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Contos-->Segunda-feira, Quatorze e Três -- 23/06/2009 - 11:44 (Luis Lagarto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SEGUNDA-FEIRA, QUATORZE E TRÊS

[Luis Lagarto]


I

A paisagem era diferente, bem diferente do que ele estava acostumado, apesar de ser exatamente a mesma de todos os dias.

Uma nuvem escura e baixa a nordeste de sua posição parecia uma caravela.

-- Brmmmmm,

foi o que ela disse.

Ricardo Menezes desceu do trem e subiu pela mesma escada de sempre, ainda espantando com a diferença que faz sentar na primeira janela do trem que percorre em velocidade moderada a Marginal Pinheiros. Tendo viajado de cabeça baixa, olhar fazendo um ângulo aproximado de 45º com relação ao solo, notou tantos detalhes do caminho entre a estação Cidade Universitária e a Villa-Lobos/Jaguaré que parecia estar ali pela primeira vez.

A expectativa diante do contato iminente só fazia aumentar sua excitação geral, ainda que nenhum passante jamais notaria sinal algum de nervosismo: chamavam-no de Dirty Harry, por parecer inalterável mesmo nos momentos mais extremos. Aquele era um momento extremo. Parou no meio da passarela que conduzia a uma das praças que circundam a ponte, como se olhasse absorto o contorno urbano recortado pelos prédios no horizonte. Olhou para o relógio, sem qualquer expressão: 13h53.

Como sempre.



II

Helena McPherson sorriu gentilmente para o funcionário da alfândega que coletava suas digitais e imagem, conforme determinavam as novas diretrizes da governo brasileiro. "Princípio da reciprocidade". Sorriu um pouco mais significativamente ao lembrar desse detalhe, que trouxe consigo imagens vagas de uma aula de diplomacia perdida nos idos de 1985, quando ainda estudava para ser agente de campo da CIA.

Colado a conceitos que, por força do hábito, ela poderia recitar até de trás para frente, veio o rosto de Bobby O`Neal. Eles poderiam ter sido felizes juntos, não fosse o 11 de setembro. Bobby estava infiltrado em uma lanchonete no 87º andar da Torre I. Nunca encontraram qualquer vestígio dos últimos minutos de sua existência – e nem poderiam, sob risco de prejudicar a operação em andamento. Para o resto do mundo, foi o cadáver do canadense Wilbert Anderson Jeffries a ser identificado e enterrado com honras. Providenciaram uma família postiça para chorar em seu enterro. Ela fez questão de ser a noiva enlutada, e foram muito verdadeiras suas lágrimas.

Quando fiscal perguntou pela terceira vez se estava tudo bem, ela sorriu novamente e seguiu para onde teria devolvida sua bagagem. O aeroporto internacional de Guarulhos estava agitado, como seria de se esperar numa segunda-feira. Olhou para o relógio e precisou piscar algumas vezes para clarear os olhos marejados e enxergar o caríssimo mostrador de cristal líquido: 1:53 PM. Pensou por dois ou três segundos antes de decidir pelo ponto de táxi ou pela cabina telefônica mais próxima.



III

Stephanie soube que era lésbica assim que viu Sharon Stone interpretando a assassina Catherine Tramell em Instinto Selvagem: naquela cruzada de pernas, ela entreviu todo um universo, novo e muito mais pleno de sentido.

Seu Rodrigo, que descobriu na filha única uma inusitada mas fiel companheira para o futebol e a cerveja de final de semana, apelidou-a de Ro-Ro, por causa do jeito bonachão, da voz rouca e dos olhos claros e amigos daquela que era o único fruto positivo de uma relação falida.

Na verdade, Stephanie foi o ombro amigo que o amparou quando se descobriu que Dona Mildred tinha um caso o primo desde a adolescência. Cogitou-se a hipótese dela não ser filha dele, mas toda a tensão resultante do processo envolvendo o exame de DNA somente os uniu mais ainda. Desde o divórcio, pai e filha saíram muitas vezes juntos para as mesmas boates em busca de companheiras, que, não raro, conseguiam.

Ro-Ro ainda sentia as conseqüência do domingo quando acordou, às 10 horas da manhã daquela segunda um tanto nublada. Zonza, logo percebeu que não chegaria a tempo, e decidiu desencanar do compromisso que, durante os meses de constantes contatos, parecia mais importante que continuar existindo. Espreguiçando-se gostosamente, fez pose para o espelho do banheiro e confiou em seu jeito tranqüilo para resolver tudo com um sorriso e meia dúzia de palavras doces.

Tomou café com Seu Rodrigo e Analice, conquista dele da noite recém-finda. Olhou para a televisão por algum tempo, folheou o caderno de esportes e decidiu, ao abrir o caderno de variedades, sair. Vinte e seis minutos de ônibus depois, e outros vinte de caminhada, adentrou o Shopping chiquérrimo e marchou direto para o cinema. O visor do celular avisava: 13h53 – bem a tempo para a sessão das duas do último filme da gatíssima Nicole Kidman.



IV

Se fosse personagem de um conto, Josué sabia que seria algo despretensioso e tinha absoluta certeza de que seria o último personagem a ser introduzido.

Dizia o Toninho da Light (como era conhecido seu pai, medidor de luz desde os quinze anos):

-- Você é um zero à esquerda. Um monte de estrume. Só me dá vergonha. Mais vantagem pra mim seria se você tivesse morrido embaixo do carro de onde eu nunca deveria ter te tirado.

Entre essas e outras manifestações de carinho (aqui amenizadas em respeito à suscetibilidade dos possíveis leitores), e repetidas referências a um acidente quase ocorrido, Toninho alimentou e abrigou o filho até que ele se tornasse aquele poço, sem fundo, diria-se, de ódio, frustração e amargura.

Amor de mãe ele não conhecia. Teve, sim, uma idéia do que tal dádiva poderia ter sido por meio de uma avó, único ser humano na face da Terra a tratá-lo dignamente, e até a ter alguma fé em seus potenciais esquecidos. No enterro dela, quando ele tinha doze anos, Josué derramou suas últimas lágrimas, rascunhando ali o assistente administrativo seco e ressentido que se tornou aos vinte e sete anos, e que seria provavelmente até a aposentadoria, quando (acreditava) morreria praticamente indigente.

Sua mãe ainda existia, sim, contrariando estatísticas e a lógica mais rasa. Na favela onde todos eles ainda moravam, Darlete era conhecida pelos favores que concedia em troca de drogas, geralmente crack ou cocaína. Iniciou mais aviões que qualquer prostituta das redondezas, como seus vizinhos (muitos deles tendo passado pela experiência) nunca o deixavam esquecer. Muitas vezes Josué a encontrou caída em becos, bêbada, quando saía de madrugada para o trabalho, atrasando-se para arrastá-la para dentro do barraco onde seu pai fingia dormir. Ao fechar a porta atrás de si, ele já sabia a cena que se seguiria, e com o tempo aprendeu a cegar a vista para as manchas roxas que ela fatalmente apresentaria à noite.

Naquela segunda Darlete dormia calmamente, tendo sido uma das poucas noites do ano em que fazia amor com o próprio marido. A felicidade do casal, porém, não se refletiu no arremedo de vida profissional do filho mais velho (dois morreram em confrontos com a polícia): os seguidos atrasos culminaram, enfim, na já antecipada demissão. O processo foi humilhante demais para ser descrito, basta dizer que enquanto seu chefe o descompunha diante dos colegas, uma única lágrima quase se formou em seu olho esquerdo.

Somente o ódio a conteve.

A manhã inesperadamente livre o levou a descaminhos, e quando percebeu encontrava-se numa esquina infame da Boca do Lixo. Mal acreditou quando, quinze minutos depois de ventar suas mágoas e revoltas a um comparsa de antigos deslizes – figura de livre trânsito entre policiais e bandidos –, este depositou a seus pés como se fosse um enorme cachorro adormecido uma mochila preta, contendo uma sub-metralhadora israelense pronta para uso.

Estranhamente resoluto, entregou para o “amigo” todo o dinheiro da rescisão, tomou outra dose de conhaque e seguiu rumo à estação Julio Prestes da CPTM. De lá, subiu e desceu de trens e estações a esmo, em transe, indo e voltando, até que, pouco antes das duas, algo lhe chamou a atenção e ele desembarcou em definitivo na estação seguinte.



V

Lagostim não apareceu mesmo. Ricardo admitiu-se, talvez pela primeira vez em trinta e seis anos de vida, humilhado e abatido. Lagostim mentiu, desistiu, foi fraco, não sentia nada, fez pouco de sua decisão de enfrentar todos os riscos possíveis e imagináveis... todas as alternativas se sobrepunham e potencializavam, umas das outras, o gosto de derrota.

Subitamente deu-se conta do risco que estava correndo, da loucura que tinha sido marcar num local tão inóspito um encontro daquela natureza. A necessidade de dar um basta àquela situação que se arrastava já por dois anos, justificaria? E se fosse uma armação da corregedoria, e se seus contatos tivessem sido todos registrados e estivessem agora na mesa de alguém, que estaria apenas à espera do momento certo para fazer chafurdar na lama a carreira daquele que era, até então, um dos mais incorruptíveis delegados da Zona Oeste de São Paulo?

Sua vida pessoal não deveria importar tanto, mas, num meio conservador como era seu ambiente de trabalho, Ricardo “Dirty Harry” Menezes não tinha ilusões quanto à tolerância dos colegas a um caso de amor entre um oficial catimbado e um informante conhecido. Não que não houvesse vários exemplos, inclusive notórios, mas todos mantinham suas esposas e famílias de fachada, coisa que ele se recusou a fazer. Divorciou-se de Silvana três anos antes, quando percebeu que não poderia mais mantê-la sem mentir e feri-la injustamente, a ela e aos dois filhos que nada tinham a ver com isso.

Olhou para o relógio de novo, como não resistiu e acabou fazendo a cada trinta segundos nos últimos quinze minutos. 14h03. Pensou ter ouvido sons agudos ao longe, mas talvez fosse apenas outro trem chegando.

Naquele momento algo dentro dele se partiu, e o choro veio mais forte e mais rápido que suas tentativas de contê-lo. Todos os momentos vividos aos lado do ex-traficante e contrabandista de pele avermelhada (daí o apelido) sobrecarregaram sua mente e ele apoiou a cabeça sobre os braços cruzados sobre o parapeito da passarela e, convulso, esqueceu-se, alheio aos olhares piedosos dos passantes e ao vento que carregava suas lágrimas até o pára-brisas dos carros que passavam em profusão poucos metros abaixo



VI

Quando ela pôs o telefone no gancho, o mostrador do relógio de preço inversamente proporcional ao tamanho piscava, impassível, 2:03PM.

O pulso muito branco que o portava estava levemente trêmulo, mal transmitindo a intensa agitação interior da jovem estadunidense. Ela se achava ainda jovem aos quase trinta e um anos, pelo menos. Jovem e independente, e vivida e altamente capacitada para lidar com qualquer situação, integrante que era do mais famoso órgão de inteligência da mais poderosa nação do planeta.

Ainda assim, não houve em sua mente estratégia que a preparasse para os estranhos sons que ouvira ao telefone. Eram risos? Significaria aquela estranha risada abafada que as horas de viagem na classe econômica haviam sido em vão? Pensou em ligar de novo, mas conteve-se. Ameaçou também chorar, pegar o primeiro vôo de volta para Los Angeles, gastar todo o saldo de seu cartão no free shop e em simplesmente sentar-se no chão, perdida.

Helena não era, contudo, mulher de se dar por vencida, e não seria agora, que finalmente resolveu explorar novos aspectos da sua sexualidade, e que encontrou em uma brasileira, depois de meses de contatos por internet, correio, telefone e muitos, muitos sonhos, um porto seguro onde repousar depois de quase dois anos de tensão non-stop, não seria agora que ela entregaria os pontos, e desistiria de tudo sem lutar até o fim.

Pegou o telefone determinada, dominou sua tontura e discou com firmeza o número da casa de Stephanie. Arrependeu-se por não ter aprendido português quando teve a chance, pois Seu Rodrigo não entendeu palavra do que disse. Por sorte, Analice sabia comunicar-se na língua de Shakespeare o suficiente para lhe dizer que a garota havia saído poucas horas antes, para ir ao cinema.

Sentindo-se totalmente ultrajada, relegada à condição de encomenda indesejável, Helena sentiu o chão faltar-lhe sob os pés. Pensou novamente em Bobby O’Neal, em como ele jamais teria feito isso, e arrependeu-se por ter confiado na amabilidade da garota latina, no calor de seu sorriso, em suas promessas doces e sem fim. Respirou fundo, levantou a cabeça como uma rainha recebendo sobre os ombros o manto sagrado da dignidade e, num gesto de extrema condescendência, discou ainda uma última vez o número do celular da menina.

Sem resposta.

Pois bem. Desejou que ela aproveitasse bem seu filme e deu meia-volta, dirigindo-se ao balcão de sua companhia aérea para saber como converter o restante de sua milhagem acumulada em uma passagem de última hora para o Rio de Janeiro, lembrada que foi de sua existência por um cartaz prometendo em fevereiro um carnaval de homens e mulheres bonitas.



VII

Josué acomodou-se na escuridão do cinema sem se incomodar com o fato de estar sentado na primeira fileira. Na verdade, em que pese o vazio da sala àquela hora da tarde, ele fez questão de sentar-se ali. Era preciso. Assim que as luzes se apagaram, ele começou a abrir lentamente o zíper da mochila.



VIII

Stephanie sentiu uma pontada no peito e quis levantar-se. Era o remorso por ter deixado Helena sozinha no aeroporto, por ter sido irônica com o fato dela ser agente da CIA – e, supostamente, não ter problemas para encontrá-la onde quer que estivesse.

As luzes, contudo, apagaram-se naquele exato momento, e a idéia de ver Nicole Kidman atuando ao lado de Jack Nicholson apagou, simultaneamente, todas as demais. Ms. McPherson era, afinal, agente da CIA, e se uma agente da CIA não pudesse localizá-la em uma sala de cinema de um shopping relativamente vazio, o mundo estava mesmo perdido, assim como ela estava perdida em seus pensamentos, a ponto de esquecer-se de desligar o celular.



IX

The Human Stain.

Ou, “Revelações”, como apareceu na legenda.

A cocaína que ele surrupiou da gaveta da mãe fazia seu coração quase explodir dentro do peito. Cada novo pensamento aceleradíssimo mal encontrava ligação com o anterior antes de ser imediatamente esquecido. A única constante era a certeza de que aquilo era o que deveria ser feito, era o único caminho. Josué soube disso desde que aquele primeiro rapaz protagonizou uma cena parecida e se tornou uma celebridade instantânea – virou alguém.

E ele merecia ser reconhecido. Se não por seu valor, ao menos pelo barulho que poderia causar. Monte de estrume, sim. Queria ver o Toninho da Light fazendo aquilo. Ele não era homem para isso não! E sua mãe... hah!, sua mãe! Provavelmente estaria tão chapada quando ele aparecesse no Jornal Nacional que não teria nem a capacidade de reconhecer, no rosto por trás do apresentador, seu próprio filho. Ele teria cuidados médicos, e regalias, e daria muitas, muitas entrevistas, falaria por telefone aos programas vespertinos, daria depoimentos sobre sua infância sofrida, quem sabe até acrescentaria alguns detalhes sujos para acabar de vez com a reputação já quase inexistente do homem que dizia que seria melhor se ele, Josué, tivesse morrido.

Febril, o assistente administrativo desempregado não percebeu que havia passado do pensamento para o murmúrio e deste, em rápidos estágios, para os gritos. Os poucos espectadores, em pânico, corriam para as saídas de emergência, às vistas do homem armado vociferando em frente à tela, vestindo cenas do filme e, vez por outra, um pedaço do rosto da Nicole Kidman.

Stephanie desesperou-se logo no primeiro grito. Incapaz de mover-se, deixou-se cair por debaixo da fileira de cadeiras da frente. Rezava para passar desapercebida até que alguém tomasse qualquer atitude. Não queria de forma alguma morrer, pensou com uma intensidade absurda em sua nova namorada americana que, se algo acontecesse, jamais conheceria, e por que ela não podia ter acordado um pouco mais cedo para buscá-la em Cumbica ao invés de insistir em brincar com o destino?

Nem por um momento preocupou-se, nem mesmo jamais soube, que eram exatamente 14h02 quando seu celular fez ecoar na sala já vazia – exceto por ela e pelo homem em rompantes de fúria narcisista – a música da Marina que ela havia escolhido na ausência de alguma da Ângela Ro-Ro.

Antes que pudesse tentar pela terceira vez acertar o botão de desligar, Josué já estava sobre ela, pairando acima das fileiras como uma aparição: um contorno escuro contra as luzes fugidias. Ele apertou o gatilho sem por um segundo alterar o tom de seu discurso inflamado, ainda que tenha se impressionado com a quantidade de balas que perfurou o corpo da garota e com o sangue que ela passou a verter em um misto de tosse, soluços e gorgulhos. Desfalecendo, Stephanie acertou o botão de receber, e pateticamente colocou o fone junto ao ouvido antes de seu último suspiro, quando sua cabeça, pendendo, desligou pela última vez o aparelho.

Às 14h03 um segurança invadiu o recinto e rendeu Josué com dois tiros certeiros em um braço e uma perna. Apesar da truculência dos oficiais que o conduziram até umas das muitas viaturas que aguardavam à porta do shopping, ao ver todas as câmeras e microfones que apontavam para seu rosto, Josué da Silva Ferreira não pôde conter um sorriso.



X

Apesar da passagem comprada, Ranael “Lagostim” dos Santos perdeu o ônibus das duas e três para Goiânia.

Denunciado anonimamente por contrabando e tráfico de armas depois de uma transação realizada na Boca do Lixo naquela manhã, e em fuga desde então (não tinha andando cem metros quando os primeiros policiais tocaiados vieram em sua direção), Lagostim poderia ter matado Dirty Harry com as próprias mãos pelo simples fato dele ser, provavelmente, o único delegado de São Paulo que não usa telefone celular.

Escapando a princípio por pura sorte, entrando e saindo de prédios de onde ia roubando as peças de roupa com que reaparecia, chegou até a rodoviária do Tietê e comprou duas passagens para destinos distintos – Goiânia, onde moravam parentes, e Montevidéo, que sempre quis conhecer. Embarcaria no que parecesse mais seguro.

Não contava, entretanto, com a percepção repentina de que não poderia partir sem esclarecer as coisas com o delegado Menezes, a quem começara manipulando há quase dois anos visando tão-somente as vantagens de ter costas quentes na polícia, mas com quem acabou se envolvendo mais do que pretendia, como descobriu naquele momento.

Olhou para o relógio, eram 13h53, não teria tempo para mais nada... a não ser para comprar folha e envelope, rascunhar o endereço de Goiânia (tinha-se decidido, então) e colocá-lo no correio. Não confiaria em telefones tão cedo.

Tudo teria dado certo se o inusitado de suas roupas, de tamanhos incongruentes, e sua afobação não tivessem chamado a atenção do cabo Jefferson, da Polícia Militar, que fazia a ronda na estação. Detido, não convenceu ao explicar a razão pela qual teria dois mil reais de um suposto primo no bolso traseiro, embrulhados ainda na documentação demissional do assistente administrativo que, naquele exato instante, cometia seu primeiro homicídio.

Preso na Zona Norte, pouco adiantou a Lagostim mencionar o nome de um delegado do Jaguaré. Tentou ligar para a delegacia, mas lembrou-se de que Menezes estaria naquele momento esperando por ele na saída da estação de trem.

Só lhe restou respirar fundo antes de apanhar como nunca na vida.

Cabo Jefferson, contudo, ficou curioso quanto ao tal delegado e guardou o telefone em seu bolso, prometendo a si mesmo ligar assim que tivesse tempo.



XI

Segunda-feira, quatorze horas e três minutos.

Ao invés de ter desembarcado na estação Villa-Lobos/Jaguaré às treze e cinqüenta e três como sempre, já estou aqui há quase quarenta minutos – até mesmo almocei. Ainda assim, por descuido, tive o dom de bater o cartão com um atraso de três minutos.

Deve haver algo mais no mundo acontecendo além disso.


[LL]
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