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Contos-->SOMOS TODOS DESAJUSTADOS -- 06/06/2009 - 07:35 (GIVALDO ZEFERINO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
– Partiu para o outro mundo... Pois é! Com aquela mania de perseguição, o comportamento de Zacarias ia de mal a pior. Ultimamente, isolara-se por completo, deitado no interior de um baú velho que havia em sua cabana. Há quinze dias, estranhando sua ausência, fui visitá-lo, e o espetáculo que presenciei foi estarrecedor: com uma aparência cadavérica, olhos esbugalhados, malcheiroso, a despeito de me reconhecer, não me deu ouvidos, recusando-se a sair do baú para tomar um banho, alimentar-se e descansar como gente. "Não, seu Carlos; não posso sair. Aqui é o único lugar seguro para mim. Obrigado pelo convite, mas eu não vou", protestava Zacarias secamente, sem haver jeito de convencê-lo. Falei com um médico do hospital, conhecido meu, que se prontificou a encaminhá-lo para tratamento em um asilo. Com muito esforço, retiraram-no do baú, entre gritos e pernadas, e o encaminharam ao referido asilo. Seu coração não resistiu, e ele finalizou sua trajetória neste mundo.

Recordava-me do último encontro com Zacarias, o rezador, velho conhecido da família, que vivia perambulando pela cidade, acudindo, com suas rezas e benzeduras as pessoas supersticiosas portadoras de algum mal. Essas pessoas diziam-se curadas, e retribuíam o "milagre" do rezador com dinheiro, comida e roupas usadas com as quais desfilava vaidosamente. Mas, Zacarias tinha mania de perseguição. Apesar de ser estimado por todos os que o conheciam, conservava-se retraído e desconfiado. Com relação aos meus familiares, porém, seu comportamento era diferente; sentia-se seguro e supunha-se a pessoa mais importante do mundo, porque o apreciávamos e o considerávamos como filho de Deus, segundo suas próprias palavras.
Certo final de semana, quando visitava meus pais, o rezador surgiu de mansinho no recinto da fazenda. Um rosário com as contas de madeira rotas e estragadas cingia-lhe o pescoço, e um crucifixo apenso ao rosário se apoiava sobre o peito.
Nesse dia, chegou falando coisas desconexas, um amontoado de frases confusas que eu escutava pacientemente.
– O que você tem, Zacarias?... Por que essa cara de aflição?
– Descobri uma maquinação contra mim. Estou a perigo, doutor! Desconfio que alguém esteja me espionando. A qualquer momento, serei exterminado...
– Zacarias, você não vai acreditar numa tolice dessas. Sabe que todo mundo gosta de você. Ninguém teria coragem de lhe fazer nenhum mal. Quem seria capaz?
– Os homens de branco... Estão espalhados por toda a cidade. Ainda ontem me deparei com um indivíduo rondando meu barraco e descobri o veneno que guardava no coração. Imaginando o mal que poderia me fazer, achei por bem transfigurá-lo em uma grande pedra, imóvel, para nunca mais prejudicar ninguém. Preciso me precaver. Estou com muito medo... Hoje, dormirei dentro do meu baú. É o lugar mais seguro.
– Não. Hoje, você é meu convidado especial, e dormirá no seu quartinho, acentuei.
Era um compartimento metade despensa, metade dormitório localizado no fundo do quintal onde, vez por outra, Zacarias costumava acomodar-se. Exultante como uma criança, não se fez de rogado, e marchou para o quartinho, cantarolando uma estranha canção, mais ou menos assim:

Vou transformar teu corpo numa múmia,
e te matar com o dedo indicador.
Eu sou senhor,
ninguém manda em mim,
ninguém manda em mim,
ninguém manda em mim.

Vou te pegar na rua, na esquina,
e te levar pro vale do terror.
Eu sou senhor,
ninguém manda em mim,
ninguém manda em mim,
ninguém manda em mim.

Eu vou cuspir no chão de quem me criticar;
não vou marcar a roupa que eu vestir.
Eu sou senhor,
ninguém manda em mim,
ninguém manda em mim,
ninguém manda em mim.

Tem gente que quer ser maior que eu;
vou transformá-lo em sapo-cururu.
Eu sou senhor,
ninguém manda em mim,
ninguém manda em mim,
ninguém manda em mim.

Cantava nesse tom até que se recolheu e caiu no sono. No outro dia, às seis horas da manhã, estava de pé, e dava início a mais um capítulo de sua vida errante. Quando se despediu, ainda atemorizado, me disse à meia-voz:
– Se eu não aparecer de novo, é porque eles conseguiram me apagar, e o senhor será testemunha.
– Siga em paz, Zacarias! Você há de voltar muitas e muitas vezes, disse-lhe eu. Acenando.

E eu fiquei a refletir:
Ninguém é capaz de entender os desígnios de Deus. Para uns, Zacarias é um desequilibrado; para outros, um idiota... mas, somente ele se conhece, e mais ninguém. De fato, Zacarias tem um modo peculiar de vida que difere do comportamento padrão. Por isso, todos nós, do mesmo modo, nos enquadramos no rol dos desajustados, idiotas, ou qualquer outra qualificação, quando nos desviamos da contextura geral.
Em resumo: todos nós somos, em particular, um desajustado em evidência.
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