acelerações, frenagens e retomadas.

Os dois homens que arrastavam os pés pelas calçadas molhadas absorviam a paisagem entre indiferentes e incomodados, talvez pela mistura inusitada de sensações – alívio, medo, raiva, desprezo. Estavam ali para encontrar sentido naquela balbúrdia interna, fugidos de pleno expediente. Afinal, envolvidos pelas vozes dissonantes de seus vinte e tantos colegas de trabalho, que em vão tentavam fazer-se ouvir em meio a tantos telefones, impressoras, máquinas fotocopiadoras e, em época de Copa do Mundo, uma televisão constantemente ligada, eles mal podiam ouvir seus próprios pensamentos – somente sentir-lhes o conflito. Era preciso sair dali, e o Parque Villa-Lobos era o lugar distante mais acessível: a empresa ficava nos arredores do bairro do Jaguaré, e, sendo um encarregado e o outro mensageiro, suas ausências não seriam especialmente sentidas.

A saída, primeiro de um, e pouco depois de outro, ocorreu em silêncio, e em silêncio decidiram caminhar apesar da garoa incômoda. Em silêncio atravessaram ponte e ladearam obra do metrô, entrando pela cruamente adornada lateral do Parque, e em silêncio prosseguiram até que, finalmente, o mais velho dos dois, Wilson, apontou para um quiosque vazio e convidou o garoto Gerson a sentar-se num dos banquinhos onde o vento não conseguia fazer chegar a quase chuva.

As primeiras palavras vieram cheias de ferrugem e mágoas:

-- Eu não consigo mais saber se a culpa é minha ou não.

-- Culpa do quê?, perguntou Gerson – ou Gersinho, como era mais conhecido.

-- Não sei, dessa situação esquisita. Essa mudança sua, quase da noite pro dia. Um pouco com todo mundo, mas muito comigo. Muito. Você assim todo arredio, esquivo. O que eu te fiz?

O invés de responder, Gersinho apenas deixou escapar um suspiro, fazendo um som cansado enquanto mudava de posição, inclinando-se para o lado contrário do amigo – ou colega de trabalho, era o que se tentava descobrir no momento. Não olhou Wilson nos olhos. Por sinal, não olhava Wilson nos olhos já há algum tempo.

-- Eu até consigo ler mentes, mas preferia ouvir a resposta, antes de confirmar minhas suspeitas – disse o encarregado, com toda a firmeza que seus pouco mais de trinta anos lhe permitiam. O rapaz mexeu-se de novo, fez menção de levantar-se, mas enfim largou-se junto ao balcão e começou a chorar. Primeiro um tremer de lábios, depois uma lágrima corrida, e assim por rápidos estágios até um choro sentido, ao qual ele dava vazão encolhido. O encarregado tocou-lhe de leve os ombros, mas retirou a mão com receio de ser mal-entendido. Resignou-se a fitar o chão até que o rapaz tivesse deixado escorrer de seus olhos a maior parte do peso que o premia, e voltasse a respirar mais ordenadamente, apenas fungando fragilmente de quando em quando.

-- Você quer me falar o que está acontecendo? Não posso tentar te ajudar se você não me disser o que se passa com você. Fico achando que o problema é comigo, mas sei que pode não ser. Você no outro dia começou a falar da sua garota... que não está dormindo... mas depois calou-se, deixou de lado, e eu não me senti na posição de ficar insistindo... O que está rolando, Gerson? Diz.

Gerson limitou-se a levantar os olhos e fitar o colega/amigo por alguns poucos segundos. Depois baixou seu olhar de novo, direcionando-o para as mãos, cujos dedos entrelaçavam-se formando uma rede de carne ou uma concha, conforme ele os juntava ou separava um pouco. De repente, ele se aprumou, e rígido no banquinho virou-se totalmente para Wilson e encarou-o com a vaguidão dos olhos tomada de todo por raiva, ódio, como se ele tivesse descoberto naquele instante dentro de si um ressentimento há muito esquecido. Quando falou, foi quase como se latisse:

-- Eu nem sei o que estou fazendo aqui com você. Você me dá nojo, e eu estou de saco cheio das pessoas me associarem a você o tempo todo. Você não sabe as coisas que eu tenho ouvido. Todo mundo acha que... que...

E sentiu um espasmo de desgosto antes de continuar, ignorando o olhar atônito do outro:

-- Eu não sei o que esse lugar fez comigo. O que esse lugar fez comigo? Por que eu ando assim, com essa raiva, eu não sei, sei só que estou cansado de tudo e de todos. Essas coisas que eu sinto. Você sabe o que eu tenho sentido? Pensado? Eu não tenho 40 anos pra pensar e sentir essas coisas, me sentir assim preso. Eu não sou velho ainda! Aquele bando de gente frustrada e invejosa que o tempo inteiro fica me dizendo que... Por que eu tenho que ouvir o que eles dizem? Por que eu tenho que ouvir o que você diz? Olha pra você?!! É a soma de tudo que eu mais odeio na vida: velho, frustrado, louco e além de tudo --

E calou-se, tão subitamente como se só então tivesse entendido o que estava prestes a dizer. Wilson, a essa altura, respirava com alguma dificuldade e muito provavelmente não havia sequer percebido que tinha estado chorando, mesmo apesar de ter engolido mecanicamente as lágrimas que lhe escorreram pelo rosto inclinado até a boca contorcida em um “U” invertido. Gerson, dando-se conta da cena, levantou-se e deu um passo para trás, como se diante de algo que lhe causasse horror. Wilson ergueu um pouco a vista sem mexer a cabeça, conseguindo mesmo assim fitar os olhos do amigo/colega, e lançando pelos seus perguntas estertorantes de animal ferido.

Os poucos segundos em que permaneceram imobilizados tiveram extensões distintas para ambos: Wilson ficou ali por dias, recordando todos os momentos em que, contrariando sua intuição, acreditou na simplicidade da aproximação do menino, que parecia ter encontrado na sua figura algum refúgio, proteção que ele cedia com gratidão por quebrar a hostilidade monótona e infrutífera do local onde por tantos anos já escondia-se de fazer da vida qualquer coisa mais significativa – aquele local em que se vivenciava eternamente a parábola da figueira seca: o que quer que ali se plantasse, não frutificava nunca, morria na aridez e secura de tantos seres preocupados tão-somente em subsistir.

Não pôde deixar de arrepender-se de todas as vezes em que quase parou para avisar o mensageiro recém-admitido de como eram as coisas para além das aparências, e que quase nada do que realmente importava era dito às claras, por ali. Sabia de sua imagem, o encarregado, e muitas vezes pensou ele em afastar-se do garoto antes que os comentários ganhassem corpo... Mas, por tudo que o havia acabo de ouvir, já era tarde. Muito tarde.

Enquanto para Wilson vários meses comprimiam-se naqueles breves segundos, para Gerson era tudo muito mais simples. Via com clareza muitas coisas que, até ali, apresentavam-se vagas e indistintas. Sabia que aquele era um momento de escolha, e sabia também o que havia escolhido. O que precisava deixar de lado. O que precisava abraçar e levar adiante.

Naquele momento Gerson também olhava para si mesmo, e ouvia-se dizer ao homem que observava ali amuado, patético e desconstruído, que não envelheceria nunca, que acharia algum meio de viver como se tivesse 20 anos para sempre, e que não lhe eram muito agradáveis essas responsabilidades adiantadas de chefe de família – casa e mulher para sustentar, já tão cedo, e um mundo ainda de mulheres e prazeres e aventuras a descobrir. E se ele envelhecesse de repente, tão cedo, e tudo ficasse perdido? Que morte em vida seria! Ele seria assim... outro Wilson, fadado a carregar dentro de si o cadáver dos tantos sonhos que ele via morrer um a um, dia a dia? Não! Ele atingiria o ideal de seu ídolo inconfesso, Peter Pan! Construiria sua própria Terra do Nunca e viveria jovem e sem cargas para sempre. Por que abdicar da atenção tão intensa que recebia de todos por ser o caçula, o mais novo – novo em todos os sentidos? Nunca, viver sem isso. “Amadurecer” é só uma palavra mais bonita para “envelhecer”, e tudo o que envelhece perde o viço e morre...

E ele não iria morrer nunca! Nunca!

Não como morreu... Não como...

Não. Não pensaria nisso. Era preciso tomar uma atitude, fazer uma escolha, e ele a fez, não voltaria atrás, estava decidido. Antes que Wilson abrisse a boca de novo para explicar tudo com aquele monte de palavras enfadonhas, que eram tudo o que ele tinha. Antes que Wilson finalmente o convencesse de que era preciso manter firme algum objetivo, e orientar esforços para que se o atinja, e que nem sempre seria simples ou agradável, o processo – antes que Wilson o convencesse de que não haveria alternativas além de tomar o rumo de sua vida em suas próprias mãos e...

(Mas ser adulto tem que ser necessariamente nunca divertido? Não há mesmo outro caminho que não o fracasso, o medíocre, o sem sentido?)

Não. Não envelheceria nem mais um dia sequer.

Estendeu a mão em direção ao escritor frustrado que havia recomeçado o choro e tocou-lhe o ombro, fazendo com que o homem se recompusesse e olhasse entre o choque e a súplica para o garoto, como se esperasse ser salvo pelas proverbiais palavras que viriam da boca de uma criança.

-- Wilson. Vamos voltar pro trabalho. Essa conversa não está fazendo bem pra ninguém, -- foi o que disse.


---


Gerson voltou ao seu local de trabalho poucos minutos depois, a passos rápidos porquanto a chuva agora caía a cântaros. Entrou na sala molhado, esbaforido e desapercebido, mas não levou mais que alguns minutos para ser festejado, como de costume, por seus colegas de trabalho, que lhe sorviam a juventude a largos goles, aspirando sua inocência e descobertas como cocaína da mais pura, tragando sua boa aparência de menino na flor da idade como emanações da maconha mais bem cultivada, e rindo-se, rindo-se todos a não mais poder, o tempo todo, no êxtase inebriante da negação absoluta da falha que tinham sido em transformar minimamente o mundo ou a si mesmos para melhor, até ali.

Foi embora ao fim do expediente e no outro dia, quando retornou, estava entre o mais chocados quando ouviu a notícia referente ao seu colega de trabalho Wilson, encontrado morto com uma caneta esferográfica enfiada em sua jugular. O corpo estava em um canto abandonado do Parque Villa-Lobos, na beirada da Marginal, onde o mato é alto. Foi descoberto pela manhã, quando um transeunte pensou em aproveitar-se da vegetação amiga para atender a um chamado da natureza.

A caneta, que segundo apurou-se pertencia ao próprio morto, havia sido também utilizada para furar-lhe os olhos – chegando a atingir parte do cérebro – tímpanos e céu da boca. Pelas marcas, o assassino tentou também perfurar-lhe o coração, mas, não conseguido, eventualmente deve ter desistido e optado por tecidos menos restritivos.

Até aquele momento, não havia sido possível determinar a seqüência em que os ferimentos havia sido causados, ou qual deles havia de fato causado a morte. Não parecia ter havido roubo, e não havia maiores sinais de luta ou resistência.

-- Esse aí vivia deprimido, falando em morte... parece que acabou atraindo, -- alguém no seu local de trabalho disse.

Em poucos meses, tudo foi esquecido. Nunca se encontrou um culpado, nem se esclareceram as circunstâncias do ocorrido. Muitos acharam uma bonita homenagem da parte do garoto, quando o primeiro filho dele nasceu, de chamá-lo Wilson.

-- O Wilson gostava mesmo muito de você, -- comentou alguém.

-- É, respondeu Gerson. – Ele me ajudou a descobrir quem eu realmente sou, do que eu sou capaz, e como resolver meu conflito mais importante. Devo muito a ele,-- disse o jovem pai, enquanto olhava fixamente para uma das fotos do filho que havia trazido para os colegas verem. – Isso era o mínimo que eu poderia ter feito.

E acrescentou depois de uma pausa.

-- Queria ter podido fazer muito mais.


[LL]
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